Há dois mil anos que as mulheres das vilas piscatórias de Wagu, Ijika, Oosatsu e Toushijima, no Japão, mergulham à procura de abalones (moluscos), pérolas, ostras e algas, para poderem viver e preservar uma tradição feminina milenar. Têm entre 50 a 85 anos. A média das mulheres que hoje mergulham é de 67 anos, as mais novas têm 50 anos e as mais velhas dos 85. Mas estas respeitáveis idades não as impedem de ganhar a vida e perpetuar um costume antigo. E através do contacto diário com o oceano conquistaram o “estatuto de colectoras e cuidadoras”.
A fotógrafa e realizadora Cláudia Varejão foi atrás desta longínqua e, para muitos, desconhecida realidade e retratou a vida desta comunidade de mulheres japonesas, as Ama-San. As mulheres Ama-San (Ama significa pessoas do mar, em japonês) mergulham, quase diariamente, sem garrafas de oxigénio ou qualquer outro apoio. Conseguem ir até aos 20 metros de profundidade e permanecer sem respirar durante dois ou três minutos, até realizarem a arriscada tarefa. Depois voltam para casa, pelo caminho vendem o que foram capazes de apanhar, fazem o almoço, para elas e para as famílias, e passam a tarde a recuperar da hipotermia provocada pelo frio da água. As Amas, como também são conhecidas, são financeiramente independentes, sustentam as famílias e criam laços de irmandade dentro da comunidade.
A imagem das Ama-San chegou ao Ocidente através do filme 007 – Só se Vive Duas Vezes.
Mas as novas gerações não se interessam pelo mergulho e teme-se que desapareça “uma das mais belas tradições orientais sem precedentes no mundo”, adverte um documentário de Cláudia Varejão sobre estas “mulheres do mar”, que ainda não tem data de estreia marcada. Hoje na inauguração será também lançado um livro com 39 das imagens exibidas na exposição, que é uma edição de autor (300 exemplares), feito à mão e com uma encadernação típica japonesa.
No século XI já se escrevia sobre estas mulheres (mencionadas no “Livro de Cabeceira” de Sei Shonagon) e no século XVII ficaram sobre proteção imperial pelo potencial económico do seu trabalho. A imagem das Ama tem chegado ao ocidente através de filmes como 007 – Só Se Vive Duas Vezes, Tampopo, de Jûzô Itami, ou Drawing Restraint, de Mathew Barney.
Cláudia Varejão, que trabalha regularmente como diretora de fotografia e montagem em cinema, trouxe-as agora a Lisboa. Por que não são os homens a mergulhar nas águas do Pacífico? A resposta está na entrevista que se segue.
Como descobriu esta comunidade japonesa?
Encontrei uma referência às Amas num livro. Comecei a pesquisar e impressionou-me muito o trabalho em torno do mergulho. Foi um interesse muito espontâneo e imediato.
O Japão e a sua cultura estiveram sempre muito presentes na minha vida.
Como conheceu esta realidade?
Em 2013 recebi uma bolsa de curta duração da Fundação Oriente para ir ao encontro das Ama-San. A proposta inicial foi de regressar com um portfólio fotográfico e, no futuro, pensar numa apresentação ao público. Defini também para mim, desde o início, que este projeto iria dar lugar a um filme. Essa foi sempre a meta final. As fotografias são o resultado de um processo de répèrage. São os fotogramas dos meus primeiros encontros com as comunidades locais das Amas em Mie.
Em que consiste este seu projeto – fotos, livro, documentário?
Este projeto resulta de duas viagens, a primeira como bolseira da Fundação Oriente para recolher fotografias, e uma segunda viagem para fazer um filme. Este filme é produzido pela Terratreme Filmes e estará pronto ainda este ano.
O que sentiu ao fotografar estas mulheres?
Muita admiração e orgulho por estas mulheres.
Os homens japoneses deixam para as mulheres os trabalhos mais difíceis.
Também teve de mergulhar?
Não mergulhei. Há várias regras para mergulhar nas zonas onde as Amas trabalham. Não me foi possível mergulhar. Fotografei e filmei tudo no barco e em terra. Para o filme, as imagens debaixo de água foram recolhidas por um fotógrafo subaquático, o Akagi Masakazu.
Por que não são os homens a fazer este trabalho?
Oficialmente há duas explicações: as mulheres são capazes de suportar melhor a temperatura da água porque têm mais gordura, e também têm maior capacidade de suster o ar nos pulmões. Mas sabe-se que o Japão é um pais muito patriarcal e que os homens deixam para as mulheres os trabalhos mais difíceis. Acredito também nesta última explicação.
