Posso tratar o outro por “você”?

Joana Andrade Nunes faz uma viagem ao passado até chegar à resposta a esta pergunta. Depois deste artigo nunca mais terá dúvidas sobre se deve ou não tratar o outro por você.

Joana Andrade Nunes é consultora de protocolo, etiqueta e comunicação.

“— Você sabe a que horas ficou agendada a reunião do próximo Conselho de Administração?

— Confesso que não fiquei esclarecido. Você pode pedir à Clara para enviar a convocatória com a máxima brevidade, por favor?”

“— Maria, você está giríssima com esse vestido. Adoro!

— Obrigada; você é uma querida.”

 

“— Onde é que você colocou o dossier do cliente XPTO?

— É sempre a mesma coisa! Você nunca toma nota do que lhe digo. Está na sua secretária.”

 

“— Você vai pagar em dinheiro ou em cartão?

— Como você quiser.”

 

Não resisti aos pedidos que me têm chegado nos últimos tempos e, como tal, dedicarei o artigo deste mês a um dos temas mais “controversos” que tanta celeuma tem gerado. Nua e cruamente: “Afinal, podemos tratar o outro por você?” Sem qualquer snobismo comunicacional ou dogmático — e não pretendendo transformar este artigo num artigo académico — não poderia partilhar a minha reflexão sem que lhe demonstrasse a origem e percurso do pronome de tratamento “você” para que possamos chegar a bom porto.

Você”, o amargo pronome de tratamento a utilizar quando nos pretendemos referir a alguém na terceira pessoa, é o resultado final da evolução da fórmula de tratamento “vossa mercê” (vossa mercê, vosmecê, vancê, você):  o tratamento que, outrora, era concedido a todos aqueles a quem não era possível dirigir-se como “tu”.

Durante a dinastia de Borgonha, o tratamento “mercê” era concedido, na terceira pessoa, aos Reis sendo, como tal, o tratamento mais elevado que, na época, era concedido. Mais tarde, assim que os monarcas passam a adotar a fórmula “Sua Alteza” “Vossa Alteza” como fórmula de tratamento, a fórmula “vossa mercê” passou a ser generalizada aos nobres do reino e, paulatinamente, a ser a fórmula de tratamento adotada entre os fidalgos abandonando, evolutivamente, o carácter diferenciador que, inicialmente, lhe era atribuído.

Tendo em conta que o pronome de tratamento “tu” foi, desde a sua génese, o pronome adequado para o tratamento entre interlocutores com grande proximidade e intimidade, não se permitia (nem se permite) a sua utilização de inferior para superior (não só em idade, mas também em posição social). Como tal, a todos aqueles a quem um superior (em idade, hierarquia ou classe social) tratava por “tu” e não podiam responder na mesma moeda, tinham ao seu dispor duas opções:

  1. ou optavam pelo tratamento por “vós” —que ainda hoje é utilizado na Beira Interior e em ambientes eclesiásticos e/ou formais;
  2. ou pela fórmula de tratamento correspondente ao superior, o que, não raras vezes, se revelava no tratamento por “Vossa Mercê”.

Já no século XIX, as altas entidades (civis e religiosas) adotam a fórmula de tratamento “Vossa Excelência” consolidando a generalização da contração de “vossa mercê” para “você”, afantando-a do seu significado original. Na verdade, estamos perante uma verdadeira evolução — e não mera contração — dado que o significado da mesma não coincide com o significado original da expressão “vossa mercê”..

Com a implantação da Primeira República, as altas entidades oficiais continuam a ser tratadas como “Excelência”, sedimentando-a como a forma de tratamento para altos dignitários civis e eclesiásticos.

A já referida evolução do pronome “você” — com distanciamento do significado original de “Vossa Mercê” — determinou que fosse lido pela sociedade civil como uma forma de tratamento rude, indelicada e, em determinadas regiões, verdadeiramente ofensiva. Não é por acaso que as expressões “Você na minha terra é um burro” e “Você?” Você na minha terra é estrebaria” continuam, em pleno século XXI a ter aplicabilidade.

Não obstante o protocolo linguístico permitir tratamento por “você” entre pares e de superior para inferior (em idade, hierarquia ou estatuto social), o preconceito que o acompanha e a impossibilidade de ser utilizado de inferior para superior (como tantas e tantas vezes se tenta praticar) inviabiliza, na prática, a sua utilização inócua de qualquer juízo de valor.

Pergunta-me: Joana, se não posso tratar o meu interlocutor na segunda pessoa nem por “você”, que alternativa apresenta?

Se, como eu, é apaixonado por comunicar, seguramente já leu (e releu!) as várias obras de Dale Carnegie. Fazendo minhas as suas palavras, o nome de uma pessoa é, para a própria, o som mais doce e importante; soa a magia.

Não é, assim, de forma “inocente” que qualquer comunicador de excelência — e, nesta sede (alguns) políticos são exímios nesta arte — faça questão de tratar o(s) seu(s) interlocutor(res) pelo nome. O nosso nome, quando pronunciado, funciona como magia; é único; é o elemento que permite que nos diferenciemos dos restantes. Cria — ou, no limite, é o primeiro passo para criar — empatia; para levar a nossa mensagem a bom porto.

Se ainda não tem por hábito tratar o outro pelo nome, convido-o a experimentar o poder transformador que esta estratégia apresenta. Use e abuse, literalmente, do nome do seu interlocutor durante o discurso (e não apenas no início). Quando ouvimos o nosso nome, sabemos que aquela mensagem nos é dirigia — e não ao público geral e indiferenciado.

Convido-a, agora, a reler os exemplos que apresentei inicialmente substituindo — ou aniquilando — a utilização do pronome “você”:

“— Afonso, sabe a que horas ficou agendada a reunião do próximo Conselho de Administração?

— Confesso que não fiquei esclarecido. A Rita pode pedir à Clara para enviar a convocatória com a máxima brevidade, por favor?”

 

“— Maria, está giríssima com esse vestido. Adoro!

— Obrigada; a Inês é uma querida.”

 

“— Onde é que a Isabel colocou o dossier do cliente XPTO?

— É sempre a mesma coisa! O Dr. Lopes nunca toma nota do que lhe digo. Está na sua secretária…”

 

“— Vai pagar em dinheiro ou em cartão?

— Como o Senhor quiser.”

 

A utilização do nome transforma, de imediato, a perceção da mensagem apresentada (em particular quando se trata de um pedido). Seja um comunicador empático; seja um comunicador que sabe levar a sua mensagem a bom porto; domine, como ninguém, a Arte de comunicar com empatia e elegância substituindo o pronome “você” pelo nome do seu interlocutor: um gesto simples mas verdadeiramente transformador.

 

Joana Andrade Nunes, advogada e fundadora da marca de vestuário de luxo infantil Tierno, é  também autora do blogue “Camomila Limão”, no qual partilha, desde 2014, a paixão pela arte de saber estar e receber. O seu livro Quatro Gerações à Mesa foi considerado o melhor livro de culinária de Portugal pelos Gourmand World Book Awards (2016) e o 3.º melhor do mundo pelos Gourmand World Book Awards 2017. Em junho de 2020, fundou o projeto “Etiqueta Moderna”, que promove cursos de etiqueta e protocolo. 

 

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