“Ouvimos falar do problema da autoestima, da segurança, e quando olhei para a plateia fiquei com a sensação que não tinha nada para dizer, assomou a síndrome do impostor, que não vou acrescentar grande valor. A autoestima e autoconfiança têm de ser trabalhados nas mulheres desde muito cedo, porque, socialmente, é muito mais incutido nos homens do que nas mulheres, o que é muitas vezes um travão para a liderança”, foi assim que Isabel Barros, administradora da Sonae MC, abriu o debate Women on Boards.
As perguntas que ecoavam na sala eram “como se chega a um board?”, “é preciso fazer alguma coisa difícil e diferente por sermos mulheres?”. Isabel Furtado, administradora e CEO da TMG Automotive, respondeu que “não há percursos iguais, ideais, nem normais e o meu percurso não foi normal tirando a oportunidade da educação familiar e académica que me foi dada”.
Estudou fora de Portugal entre os 13 e os 23 anos e quando regressou, há 30 anos, a primeira prioridade foi adaptar-se. Casou-se com um médico, o que envolvia horas de urgência, especialidade, e resolveu ter os filhos cedo e, aos 30 anos, tinha três. “Não foi uma má decisão porque isso depois permitiu-me ter outra disponibilidade e é mais fácil deixar uma criança de sete anos a um avô do que com sete meses”, refletiu.
O percurso de Isabel Furtado foi gradual sobretudo porque se trata de uma empresa familiar, o Grupo Manuel Gonçalves, em que representa a terceira geração. Teve vários cargos de direção, o que é normal nas empresas, até que um dia o presidente da empresa, que era o tio António Gonçalves, lhe disse que iria ser administradora.
“Se me perguntarem se fiquei admirada, diria que sim e que não, as pessoas em volta ficaram mais admiradas. Na empresa familiar sempre houve gestores profissionais, mas no fundo sou mulher, não sou a mais velha, e tenho três irmãos homens. Mas dentro da empresa talvez fosse eu que tivesse o percurso mais consistente e com maior experiência industrial que era necessária para gerir uma empresa industrial”, justificou.
Foi para a administração para trabalhar não só com uma geração acima da sua, como da família: “são dois desafios juntos, mas correu muito bem”. Mais tarde, em 2010, foi desafiada para gerir a TMG Automotive, mas para isso teria de deixar a empresa que está ligada à moda para passar para uma que faz tecidos plastificados e outros revestimentos de materiais para interiores da indústria automóvel.
“Os lugares para os boards não aparecem nos jornais”
O objetivo era dar-lhe “algum empowerment até chegar um gestor externo”, mas, meses depois houve um trigger porque, “muitas vezes nós, mulheres, somos levadas a tomar decisões quando nos ‘picam’ da forma errada”. Isabel Furtado estava numa empresa na Alemanha quando ouviu alguém dizer a um seu concorrente: “Don’t worry, TMG Automotive is a charming little company, but it is ran by a woman”. Não desiste e doze anos depois é uma empresa que tem completa paridade de género e que é o n.º2 da Europa. Além disso, “os cargos mais masculinizados como logística, por exemplo, são de mulheres e talvez por terem uma mulher CEO também corre melhor”.
Para Isabel Furtado “não há soluções chave na mão, cada uma tem de fazer o seu percurso, de tomar prioridades, discernir o que é importante e o que é o acessório”.
Rita Veloso, administradora do Centro Hospitalar Universitário do Porto, foi muito pressionada para seguir um dos cursos tradicionais como medicina, engenharia, direito, mas respondia que “trabalhar num hospital jamais, ser informática ou trabalhar nessa área jamais, mas o karma é tramado e hoje trabalho num hospital e, durante muitos anos, trabalhei em projetos ligados à informática, e sou casada com um informático”.
Confessa que o dia 1 foi quando se abriu a porta do trabalho e entrou para a Ibersol onde estava Isabel Barros, que “me recebeu de braços abertos nos recursos humanos na Ibersol para o meu estágio de psicologia”, tendo feito a licenciatura e o mestrado em Psicologia na Universidade do Porto em 2004. Rita Veloso ingressou depois na Marnorte, onde chegou a trabalhar numa pedreira e a subir a retroescavadoras sozinha. “As experiências e os caminhos que seguimos, as pessoas com quem nos cruzamos são pontos fundamentais, os sítios que olhamos quando vamos numa viagem é que vão formando o nosso caminho”, disse Rita Veloso.
“Chegar a um board foi um caminho natural de muito trabalho, quero acreditar porque na administração pública as quotas são maiores, 40% destes lugares são ocupados por mulheres. O caminho foi sempre mostrar trabalho e alguém um dia olhou para nós e reconheceu valor, mérito e competência e o convite apareceu. Os convites chegam, mas normalmente não é a abrir o jornal, porque estes lugares não aparecem nos jornais”, referiu Rita Veloso.
O estigma: mulher, psicóloga, RH
Isabel Barros é psicóloga e trabalhou na área dos Recursos Humanos, que era muito limitadora para as suas ambições positivas, para canalização das energia. “Percebi rapidamente o estigma da psicóloga, da caixinha das coisas bonitas que existem na organização, e se o não tirasse nunca iria conseguir ter um voz e influência no negócio, como sentia que poderia dar e aportar”.
