José António de Sousa: Devolver o Allgarve aos portugueses

José de Sousa lamenta a sucessão de programas de promoção, sem um fio condutor, que condenam a principal região turística nacional a um destino barato para estrangeiros e pouco aprazível para os nacionais.

José António de Sousa fez a maior parte da sua carreira na liderança de multinacionais no estrangeiro.

José António de Sousa é gestor aposentado depois de quatro décadas na liderança de multinacionais.

 

No início de 2007, o Governo e o Turismo de Portugal lançaram uma campanha milionária para promover a marca “Allgarve — Experiências que marcam”, definindo a iniciativa como “a identidade de um programa que quer criar raízes”, nas palavras do Ministro da Economia Manuel Pinho (não deixou saudades). O Secretário de Estado do Turismo, Bernardo Trindade, ia mais longe e anunciava uma série de iniciativas para animar o Algarve, pois nas suas palavras “um dos pontos a melhorar é “a inexistência de uma animação com glamour no Algarve” (pelo amor de Deus…).

Esta continua a ser a nossa triste sina em Portugal. Torram-se dezenas de milhões de euros em programas sem sentido nenhum, que são fogos-fátuos sem um fio condutor, sem uma visão clara, sem continuidade, sem gestores que assumam a responsabilidade pela sua execução. Como é óbvio só depois de se pensar muito bem o que se quer fazer, e de se decidir o caminho estratégico a seguir.

O problema do Algarve, o maior para mim, é ter-se desenvolvido sem diferenciação competitiva clara da maioria dos mercados que oferecem a mesma fórmula: sol e praia a turistas anglo-saxões, nórdicos e germânicos (onde ambas as características climático-geográficas não abundam).

Mas nem mesmo a vender a fórmula do binómio sol / praia, soubemos realmente fazer um bom trabalho. Ainda me lembro (pre-pandemia…) de uma tarde soalheira e cálida de Novembro em Portugal (no Norte da Europa estavam já temperaturas negativas, a neve caía copiosamente), em que eu estava tranquilamente em roupa leve de verão a conviver gastronomicamente numa esplanada junto ao mar algures no Alentejo, de ter comentado aos meus amigos. “Se o Turismo de Portugal nos tirasse uma foto e a publicasse nas principais revistas europeias, com um pitch provocativo, no próximo fim-de-semana teríamos charters de alemães, suecos, finlandeses, etc. enregelados e ávidos de sol a chegar a Portugal”.

Como já vimos durante a crise financeira de 2008, e agora nos últimos dois anos de pandemia, os estrangeiros para os quais o Algarve foi desenhado e pensado (e que nos esforçamos sempre por atrair todos os anos, como se a nossa vida deles dependesse), são aves de arribação, nunca ficam muito tempo no mesmo sítio, não são fiéis (exceções confirmam a regra).

O Algarve está numa séria posição de desvantagem em relação aos mercados turísticos concorrentes da bacia mediterrânea (Turquia, Espanha, Chipre, Grécia, etc.). Como dizia com piada Miguel Sousa Tavares na sua última crónica semanal, a nossa nortada, a que corre incessante nas praias atlânticas de Norte a Sul do país, e na maioria das praias do Algarve também, é insuperável (e insuportável…).

Como já vimos durante a crise financeira de 2008, e agora nos últimos dois anos de pandemia, os estrangeiros para os quais o Algarve foi desenhado e pensado (e que nos esforçamos sempre por atrair todos os anos, como se a nossa vida deles dependesse), são aves de arribação, nunca ficam muito tempo no mesmo sítio, não são fiéis (exceções confirmam a regra). Não é certo que arribem ao mesmo local no ano seguinte. São campeões da egolatria interesseira, mexem-se em função de interesses particulares, entre os quais predomina conseguir pacotes turísticos de qualidade máxima com preço de arrasar. Não os podemos criticar por isso, provavelmente a maioria de nós faça o mesmo. Mas queremos mesmo ter a economia do Algarve a depender deste tipo de gente, e praticamente só deste ? Ouvindo a entrevista feita ao Presidente da Associação de Hoteleiros do Algarve, e a entrevista feita ao Presidente de uma conhecida cadeia hoteleira nacional, e o choradinho e a pedinchisse de apoios que fizeram na televisão, é gente que não aprendeu nada com as duas principais crises que afetaram o território em pouco mais de uma década.

