Quando terminou o curso de Economia enviou apenas um currículo: para o marketing da L’Oréal. Entrou como estagiária, fez carreira internacional e, no início de Julho do ano passado, regressou a Lisboa como country manager da filial portuguesa. Nesta entrevista, Inês Caldeira conta quais foram os momentos decisivos, o que aprendeu com eles e desvenda a razão por que é a favor das quotas.
Começou há 14 anos como estagiária no departamento de marketing da L’Oréal e há um ano tornou-se diretora geral da empresa. Como chegou até aqui?
Ao contrário do que muitas pessoas possam pensar, eu não sou super ambiciosa. Nunca achei que ia chegar onde cheguei. Tive muito mais do que aquilo com que sonhei, mas nada do que aquilo com que sonhei.
Com que é que sonhava, então?
Quando tinha 15 anos queria ser veterinária e achava que quando acabasse a faculdade, casava, tinha filhos… Gostava muito de matemática, era muito boa aluna, e fui para Economia. Não gostei da faculdade. Foram quatro anos em que disse a minha própria que nunca faria aquilo de que não gostava. Talvez essa tenha sido a minha primeira decisão profissional. Como rapidamente passei a ser uma das alunas médias/ baixas, percebi o impacto que tinha fazer algo de que não se gosta.
Tenho um grande espírito de sacrifício e de luta.
Mas, ainda assim, terminou o curso.
Claro. Quando começo tenho de acabar. Vou até ao fim. Tenho um grande espírito de sacrifício e de luta. Não gostava, não é que odiasse. E os meus pais faziam algum sacrifício para eu estar ali. Em vez de desistir decidi aproveitar este facto para: 1) fazer deste um lema de vida; e 2) corrigir este erro. “Em vez de ir para o Banco de Portugal ou para uma grande consultora, vou fazer aquilo de que gosto”. Na altura mandei um currículo para a empresa onde queria trabalhar: a L’Oréal. Um só currículo. E concorri para o marketing. Foi um desvio importante. E o caminho fez-se caminhando.
Fui fazendo, muito por intuição. A L’Oréal proporciona um ambiente bastante favorável para pessoas intuitivas. À medida que os desafios foram surgindo, fui aceitando. Não tinha medo, tinha muito entusiasmo.
Vou! Três meses depois estava fora e a partir daí nunca mais parei.
Como surgiu a oportunidade de fazer carreira internacional?
Foi um momento decisivo na minha carreira. Tive uma entrevista com a diretora de recursos humanos da Europa. Eu com a vontade de “comer o mundo” que sempre tive. Ela disse que precisava mesmo de uma pessoa com o meu perfil para ir para fora. Nunca ninguém tinha ido de Portugal e para a área que ela estava a convidar. Eu era muito júnior. Mas disse: Vou! Três meses depois estava fora e a partir daí nunca mais parei.
Como?
As pessoas que trabalhavam comigo, os chefes para quem trabalhava, foram-me convidando para os desafios e dizendo que eu era capaz, que tinha de ir, que me lançasse. É isso que faz a diferença entre a L’Oréal e as outras empresas: o ambiente propício à meritocracia.
A L’Oréal é uma empresa com muita coragem. Desde sempre foi pioneira em apostar no talento jovem e dar cargos de enorme responsabilidade a pessoas muito novas. Eu com 27 anos já geria budgets de muitos milhões de euros.
E muita coragem em relação à gestão no feminino. É uma filosofia, não é porque seja moda ou por acaso. As mulheres normalmente excluem-se destes cargos, acham que não são capazes e que têm de ter uma série de características preenchidas quando se candidatam a um posto, se é que se chegam a candidatar. A L’Oréal quase que me impôs isso: temos confiança e sabemos que é capaz. Portanto, cheguei um bocadinho conduzida. Claro, tive a minha parte de aceitar o desafio.
Quando aceitei este desafio tive muito medo.
Qual o segredo do seu sucesso?
Como fui sendo bem sucedida ao longo das etapas tem a ver com as equipas com que me cruzei. Cedo tive a noção de que um chefe sozinho não faz grande coisa. Sempre me rodeei de pessoas que me permitissem trazer o melhor de cada um delas.
Quando foi confrontada com esses desafios teve medo?
Tive muito medo! E quando aceitei este desafio tive medo. É o vertigo. Está mais do que estudado: a síndrome do impostor é das coisas que mais aflige o top management. “Porquê eu? Ai, ai, ai, ai, que agora é que vão descobrir que eu não sou bom, vão perceber que eu não estava preparada.”