O passo seguinte foi fazer um MBA na EADA Business School de Barcelona e Nagoya International School do Japão. Era um objetivo muito instrumental para tirar o rótulo de uma coisa soft: “mulher, psicóloga, recursos humanos, era tudo o que nas empresas me puxava para trás”. Com o curso executivo feito, era tempo de tirar um retorno e portanto ter filhos foi adiado, e só aconteceu aos 37 anos e 39 anos. “Tinha de dar tudo naquela fase da minha carreira, porque temos de dar mais, provar mais, fazer uma carreira internacional, é esse extra mile que nos faz progredir, sobressair em relação aos homens”, refere Isabel Barros.
Em 2011 entrou para a Sonae e “foi uma sorte porque é uma empresa que na altura tinha um CEO e hoje tem uma CEO e em que o tema de género e diversidade foram colocados nas agendas de todos os boards e comissões executivas, e portanto as minhas barreiras foram mais diluídas, mas sempre me ofereci para as posições e os desafios mais difíceis e assim cheguei ao board. Numa empresa de retalho alimentar em que as mulheres são maioritárias como consumidoras não se poderia manter um board em que as mulheres não estivessem representadas”. Isabel Barros acha que chegou a administradora de forma natural, mas, quando olha para trás, acha que há um conjunto de decisões, ações, e opções que se fazem ao longo da vida que determinam essa vontade e esse achievement.
Um dos aspetos focados por Isabel Barros foi o de que existem “problemas de género nas famílias, quando a paridade não existe, mas eu tenho paridade, não tenho cobranças”. Este aspeto permitiu-lhe “progredir sem culpa e ser ambiciosa sem culpa”.
As quotas são um mal necessário
Isabel Barros é favorável às quotas embora nem sempre o tenha sido. Achava que as quotas estavam relacionadas com o não mérito, mas percebeu que o problema não está no mérito. “Os dados referem que em circunstâncias iguais e com o mesmo mérito, em cada dez homens promovidos apenas sete mulheres o são”.
“As quotas não deviam ser assunto e comecei por ser contra, porque considerava que estas nos minimizavam como mulheres. Concordo que neste tema tenha que haver, mas é o assunto mais ridículo e não devia ser assunto. Devíamos ter uma sociedade em que o que interessa é a competência e desempenho e o género vem depois”, acrescentou Isabel Furtado. A CEO da TMG Automotive salientou que era a primeira vez que falava para uma plateia cheia de mulheres porque, normalmente, só fala para “sessões boring, cheias de homens de fatos cinzentos e azuis-escuros”.
“Há uma discriminação intencional e gravíssima contra as mulheres, e não é no Terceiro Mundo, mas na Europa e nos Estados Unidos. Sou a favor das quotas mas custa-me dizer que são necessárias quotas, assumir que no século XXI, precisemos desse handicap para colocar as mulheres nos sítios que elas merecem”, sublinhou Isabel Furtado, para quem “é um sistema muito injusto porque uma mulher tem de valer por dois homens para chegar onde eles chegam”. Concluiu dizendo que “as quotas são um mal necessário”, o que obteve a concordância de Rita Veloso.
A administradora do Centro Hospitalar e Universitário do Porto disse que era a única forma de fazer a mudança, “porque não se chega lá de outra forma”. Reforçou que “seja com quotas, mas que aconteça uma mudança, e, quando equidade de género estiver enraizada, que a chegada ao topo seja por mérito, vontade, por decisão e não por imposição”. Para Rita Veloso primeiro tem de haver esta mudança cultural e como muitas outras mudanças, por vezes, só acontecem por decreto.
Alertou, no entanto, que na área da saúde se poderá ter no futuro um cenário inverso porque hoje 80% dos alunos de medicina são mulheres, por isso é previsível que no futuro as lideranças na saúde sejam cada vez mais femininas.
Isabel Barros referiu ainda que a Sonae MC procurou perceber porque é que sendo as mulheres predominantes na empresa não tinham uma progressão na carreira. “Percebemos que entravam mais mulheres mas havia um primeiro nível de direção que era o nosso bottleneck e que estava muito associado à maternidade, e a um conjunto de funções associadas a resiliência, disponibilidade 24/7, isto não é para todos, é para os melhores, é muito duro, o que autoexcluía as mulheres desses cargos”, explica Isabel Barros.
Para que as mulheres progridam, hoje na Sonae há targets não só para o board mas também para outros níveis de direções. “Em alturas de promoção e revisão salarial medimos e ou é 50-50, ou está nos targets, ou vai para trás”, revela Isabel Barros. Defende que é possível ter horários das 9 às 6, embora nas lojas não possa ser esse o horário. Mas só se pode progredir com alguma conciliação e nesse sentido a Sonae decidiu que não há reuniões antes das 9h da manhã nem depois das 18 horas.
Leia mais sobre a 7.ª Grande Conferência Liderança Feminina aqui.
Leia mais sobre as edições anteriores da Grande Conferência Liderança Feminina aqui.