Muitas vezes me perguntei, depois de pedir a amigos que vivem em Londres para me mandar orçamentos para férias no Algarve nas agências e tour operators que trabalham este destino (para ter termos de comparação), como é que a nossa hotelaria aguenta vender serviços aos preços miseráveis que recebem desta gente. Como é possível vender-se em Londres um pacote de uma semana num hotel de 3 / 4 estrelas em meia-pensão por 500 / 600 libras (aproximadamente entre 600 e 700 euros) por adulto, que inclui voo, e ao turista nacional pedir-se acima de 1.000 / 1.200 euros pelo mesmo produto… Sabendo-se que dos 600 ou 700 euros do turista inglês entregues na agência provavelmente nem metade chegue ao hoteleiro algarvio (comissão de agência e tour operator levam talhada significativa do que o cliente paga), enquanto que daquilo que o turista português paga, tirando a comissão da agência, fica tudo para o hoteleiro …

Nunca vi o Algarve tão escandalosamente a saque como este ano, em que passei a primeira semana de Julho no Alvor. O meu restaurante de toda a vida, um ex-libris na praia do Alvor, no passado uma das melhores bancas de peixe do país, reduziu a oferta a duas ou três espécies piscatórias, aumentou os preços quase 40 0/0 em relação ao ano passado, e coloca na banca do peixe espécies de “aviário” (aquicultura) sem avisar os clientes, aplicando obviamente os mesmos preços ao peixe de mar e ao peixe carregado de antibióticos e gosto lodoso de aquicultura. E chegou ao cúmulo de ter peixe congelado para filetes no cardápio, sem também avisar os clientes antes. Resultado, entrou numa espiral de degradação da qual só se recuperará se regressar rapidamente às origens. Num outro restaurante, na Praiinha do Alvor, famoso pelo arroz de lingueirão, recomendaram a um amigo que encomendasse duas generosas postas de cherne grelhadas para acompanhar o famoso arroz. Não o avisaram que lhe iam cobrar o quilo a 110 euros, ou seja, pagou pelas 2 postas de 950 gramas (que foram divididas por 4 comensais) 104 euros… A refeição essa ficou preto dos 300 euros, 75 por cabeça. Nem na Suíça…

Com os ingleses e os alemães fora, e a nossa restauração a saque, afastando os pobres tugas que vão com parcos orçamentos, não acredito que o Algarve levante a cabeça e possa recuperar da pandemia de maneira a sobreviver a mais um inverno. Aliás no Alvor são inúmeros os estabelecimentos (lojas, gelatarias, restaurantes) fechados, quando já estamos em plena época alta. Sobrevivem, bem e com boa taxa de ocupação, os 2 ou três que oferecem qualidade a preços comportáveis para o cidadão nacional. Quase tudo italianos…

O Algarve tem que se redesenhar rapidamente para emergir mais forte e resiliente na pós-pandemia. Devíamos estar a aproveitar estes tempos conturbados e atípicos que vivemos para desenhar um plano estratégico do Algarve que queremos no futuro, aprendendo dos muitos erros cometidos no passado.

O principal é deixar de ignorar o turista nacional, e desenhar produtos que se adaptem ao poder de compra nacional. Se se oferecessem no mercado nacional os mesmos programas e aos mesmos preços que estendemos de bandeja aos tour operators internacionais, a hotelaria nacional teria uma margem maior, e o Algarve não teria que ser Allgarve, essa imbecilidade que só a mente delirante de quem não tem a menor ideia do que faz podia ter desencantado da caixinha de surpresas.

Mas também já é tempo de os cidadãos algarvios começarem a exigir obra aos seus políticos. O Algarve parece Marrocos em termos de infraestrutura (falta de). Nem nas zonas com densidade importante de equipamentos turísticos, como no Alvor (mundo do grupo Pestana), há passeios decentes para os turistas se poderem deslocar do hotel ao centro histórico, sem arriscar um atropelamento.

 

Leia mais artigos de José António de Sousa aqui.

Parceiros Premium
Parceiros