Patrícia Boura já tinha oito anos como diretora financeira de empresas como a Blockbuster e a Mandala quando entrou na Fundação do Gil, em 2006, com a essa mesma função. Mas só dois anos mais tarde, após um mestrado em Economia Social, no ISCTE, percebeu exatamente o que fez aceitar este convite: o propósito, a vontade de mudar o mundo para melhor. Desde então tem colocado tudo o que aprendeu ao serviço da Fundação do Gil, instituição que desde 1999 trabalha em projectos de longa duração que prestam apoio a famílias com crianças doentes crónicas e/ou em risco social. Entre os seus projetos âncora contam-se a Casa do Gil – Centro de Acolhimento dos 0-12 ANOS, a receber crianças retiradas por negligência social, e o projeto Cuidados Domiciliários Pediátricos que apoia crianças com doenças crónicas e suas famílias. Em 2019, e sempre com com o objetivo de conseguir mais receitas que permitam apoiar mais crianças, construiu nos seus jardins, a Casa do Jardim, um espaço preparada para acolher eventos empresariais mesmo no centro da capital.
Nesta entrevista, Patrícia Boura partilha as suas motivações e os seus desafios como presidente executiva da Fundação do Gil — cargo que ocupa desde janeiro de 2014.
Formou-se em Contabilidade e Administração. O que é que a atraiu a esta área?
A Gestão sempre foi a minha área de interesse, mas tinha uma noção clara, daquilo que ia lendo, que a grande maioria dos gestores não sabia ler mapas financeiros e isso era uma menos valia muito significativa para uma gestão eficiente, por isso decidi que iria aprender a ler mapas contabilísticos e financeiros para tomar boas decisões de gestão. E assim foi. Fiz Auditoria Financeira, a que se seguiu uma pós-graduação na Católica em Fiscalidade Avançada (outra área sensível) e só mais tarde o Mestrado no ISCTE em Economia Social e Solidária, que foi a minha paixão, sem dúvida.
A formação contínua é para mim uma peça fundamental no desenvolvimento pessoal e profissional. Terminei agora na AESE numa formação em Liderança no Feminino [One Step Ahead]. Seguir-se-ão outras formações, certamente.
Trabalhou 10 anos no setor empresarial, nomeadamente no segmento audiovisual. Quais os marcos mais significativos e que lições trouxe dessa experiência?
Adorei trabalhar no sector empresarial e aprendi imenso sobre gestão de empresas. Sinto que foi estruturante para o meu percurso profissional e para a minha função actual. Gerir pequenas e médias empresas permite ter um overview de toda a empresa e do impacto de cada decisão na gestão, no todo da empresa. Isso sempre me atraiu. Nunca tive vontade de trabalhar em multinacionais precisamente por faltar essa noção do todo e do impacto. Toquei todas as áreas da gestão, desde recursos humanos, produção, jurídico, negociações, área financeira e isso deu-me uma experiência muito vasta sobre a vida das empresas.
“A gestão do setor empresarial tem que ser o coração da gestão das organizações sociais”
Como é que surgiu a oportunidade de ingressar na Fundação Gil e como evoluiu o seu percurso até ser convidada para presidente?
Tive duas vidas na Fundação do Gil. Primeiro, enquanto diretora financeira, precisamente quando a Fundação ia criar a Casa do Gil – um projeto com grande investimento associado e para o qual era exigido enorme rigor financeiro e agora, nos últimos oito anos, enquanto presidente executiva do Conselho de Admnistração.
Enquanto diretora financeira frequentei o mestrado no ISCTE em Economia Social e Solidária e foi esse o momento em que validei aquilo que me tinha feito aceitar o desafio da Fundação – um propósito era aquilo que me movia na gestão! Este setor social, para além de todas as componentes da gestão (que eu adoro) acresce o propósito e o compromisso com a sociedade, o compromisso de trazer mudança positiva ao mundo (mesmo que apenas só ao mundo em nosso redor). Esse impacto positivo foi aquilo que me fez querer dedicar a minha experiência a este setor. No ano seguinte a terminar o mestrado fui desafiada por um desses professores a integrar a CASES como vice-presidente, que era o organismo que regulava, desenvolvia e promovia a Economia Social. No início não quis aceitar o desafio porque não me atraia nada o sector público. Tinha uma série de preconceitos (que se vieram a verificar, a maior parte deles) que me afastavam, mas acabei por decidir que seria um desafio e uma experiência interessante e da qual tiraria aprendizagens. Assim foi, aceitei e só mais tarde percebi que era um cargo político com todas as consequências inerentes a isso. Fui ao engano, sem saber bem ao que ia. Estive três anos e meio na função, com dois governos diferentes ,e com uma experiência, que embora não queira repetir, trouxe alguma aprendizagem.
Quando o meu mandato terminou, o presidente do Conselho de Curadores da Fundação, o Eng. Guilherme Magalhães (também fundador), ligou-me e lançou-me este enorme desafio que era assumir a Fundação do Gil, primeiro como administradora executiva e passado seis meses como presidente executiva do Conselho de Administração. A Fundação estava numa fase frágil do ponto de vista financeiro. Foram muitos e muitos desafios desde logo.