Isso afecta mais as gestoras do que os homens?
Os homens, ao contrário do que se pensa, têm fragilidades, mas é verdade que eles deixam mais para os bastidores. O que as mulheres têm adicionalmente é a exigência de perfeição. Se um trabalho exige dez critérios, para me candidatar tenho de ter os dez. E, ao longo da missão, a mulher tem muito consciente aquilo que ainda lhe falta preencher.
É realismo ou falta de confiança?
Ambas as coisas. Mas neste caso a falta de auto confiança é prejudicial. Objectivamente as mulheres não estão menos preparadas e faz parte do novo desafio não saber tudo, ir aprendendo ao longo do percurso, enquanto se caminha.
Não é só difícil para os homens aceitarem este novo papel das mulheres.
Que outras vulnerabilidades têm as mulheres enquanto profissionais?
Além dos problemas de autoestima, que mencionámos, este sentido de exigência que é outro obstáculo, podia-lhe falar da conciliação da vida pessoal com a profissional e da maternidade. Mas cada vez mais este é um desafio comum, que rapidamente será transversal e vai colocar grandes desafios às empresas e à sociedade em geral. Os homens, finalmente (e acho que isso foi uma grande libertação), querem mostrar os seus afectos em relação à companheira e aos filhos. Vejo muitos homens confrontados com a falta de tempo e lamentar não ir à escola do filho.
A sociedade está em profunda transformação. Não é só difícil para os homens aceitarem este novo papel das mulheres e a sua necessidade de autoafirmação. Há um conflito interno: nós não fomos educadas para ter sucesso e não saber cozinhar; ou ter sucesso e não ter tempo para ir buscar os filhos.
Hoje muitas das carreiras passam por carreiras internacionais e num país como Portugal isso ainda é mais marcante. Num contexto em que os homens ganham ainda bastante mais que as mulheres (na L’Oréal não é assim), ter de fazer carreira internacional, mas não ter as condições económicas para compensar o ordenado masculino, é outro dos desafios.
O nosso papel na sociedade ainda não está muito definido: nem para nós nem para os homens.
Tentei convencer a empresa de que não era a pessoa certa.
A consequência é que se vive em permanente conflito interior. Sente culpa?
Eu não sinto culpa nenhuma. Acho que tive imensa sorte. Reconheço que há tantas pessoas que gostavam de ter a minha vida. Tive oportunidade de fazer tanta coisa na minha vida, há tantas vidas na minha vida. Acho que há tempo para fazer tudo. Vou fazer tudo o que quis fazer e vou deixar-me continuar a surpreender pela vida. Porque eu, se eu tivesse sonhado com a minha vida tê-la-ia sonhado muito menos interessante do que ela foi.
O lado B de Inês Caldeira
“Todo o dinheiro que ganho e todo o tempo que tenho livre é para viajar”, revela Inês Caldeira. A Ásia é o seu destino de eleição. Se a vir no aeroporto não a reconhecerá. “Sou completamente backpacker (mochila às costas). Tudo o que seja hotéis a mais de 5 dólares por noite já acho um exagero”, afiança. “Preciso dessas três semanas para me renovar, me desprender das coisas materiais. Todos os anos preciso deste reality check, de voltar a dizer: consigo dormir no comboio, com um lençol … e é nessa altura que sou mais feliz.”
Recuemos aquele período em que foi convidada a assumir estas funções. Onde foi buscar forças para que a coragem vencesse o medo de aceitar o cargo? Ao longo dos anos fui construindo um sistema de mentoring importante à minha volta. Essas pessoas são a rede que me tem vindo a acompanhar: a minha família e mentores na L’Oréal, hoje também o meu namorado.
Tentei convencê-los de que não era a pessoa certa. Disse isso muitas vezes a muitas pessoas. Repeti isso a cinco ou seis pessoas chave, que me deram o voto de confiança. Aquilo ia subindo e eu avisava: “olhem que isto é uma loucura, eu não estou mesmo preparada. Mas porquê eu? Não estou porque eu não fiz isto e aquilo. Eu não sou a pessoa certa.” Foram eles que me convenceram. As tantas fiquei sem escolha. Cheguei em julho e achei que em janeiro já estaria a vender na Zara. Achei! E isso condicionou muito os primeiros seis meses. Tenho de marcar, mudar a vida das pessoas, fazer pelas pessoas. Reuni com os 300 colaboradores. Foquei-me muito na política de RH e em perceber o que não estava a funcionar.
