É no “seu” Spazio Buondi, em Lisboa que está praticamente todos os dias, pois gosta de meter as mãos na massa e de trabalhar com a equipa, onde se incluem duas das irmãs, Ana e Guida. É também lá que as suas ideias para novos pratos tomam forma. “São tantos anos de trabalho juntas, que chego lá e apenas lhe transmito as ideias. Elas percebem logo o que pretendo”, diz Justa Nobre. Mas o nome Nobre associado à restauração é reconhecido não só pelos dotes de Justa. Na sala, o saber e charme discreto do seu marido, José Nobre, leva os clientes a uma viagem agradável aos sabores da cozinha na companhia do vinho mais apropriado.
Justa Nobre nasceu em 1957 na aldeia de Vale de Prados, Macedo de Cavaleiros. Foi criada numa família de sete irmãos, com quem partilhou uma infância feliz com “um pai cinco estrelas e uma mãe sempre atenta e preocupada connosco”, diz. Uma das coisas que gostava de fazer era passear até à horta com o pai ou acompanhá-lo na caça.
Justa herdou de uma tia o engenho e a forma delicada de trabalhar na cozinha, e a arte de fazer uma boa apresentação dos pratos
Uma das suas tias, Lucinda Eusébio, morava numa aldeia vizinha após diversos anos passados em Lisboa a servir numa família abastada. Como não tinha descendência, pediu à mãe de Justa para esta ir viver com ela para lhe fazer companhia. Tinha, na altura, sete anos, e ficou até aos 14.
Caráter forte
Justa Nobre diz que herdou o caráter forte da tia, mas não só. Também o engenho e a forma delicada de trabalhar na cozinha, que esta ganhara nos anos de trabalho em Lisboa, tal como a arte de fazer uma boa apresentação dos pratos. Da mãe e das restantes tias ganhou inspiração para uma cozinha de conforto, pois em todas as casas sabia-se cozinhar muito bem, “Desde uma feijoada, a um franguinho guisado, um coelho, um bacalhau, tudo era bem feito e sabia muito bem”, conta Justa Nobre, acrescentando que, aos 11 anos, ajudar na preparação do jantar, descascando um alguidar de batatas ou migando o caldo verde, era a coisa mais natural do seu mundo.
Na aldeia era difícil continuar os estudos e conseguir emprego. Por isso, resolveu rumar a Lisboa. Tinha 14 anos, mas já trazia consigo o saber culinário adquirido na infância e início da adolescência. Na cidade tomou conta de uma jovem com a mesma idade, que apenas se locomovia em cadeira de rodas, Alexandra Pereira Gomes, sobrinha do escritor Soeiro Pereira Gomes. “Ainda hoje somos amigas”, revela. Na casa, onde esteve até se casar, aos 19 anos, era tratada como membro da família. A proprietária, professora no Liceu Francês, tinha sido criada na Índia e trouxera de lá costumes e hábitos de luxo. Sabia cozinhar e transmitiu também os seus conhecimentos a Justa, que aprendia com facilidade, pois era aquilo que mais gostava de fazer. De tal forma que chegou a assumir os destinos da cozinha da casa.
O primeiro desafio para tomar conta da cozinha de um restaurante surgiu aos 21 anos. Abraçou-o “quase às cegas”.
Depois do casamento com José Nobre, trabalhou numa tipografia e, posteriormente, num tasco no Poço do Borratém, em Lisboa, que a sua irmã Guida tinha aberto com o marido, onde apareciam os atores do Teatro Had Hoc, que já não existe. Estava-se no período a seguir à revolução do 25 de Abril, numa altura em que as empresas tinham problemas e o marido, José Nobre, recebia o ordenado com dificuldade. Para compensar, fazia serviço de hotelaria aos fins-de-semana, “que ele apreciava muito”, explica Justa Nobre.
O primeiro desafio
Nessa altura, o gestor da empresa onde o marido trabalhava, Luis Vaz, decidiu investir na restauração e desafiou-o, e à sua mulher, pois estava informado dos seus dotes culinários, a tomar conta da sala e da cozinha respetivamente. No início, Justa Nobre teve algumas dúvidas em aceitar o desafio. Tinha apenas 21 anos, e alguns meses de experiência de trabalho com a irmã. Mas acabou por aceitar, e abraçou, “quase às cegas”, o projeto do Restaurante 33, que ainda hoje existe na Rua Alexandre Herculano em Lisboa.
Desde o início o marido, que já tinha mais experiência, foi-lhe dando o feedback do que se passava na sala. A recetividade foi tão boa junto dos clientes que passado algum tempo já não eram os empregados de escritório da vizinhança que lá iam. Eram os seus chefes e os directores das empresas, muitos deles frequentadores do restaurante Pabe, um dos mais tradicionais de Lisboa, que estava na altura em autogestão e tinha perdido momentaneamente qualidade.
Aproveitava o intervalo entre o almoço e o jantar para testar novos pratos. Ainda hoje só escreve a receita quando os considera perfeitos.
Com a mudança de clientela Justa Nobre decidiu passar da pescada para o robalo e para o linguado, peixes mais nobres, porque tinha de apresentar outro tipo de produtos a clientes com poder de compra mais elevado. Também nunca parou de criar e, todas as tardes, entre o trabalho de almoço e o de jantar, passava o tempo a pensar em novos pratos e a experimentá-los. Tal como hoje nunca leva a receita escrita; só o faz depois de a ensaiar e chegar ao prato que considera perfeito.