Aqui, de facto, toda a experiência transversal da gestão de pequenas e médias empresas traz uma vantagem competitiva. A gestão do setor empresarial tem que ser o coração da gestão das organizações sociais. Uma gestão totalmente profissional com foco nos resultados e nas pessoas. Gerir com cabeça e coração. Trazer o melhor das empresas às organizações sociais. Estes dois sectores têm muito mais em comum do que o que pode parecer à primeira vista.
Quais os principais desafios que enfrenta na Fundação do Gil e como tem tentado contorná-los?
Enquanto organização social o principal desafio é sempre o da sustentabilidade financeira. Foi precisamente por isso que construímos nos jardins da Fundação, a Casa do Jardim – um espaço para eventos empresariais e da sociedade civil, que nos permitem gerar receitas.
Habitualmente as organizações sociais só controlam um lado da Demostração de Resultados, ou seja, os custos. Como não facturam, não controlam as receitas. Estão dependentes de donativos, parcerias, apoios, entre outros. Quisemos fazer face a esse desafio e trabalhar proactivamente na geração de receitas, para nos dar autonomia financeira para continuar aquilo que é o nossa missão: inovar na saúde pediátrica. Criar modelos de intervenção inovadores, testá-los e disponibilizá-los à sociedade.
O projecto de Cuidados Domiciliários Pediátricos, presente em seis hospitais públicos, leva o hospital a casa de crianças com doença crónica. Apoia estas famílias de forma multidisciplinar (psicológica, social e saúde) evitando internamentos prolongados e desnecessários. Para além de poupar muito dinheiro ao Estado, facilita a vida destas famílias a traz conforto acrescido. Da análise de impacto ao projeto concluímos que reduzimos 45% da frequência dos reinternamentos, aumentamos o bem-estar emocional da criança em 65%, aumentamos a saúde física em 48% e aumentamos o sentimento de autonomia dos cuidadores em 46%. Apoiamos cerca de 700 crianças com doença crónica ou com necessidades paliativas todos os anos, nas suas casas. Em 2018 alargámos o âmbito da actividade aos cuidados paliativos pediátricos, inexistente no país, à data. Inovámos mais uma vez, trazendo Portugal para o mapa da provisão de Cuidados Paliativos Pediátricos. Portugal estava no último lugar da Europa e abaixo do Gana.
Com a Casa do Gil, Centro de Acolhimento para crianças em risco sinalizadas pela Segurança Social, trabalhamos o tema da saúde metal de forma muito consciente. Cada criança tem momentos individualizados com os seus educadores de referência. A nossa preocupação com a saúde mental infantil tem vindo a aumentar ao logo dos anos. Os relatórios da Organização Mundial da Saúde, antes da pandemia, já nos traziam dados assustadores: uma em cada 5 crianças apresentava evidências de problemas de saúde mental, dessas cerca de metade sofria de uma perturbação psiquiátrica e que, sem o devido acompanhamento degenerará em problemas graves na vida adulta. Decidimos, por isso, criar uma clinica de saúde mental infantil (desenvolvimento infantil) para poder trazer este tipo de acompanhamento às crianças da Casa do Gil, mas também da sociedade em geral. Terá um modelo de negócio hibrido em que quem tem capacidade financeira paga as consultas para compensar as consultas de quem não tem — ou seja, 50% mercado e 50% social. Assim, o projeto será auto-sustentável.
“Se o que queremos é ganhar dinheiro, este não é o sector certo para se trabalhar”
Quais as grandes mais-valias que a liderança no feminino pode trazer às organizações, em particular no que concerne ao terceiro setor?
O terceiro sector é um sector tipicamente cuidador. De cuidado e atenção pelo outro. Penso que as mulheres trazem essas competências intrínsecas. São historicamente cuidadoras e por isso trazem essa competência tão importante. Também são, regra geral, conciliadoras. Procuram consensos e são muito resilientes. Estas características (que não são um exclusivo, obviamente, das mulheres) são muito importantes neste sector, embora não se possa descurar todas as competências técnicas necessárias à gestão destas organizações. Continuo a acreditar que é fundamental ter bases e ferramentas muito sólidas de gestão sob pena de pôr em causa toda a organização. Uma má gestão arruína a melhor das missões.
Que conselhos deixa a outras mulheres que desejem fazer uma carreira de sucesso do setor da economia social?
Acreditar no que se faz. Adorar o que se faz. Capacidade de resiliência. Isto é fundamental neste setor. Costumo dizer que quem trabalha neste setor precisa mesmo de estar de corpo e alma porque não é, certamente, pelo dinheiro. Obviamente que este sector não paga o equivalente ao setor empresarial. Se o que queremos é ganhar dinheiro, este não é o setor certo para se trabalhar. Eu tento compensar este défice com salario emocional. Fizemos um Plano de Felicidade Organizacional para a nossa equipa e vamos tentando compensar o gap.
Leia mais artigos com Patrícia Boura aqui.