José António de Sousa é gestor aposentado depois de quatro décadas na liderança de multinacionais.
O Afeganistão é um território árido, desértico, montanhoso, paupérrimo, sem especial valor económico para além de uma posição geoestratégica importante, ao ligar o Oriente Médio à Ásia Central, o que o transforma num ponto de passagem essencial para a Rota da Seda. As condições descritas fazem do Afeganistão também um produtor de ópio por excelência, com mais de 300.000 hectares dedicados ao cultivo da papoila, o que permite colocar entre 300 a 500 toneladas de heroína no mercado…
Ao longo dos séculos o Afeganistão foi objeto de cobiça e de campanhas militares por parte de todo o tipo de forças beligerantes e imperialistas. Desde Alexandre o Grande (356 aC), passando por Gengis Khan (século XII), um bárbaro louco e assassino, que matou um estimado de 30 a 50 milhões de civis inocentes durante as suas campanhas militares, segundo a Wikipédia, ganhando assim o estatuto de maior facínora da Humanidade (a par de Mao Tse Tung, com idêntico record de assassinatos, e bem à frente de Stalin, que “só” mandou matar um estimado de 20 milhões de oponentes), seguido pelo Império Britânico (em meados do século XIX), pela Rússia (1979-1989) e, a mais recente, pelos EUA e parceiros da NATO (2001-2021).
Ou seja, há mais de 2.000 anos que toda a espécie de forças poderosas, máquinas de guerra perfeitas, bem oleadas e equipadas, muito mais numerosas do que os combatentes afegãos que se defendem das invasões, com muito dinheiro para gastar, andam a tratar de conquistar um deserto rochoso e inóspito, habitado por humildes maltrapilhos barbudos, por motivos que vão desde a tal importância geoestratégica (Império Britânico e Rússia), passando pelo simples apetite por agregar território aos que já tinham sido conquistados previamente (Gengis Khan), até ao da tentativa de impor um modelo de “democracia e valores civilizacionais ocidentais” (EUA) a uma população que provavelmente nem daqui a outros 2.000 anos terá aderido aos mesmos.
Nunca ninguém o conseguiu. Aquele povo indómito pura e simplesmente não se deixa conquistar, são guerreiros de guerrilha excecionais, que conhecem o seu território e as cavernas de montanha para esconder-se como ninguém alguma vez irá conseguir fazê-lo, pelo que os exércitos convencionais, com todo o poderio bélico tecnologicamente sofisticado de que dispõem, até hoje nunca conseguiram impor-se.
Quando a Rússia invadiu o Afeganistão (1979-1989), logo os EUA acharam que era fundamental, por “razões geoestratégicas”, ajudar os afegãos (formalmente ainda não havia talibãs…) a libertar-se do jugo do opressor. Até o Silvester Stallone foi mandado por Hollywood para o Afeganistão…. Quem não se lembra das cenas de filme em que o Rambo, esse personagem mítico, juntamente com meia dúzia de maltrapilhos, aniquila os malvados e poderosos russos invasores, numericamente muito superiores… Como desde a II Guerra Mundial os EUA não ganham no terreno nenhuma das batalhas e das guerras em que se metem, o Rambo é a figura que Hollywood inventou para massajar a esmagada auto-estima do povo americano… Ganha-se nos filmes o que nunca se consegue ganhar no terreno, e endromina-se a população para que continuem a apoiar as intervenções militares não solicitadas no estrangeiro. O complexo militar-industrial americano assim o obriga.
Mal sabiam no entanto os americanos no que se estavam a meter. Durante a guerra Afegã- Russa, os americanos armaram os afegãos e ajudaram-nos a lutar no terreno. Em vez de aprender a cultura, os hábitos e costumes desse povo e, porque não, por onde eles se escondiam na guerra contra os russos, os americanos acharam certamente que sem eles (e o Rambo) nunca os russos teriam sido derrotados.
Por contra, já os afegãos aprenderam o que quiseram e puderam sobre os “aliados” americanos, e guardaram religiosamente as armas que lhes deram, e as poucas que os russos deixaram, nunca se sabe, não é?…
Em 1994, 5 anos depois dos russos saírem, nasce em Kandahar no Afeganistão um movimento religioso de estudantes (talib, taliban no plural, talibãs em português), assente no misticismo e no mais primitivo e retrógrado fundamentalismo religioso, que rapidamente se consolida e domina largas partes do território. Muitos dos seus membros mais experientes provêem das hostes de antigos combatentes contra o invasor russo, pelo que dominam a arte da guerra de guerrilha, e a manipulação de armas modernas. Expandem-se para o Paquistão e, para “exportar” a sua mensagem radical de fundamentalismo islâmico, passam a albergar e a treinar terroristas dispostos a morrer pela promessa do paraíso celestial (traduzido numas dezenas de virgens que lhes serão facultadas depois de mortos), em troca do sacrifício da vida que os obriga a prescindir dos prazeres terrenais. Só mesmo o obscurantismo mais obsceno explica, que em pleno século XXI, com internet na ponta do dedo, e um Google que basicamente nos mostra e ensina culturalmente o que quisermos, ainda haja atrasados mentais que acreditam nestes contos da Carochinha. Mas há.