Foram seis meses em que esteve só a ouvir?
Isso não é possível na L’Oréal. Tive a sorte de chegar num momento em que o negócio estava bastante bom. O meu predecessor tinha feito um excelente trabalho. E isso permitiu uma aterragem relativamente suave. Estive três meses a ouvir. Mas ao mesmo tempo, como conhecia a casa, fui intervindo.
As mulheres tiveram imenso orgulho.
É a primeira mulher a liderar a filial portuguesa. Nesse período inicial, teve de lidar com alguma desconfiança?
Achei que ia ter, porque tive dois meses de preparação antes de sair de Espanha e chegavam-me ecos disso, mas não tive. Ao contrário, fui recebida de braços abertos. Sobre todos os estigmas (o facto de ser mulher e jovem), prevaleceu o facto de a direção da L’Oréal ter dado a responsabilidade a uma portuguesa. As mulheres tiveram imenso orgulho. Tive demonstrações de carinho fantásticas. E todos os outros acharam: é portuguesa, vem cheia de energia, tem experiência internacional…
Que aprendizagens retirou da experiência internacional?
Estive três vezes fora e aprendi coisas distintas em cada uma das fases. Quando saí, com 25 anos, fui trabalhar para ao desenvolvimento de produto. Sendo uma marketeer, trabalhar com os laboratórios, para os mercados asiáticos permitiu-me desenvolver mais as minhas hard skills.
Regressei a Portugal como diretora de marketing e voltei a sair como diretora de marketing dos cinco grandes países. Tinha 29 anos, vinha de um país muito pequeno e estava a definir a estratégia de países cujos diretores de marketing tinham muito mais experiência. Foi mais uma experiência muito enriquecedora porque teve a ver com o management por influência, porque que eu não tinha poder hierárquico sobre eles. A partir daí passei a adoptar esse estilo de management: gerir equipas de muitas pessoas, à distância, sem ter de invocar o argumento de que sou chefe. Da parte dos hard skills, permitiu-me ter conhecimento da beleza europeia geral.
A terceira e última experiência internacional o regresso ao operacional, em Espanha, em plena crise de 2008. Espanha foi superafectada pela crise e registou um desenvolvimento brutal das marcas brancas, em detrimento das marcas do fabricante, como é a L’Oréal. Neste contexto, as marcas de fabricante tem de dar argumento de real superioridade para justificarem as diferenças de preço. Todas as astúcias de marketing que tinha aprendido até então tiveram de ser reinventadas. Os circuitos de distribuição (a perfumaria) estava em falência. Foi muito interessante do ponto de vista de managment toda a reengenharia do P&L, da conta de exploração, e gerir pessoas num contexto depressivo.
Na L’Oréal há um equilíbrio total em termos de género.
Como é composta a equipa da L’Oréal?
Temos um equilíbrio fantástico. Temos tantas pessoas com mais de 55 anos como pessoas com menos de 55 anos. A média de idade é 44 anos, mas as pessoas são particularmente jovens na sua atitude: dinâmicos, engaged, modernos, com um desejo de reinvenção permanente. Muitas vezes são os mais jovens em idade quem mais resiste à mudança.
Há também um equilíbrio total em termos de género, quer na base quer nos comités de direção quer no Comexec, o comité executivo. Vamos estar em perfeita igualdade a partir de um de setembro. Pela primeira vez em 2015 chegámos a total paridade.
Como atingiram isso? Implementaram programas de diversidade?
De todo! Temos a convicção de que cargos de direção diversos são mais ricos. É uma filosofia. É uma questão de vontade. A partir do momento em que uma empresa decide acelerar, acelera. No meu caso em particular, o facto de não terem cedido à minha resistência demonstra uma crença profunda e um grande conhecimento das mulheres. Pelo seu métier, os homens da L’Oréal têm um grande conhecimento das nossas motivações.
Além disso, temos políticas de maternidade vanguardistas. Não acho que haja alguém que pense que na L’Oréal não lhes foram dadas condições para ser mãe. Isso acaba por promover a igualdade.
Não acho que tenha sido eu a promover mais isso. Não há aquele sentimento clubista de women brings women.