Como é o dia a dia destas mulheres? Foi difícil retratá-lo?
As Amas mergulham de Março a Setembro, 4 horas por dia: duas de manhã e duas à hora do almoço. No intervalo juntam-se no Amagoya, uma pequena casa improvisada para descansarem e ganharem fôlego para o próximo mergulho. Quando o mar está bravo as Amas não vão para o mar. Numa semana podem mergulhar apenas um dia ou, com sorte, quase todos os dias. É imprevisível. Vivem um dia de cada vez. Filmá-las foi um processo de conhecimento de ambos os lados, meu e delas. Por isso, cada vez mais íntimo à medida que nos conhecíamos.
Este é um trabalho muito perigoso, em que cada dia é um risco de vida.
Esta comunidade feminina é pouco conhecida no mundo?
Eu creio que as Amas são bastante conhecidas fora do Japão mas talvez a imagem criada esteja ainda muito associada à procura de pérolas. Isso já não existe. Hoje as ostras são todas produzidas em aquicultura. As Amas vivem sobretudo da pesca dos abalones, búzios, ouriços e algas.
O que mais a impressionou ao retratar esta realidade?
A bravura das Amas. É um trabalho perigoso e por isso cada dia é um risco de vida.
Estas mulheres são reconhecidas por este trabalho tão arriscado?
São muito respeitadas e reconhecidas pelo seu trabalho mas isso não retira o risco em que vivem. É sobretudo um trabalho e um dever diário para sustentar a família.
É um trabalho compensador?
Sei que em tempos elas ganhavam muito bem pois muitas são completamente independentes e construíram as próprias casas, às vezes mais do que uma. Hoje imagino que os valores que recebem pela pesca sejam menores.
No Japão sabe-se que aquilo que é artesanal produz resultados mais certeiros e bonitos.
Por que mergulham elas sem ajuda de botijas? Por razões económicas?
As Amas mergulham sem botijas porque dão continuidade a uma tradição milenar. Fazem-no como sempre fizeram as bisavós, avós e mães. E é esse gesto de herança que é importante perpetuar. As Amas têm um grande amor ao mar e observam a sua mudança ao longo das últimas décadas. Dar continuidade ao carácter artesanal do mergulho vai ao encontro da proteção da natureza. Essa preocupação é muito presente nas conversas das Amas. É uma preocupação sincera, sem protagonismos. No Japão, apesar do enorme desenvolvimento tecnológico, sabe-se que aquilo que é feito artesanalmente produz resultados mais certeiros e bonitos.
Como se preparam para o trabalho?
Antes de mergulharem devem vestir o fato térmico, que hoje em dia é obrigatório, e partem depois de colocarem um lenço branco carimbado nos templos e que as protege enquanto mergulham.
Conversou muito com estas mulheres?
Sim, muito. Ganhei amigas novas. Algumas eram Amas, outras foram pessoas generosas que me ajudaram muito em todo este processo. Muita gente está por detrás destas fotografias e do filme que estou a construir.
Descobrir as Amas será entrar num mundo novo, diferente do nosso.
As Ama-San estão sob proteção imperial?
É a tradição que constrói uma cultura. É um dever, por isso, a sua proteção.
Elas questionam o papel da mulher oriental e a natureza feminina?
As Amas são uma excepção numa sociedade patriarcal como o Japão. São corajosas e independentes. A sua imagem é o oposto da imagem das Gueishas. As Amas são mais fortes e corajosas do que os homens, que as ficam a ver partir para alto mar. Representam a força das mulheres.
Que mensagens quer passar com esta exposição?
Não procuro passar uma mensagem. Descobrir as Amas será entrar num mundo novo, diferente do nosso. Ficaremos, talvez, mais ricos por isso. Se assim for, fico feliz. Gostava muito que as Amas mergulhassem para sempre. Que tudo aquilo que é feito artesanalmente não se perdesse no tempo.
A ligação de Cláudia ao Japão
“O Japão e a sua cultura estiveram sempre muito presentes na minha vida: vi muita animação do Miyazaki quando era pequena, a primeira máquina de vídeo que os meus pais compraram vinha do Japão, a minha alimentação definiu-se através da macrobiótica que tem origem também no Japão, quando comecei a estudar cinema foram vários os realizadores que me ensinaram a filmar através das suas obras, como o Ozu, Mizoguchi ou recentemente, a Naomi Kawase… Sempre estive próxima do que se ia fazendo no Japão.”