No início, jovem e com pouca experiência, sentiu algumas dificuldades na gestão da cozinha e no planeamento do trabalho do pessoal. “Graças a Deus aprendi bem e depressa”, diz, referindo que a casa nunca deu prejuízo durante os oito anos em que estiveram no 33.
No final desse tempo sentiu necessidade de mudar. Por isso, quando ambos foram desafiados para assumir os destinos do Iate Ben, em Carcavelos, aceitaram. Era um restaurante grande, com music pub e piano bar, o que agradou a Justa Nobre, que queria ter uma experiência de um espaço maior, frequentado por mais pessoas.
O primeiro Nobre abriu na Ajuda e durante os oito anos de atividade foi um sucesso.
O passo seguinte foi o primeiro restaurante do casal. Com pouco dinheiro para investir, abriram o Constituinte, na Rua de S. Bento, em Lisboa. A cozinha era pequena, mas a vontade era muita. Uma primeira nota de Manuel Luis Goucha, na altura crítico de restaurantes, na sua publicação, outra de David Lopes Ramos, no Jornal Público e outra de José Quitério, do Expresso, ajudaram a casa a fazer-se. Mas como os caminhos são quase todos árduos, na altura em que Justa e Zé Nobre quiseram comprar a casa, um par de anos após a abertura do restaurante, a senhoria pediu-lhes várias vezes o preço acordado inicialmente, contabilizando o sucesso que estavam a ter.
Foi hora de fazer de novo a trouxa. Após um breve período de procura, mudaram-se para uma rua do tradicional Bairro da Ajuda, fora dos circuitos habituais dos apreciadores da boa restauração. Foi assim que abriu o primeiro Nobre, onde estiveram desde 1990 a 98 com grande sucesso.
Depois da má experiência da Expo, Justa alerta que se deve pedir informações sobre os sócios, como se pede sobre os empregados.
Nessa altura foram convidados a participar com um restaurante na Expo, onde tudo correu bem. Mas os sócios da altura, queriam mais, contra a vontade de Justa e Zé Nobre. Foram criados diversos restaurantes sob a designação Nobre, numa sociedade que acabou por correr mal. “Fomos culpados apenas por termos sido demasiado ingénuos”, defende Justa Nobre, salientando que é sempre necessário conhecer bem os parceiros antes de se embarcar em qualquer tipo de negócio. “Se pedimos informações sobre os empregados, também o devemos fazer sobre futuros sócios”, acrescenta, salientando que perderam muito dinheiro, o Nobre da Ajuda, e muitos meses de ordenado. Após vários anos na justiça “pelo menos limpámos o nosso nome”, afirma.
O recomeço
Recomeçaram a vida no barco Lisboa Vista do Tejo, onde faziam eventos e jantares temáticos aos fins-de-semana. Mais tarde abriram o Nobre do Montijo e, dois anos depois, voltaram a Lisboa para assumir o Spazio Buondi, onde estão hoje.
Apesar de ter fornecedores de confiança, de vez em quando vai ao mercado para saber o que há de novo e avaliar os preços.
Entretanto Justa fez esporadicamente programas de televisão. Na SIC, na década de 90, sugeria uma das consoadas no período de Natal. Num dos episódios do programa Mesa à Portuguesa, da Diamantino Filmes, onde o ator João Lagarto levou os espetadores a conhecer alguns restaurantes nacionais, fez a sua feijoada. Depois de várias outras aparições, foi convidada para ser júri da versão nacional do Masterchef. Foi por insistência do marido que fez o casting na Escola de Hotelaria de Lisboa, que lhe deu entrada no projeto. “Em boa hora me convenceram a ir, pois eu adorei o tipo de programa, as pessoas da equipa, os concorrentes”, diz Justa Nobre.
Mas é na cozinha que gosta mais de estar. Os produtos chegam-lhe trazidos pelos fornecedores habituais, alguns já há algumas dezenas de anos. “Dão-me garantias e alguns deles apoiaram-nos sempre nos momentos menos bons”, explica referindo, no entanto, que de vez em quando entra um novo e que também gosta de ir ao mercado. “Vou lá para ver se há novos produtos, mas também para avaliar os preços”, diz. Entusiasma-se principalmente com o peixe, que foi o fio condutor de toda a conversa que deu origem a este texto. Nesse dia, a chegada de sardinhas fresquíssimas deu origem a um arroz das ditas. A inspiração foi no momento, para o prato “surpresa” do dia.
OS PRINCÍPIOS DE GESTÃO DE JUSTA NOBRE
Está na cozinha do seu restaurante praticamente todos os dias. Sempre de mãos na massa, porque não imagina a sua vida de outra forma. Os seus princípios de boa gestão de uma cozinha são os seguintes:
- Comprar produtos de qualidade, de preferência nacionais.
- Adquirir apenas a quantidade certa de produtos, para os servir frescos, pois só assim se pode tirar toda a rentabilidade do seu potencial.
- Estabelecer uma relação de confiança com os clientes. Um grande chefe de sala sabe vender recomendando, não impingindo, com base no conhecimento que tem de cada um deles e nas informações que lhe são transmitidas pela cozinha.
- Aproveitar bem todo o produto, especialmente o peixe. Tudo o que não é consumido pelos clientes, alimenta a equipa e a família de Justa Nobre.