Há quem diga que só em 2060 se atinge a igualdade. Eu não aceito isso. Há efeitos multiplicadores que não somos capazes de antecipar. Sabe-se lá! Antes da revolução digital alguém podia imaginar a Amazon? Alguém podia imaginar que a Apple ia revolucionar quatro ou cinco indústrias? Ainda não vimos nada. Nada!
Não sou contra as quotas. Nem acérrima defensora.
Para acelerar esse processo defende as quotas?
Não sou contra. Não sou também uma acérrima defensora, mas acho que tem que se obrigar, expor as mulheres, pô-las na situação. Para que percebam que são capazes. Promover positivamente. Como é que a empresa pode acelerar isso? Por mulheres nesta situação. Porque se aplicarmos as regras masculinas, há um cargo aberto e vai ter dez homens a bater à porta: eu, eu, eu, eu… Nunca vai ter mulheres porque nós não fazemos isso. São isso quotas?.
Acredita que há uma forma de liderar feminina e outra masculina?
Não. Acho que há uma forma da Inês liderar, da Isabel liderar e de a Ana liderar. Cada caso é um caso. Não gosto desse tipo de chavões porque normalmente prejudicam as mulheres. Sempre que falamos de equilíbrio e dizemos que as mulheres são mais sensíveis… estamos sempre a falar das soft skills e esquecemos as hard skills. Portanto, implícito, está sempre que não somos tão orientadas aos resultados, que não somos tão competitivas, que não somos capazes de tomar decisões de gestão.
Porém, as equipas mistas são muitos distintas das equipas compostas por elementos de um só género. Isso indica que há características inerentes a cada género.
Não concordo nada com aquela coisa de que as mulheres são as piores inimigas de outras mulheres. De todo! É a maior falácia masculina. Os homens viveram muito à custa disso.
A dificuldade em encontrar a minha alma gémea tem a ver com o meu nível de exigência.
A sua carreira impediu ou dificultou a manutenção de relações amorosas?
Não. Muita gente me quis convencer disso: “A trabalhar como trabalha…” É mentira. A dificuldade que tive em encontrar a minha alma gémea tem a ver com o meu nível de exigência e com o facto de me ter encontrado com pessoas, que fizeram parte do meu caminho, a quem eu quero muito, mas que não eram as pessoas certas.
Dizem que o poder num homem pode ser afrodisíaco. Sente que numa mulher o poder pode, pelo contrário, afastar os homens?
Sim. Por isso é que eu sabia que ia demorar até encontrar a pessoa especial. Eu compreendo-os. É difícil estar com uma mulher que consegue viver sem ele, que adora a sua vida. Imagine o que é num jantar romântico, num primeiro date, eu dizer que sou super feliz com os amigos, que a minha vida…
… tem de ser uma pessoa bem resolvida.
E que tenha feito o mesmo percurso. Pode dar rapidamente a sensação: a vida dela não sou eu. É uma vida cheia de coisas já. Não é sempre verdade. Porque a pessoa tem as suas fragilidades. Adora ter um porto seguro. E também está disposta a abdicar de muita coisa. Eu também quero imenso ter uma família e não acho que vá fazer menos sacrifícios se for chamada. Mas não é fácil, porque não é comum as mulheres verbalizarem isso.
A diversidade na L’Oréal
Pelo segundo ano consecutivo, a filial portuguesa da L’Oréal foi reconhecida como como a referência europeia em diversidade e equidade laboral. Em 2015 obteve mesmo a avaliação máxima do GEES – Gender Equality European Standard. As práticas socialmente responsáveis que valorizam e asseguram uma posição mais equilibrada de homens e mulheres nas diversas categorias profissionais e o alargamento da licença parental obrigatória, já usufruído por 68% dos pais que integram a empresa, são algumas das razões que tornam a L’Oréal numa referência europeia em matéria de diversidade e equidade laboral. O compromisso para a promoção da igualdade de género no universo laboral é patente no facto de mais de 50% dos quadros de chefia e direção da L’Oréal Portugal serem preenchidos por mulheres. “Estamos a ser pioneiros e a promover que diferentes empresas assinem o protocolo sobre a diversidade e a igualdade. Quem é líder também tem esse desafio. É uma parceria com a GRACE”, revela Inês Caldeira. Nas preocupações da country manager está também a igualdade geracional. “Ainda não está a ser suficientemente discutida a questão de ter cada vez mais ter o maior número de gerações a co-trabalhar. E é um desafio gigante.”