Estando convicto que as generalizações são odiosas e injustas e, conhecendo muitos casos de cidadãos americanos em que isto não é certo, dificilmente haverá quem me contrarie quando digo que o americano médio é insolente, arrogante, mal-educado, soberbo, e culturalmente um burgesso. Tirando as honrosas exceções, acham que o seu “American way of living” deve estar presente em todos os países, com todos os seus ingredientes (culturais, gastronómicos, etc.), seja no Burkina Faso, no Burundi, no Dubai, na Noruega ou… no Afeganistão! E, claro, isso implica ser o polícia do mundo também, para poder impor valores.
Este modelo funcionou bem durante umas décadas com os créditos alcançados e firmados na II Guerra Mundial. Com as principais potências (Rússia, Japão, Alemanha, França, Inglaterra, etc.) destruídos, e a China ainda adormecida no período que antecedeu a chegada de Mao TseTung ao poder, foi relativamente fácil a máquina de guerra americana virar-se para a produção dos bens de que as sociedades destruídas pela guerra careciam, e consolidar-se como a maior potência mundial no pós-guerra.
Com o êxito chega invariavelmente o húbris e complacência, e apesar das escolas de negócios americanas continuarem a ser líderes de pensamento de negócios no mundo, e líderes na qualidade do ensino, não estão aparentemente a conseguir passar a mensagem para as suas elites militares, políticas e económicas. Os erros amontoam-se, e são particularmente gravosos no tocante à forma de exercer a política externa.
Os americanos estiveram 20 anos no Afeganistão, quase uma geração. Trataram de impor um modelo de sociedade ocidental num território que claramente (a História não mente) e visceralmente o recusa. Em vez de escolher para governar e liderar as frágeis instituições públicas, governo incluído, pessoas competentes, escolheram uns palhaços locais cuja única preocupação foi acumular e roubar dinheiro descaradamente para poderem fugir atempadamente com carradas deles, como fez o Presidente do Afeganistão. E, depois de o incrível e irresponsável Donald Trump ter negociado um tratado com os terroristas talibãs, em Fevereiro de 2020, prometendo sair do Afeganistão até Maio de 2021, sob a batuta de Biden foram miseravelmente incompetentes para gerir esse processo de saída de forma ordenada, deixando antes as tais instituições (polícia, exército, tribunais, governos locais e governo central, administração pública, etc.) a funcionar em termos sólidos e operacionais.
Uma parca semana bastou para erradicar do mapa completamente o fruto de 20 anos de gestão americana no Afeganistão, e levar esse sofrido povo de regresso à barbárie medieval similar à de Gengis Khan! As trevas regressaram ao Afeganistão. Circulam videos na net a mostrar talibãs a executar impiedosamente mulheres na rua, só por estas terem os pés à mostra, ou andarem com um lenço vermelho…
O único que nos resta esperar é que a geração nascida no século XXI, que tem vivências pessoais para poder comparar o que é viver sob o terror assassino dos talibãs, versus numa sociedade aberta e tolerante, um dia se rebele e sejam eles próprios a erradicar os talibãs. Os problemas do Afeganistão terão que ser resolvidos por locais, e nunca por potências estrangeiras invasoras a querer impor o seu modelo de sociedade.
Dá tristeza ver como a esquerda e a extrema-esquerda reagiram à saída intempestiva e imprudente dos americanos do Afeganistão. Yanis Varoufakis, por quem eu até nutria um certo respeito intelectual, veio para as redes sociais exultar com a derrota do “imperialismo e do liberal-neoconservadorismo, uma vez por todas”, e manda como mensagem de solidariedade às mulheres afegãs um “aguentem-se aí, irmãs”. Isso para quem está no chão, a esvair-se em sangue, com um tiro na cabeça por um motivo fútil, serve-lhe mesmo de consolo.
Vivemos num mundo em que o palco mediático está cada vez mais dominado por idiotas sem qualquer sentido comum. A nossa forma de sermos solidários com as mulheres afegãs terá neste momento de passar por ajudar, de formas que terão que ser estudadas e montadas no terreno, de imediato, a organizar a resistência interna ao regime de barbárie primitiva que tomou conta do Afeganistão. Nunca por uma nova invasão.
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