Ana Paula Carvalho “Acho sempre que o desafio não é para mim”

Integra a equipa global de liderança da Pfizer, em Nova Iorque, desde 1 janeiro deste ano, como diretora comercial para os mercados emergentes. Mas até chegar a este lugar, a carreira de Ana Paula Carvalho tem sido uma sucessão de provas.

Ana Paula Carvalho é vice-president chief commercial officer da Pfizer.

Foi o gosto pela biologia e pela química que a fizeram escolher o curso de Ciências Farmacêuticas em vez do de Direito. Acreditou que nesta área conseguiria impactar positivamente e ainda não tinha terminado a licenciatura já estava a fazer um estágio na indústria farmacêutica, de onde nunca mais saiu. Após o curso foi fazendo formação na área Regulamentar, de Assuntos Governamentais e da Economia da Saúde entre outras, e foi descobrindo um mundo de oportunidades, que foi agarrando.

Ana Paula Carvalho passou por várias empresas farmacêuticas, de dimensões diferentes, até entrar na gigante Pfizer. Com 16 anos na mesma empresa a sua carreira parece um jogo de PSP em que a cada nível superado passa ao seguinte com desafios acrescidos. Foi diretora-geral da Pfizer durante os anos em que a Troika esteve em Portugal, quando a situação estabilizou foi desafiada a trocar um negócio de aproximadamente 170 milhões de euros por um de quase 1 bilião em Itália, ao mesmo tempo que assumia também uma área nova. Cinco anos depois ofereceram-lhe a liderança de 15 mercados europeus e passou a reportar diretamente à sede nos Estados Unidos e, no final de 2019, chegou o convite para vice-president emerging markets chief commercial officer, que implica mudar de continente, de área de negócio, de função, de nível de responsabilidade, e de se instalar no olho do furacão – a sede da Pfizer em Nova Iorque – onde se tomam as grandes decisões assim que o outbreakde COVID19 passe.

Não foi um caminho fácil nem as várias funções foram fáceis de aceitar. Todas implicaram grandes mudanças e a obrigaram a sair da zona de conforto, inclusive do seu país. Mas se Ana Paula Carvalho hesitava quase sempre antes de aceitar um novo desafio – tendo chegado em alguns momentos a sugerir nomes de colegas que considerava melhor preparados para as funções -, o apoio da família e a confiança das chefias levam-na a aceitar e depois disso sabe que o caminho é de não retorno e o seu foco é conquistar as equipas e fazer com que juntos cumpram a missão que lhe entregam.

Conheça melhor o seu percurso, as suas conquistas, as suas dúvidas e receios e, sobretudo, as principais aprendizagens que a sua carreira internacional lhe tem proporcionado quer a nível profissional quer a nível pessoal.

 

É licenciada em Ciências Farmacêuticas e tem feito toda a sua carreira na indústria farmacêutica. Como entrou no mercado de trabalho?

Ainda estava na universidade, no 5.º ano, quando fui convidada por um professor para fazer um estágio. Além de professor, o Prof. Dr. Eduardo Barata era também diretor técnico de uma multinacional. Era uma fase de muitas mudanças na área regulamentar, com particular atenção ao folheto informativo e ao resumo das características do medicamento, exigidas pela Agência Europeia do Medicamento. Foi nessa área que fiz o meu estágio. Quando terminei o curso fui contactada por uma empresa jordana para integrar o departamento de assuntos regulamentares, a Hikma, com produção em Portugal e que estava em processo de certificação pela FDA. Foi uma experiência extraordinária não só tinha a parte regulamentar como interagi também com a fábrica que a empresa tinha em Sintra – foi um mundo novo que se abriu.

Quando estava na Hikma fui abordada pela Boehringer Ingelheim. Convidaram-me para uma entrevista e no início achei que o desafio não era para mim – aliás algo muito recorrente na minha carreira. A Boehringer Ingelheim convenceu-me que eu era a pessoa certa e mudei. O Dr. Carlos Santos, director médico na altura, foi uma peça marcante na minha carreira.

Cheguei sempre muito jovem aos lugares de direção e, portanto, tinha dois desafios, o de ser mulher e o de ser muito jovem.

Qual era o desafio que lhe foi lançado?

Acabei por assumir a gestão do departamento da área regulamentar, mas também a definição dos preços, a negociação das comparticipações e trabalhar de uma forma muito precoce com os colegas de Marketing na estratégia dos produtos que iriam ser lançados.

Na altura em Portugal os preços e as comparticipações eram um verdadeiro desafio porque éramos um dos países europeus que mais tempo demorava até se conseguir uma comparticipação, lançar o medicamento no mercado e os doentes terem acesso a ele. Chegávamos a esperar dois ou mais anos até alguns conseguirem a comparticipação.

Esta foi uma oportunidade única porque a Boehringer-Ingelheim tinha na altura um medicamento inovador, o Spiriva, em parceria com a Pfizer. O processo de comparticipação era liderado pela Boehringer e eu era a responsável por essa negociação com as autoridades. Conseguimos a comparticipação em nove meses – um prazo praticamente inédito no mercado – e isso deu-me uma grande visibilidade não só na Boehringer mas também na Pfizer.

Que idade tinha na altura?

Era muito nova, penso que tinha 31- 32 anos. Cheguei sempre muito jovem aos lugares de direção e, portanto, tinha dois desafios, o de ser mulher e o de ser muito jovem. Sempre senti uma responsabilidade acrescida de ter de demonstrar que tinha valor e que não era por acaso que estava em determinada função.

Lembro-me que passado pouco tempo depois de assumir a direção-geral na Pfizer, alguém comentou “És tão nova. Os tubarões da Apifarma vão comer-te viva!”. Nove meses depois eu era vice-presidente da Apifarma. Nunca encontrei “tubarões” na Apifarma mas apenas colegas que, apesar de pertencerem a empresas diferentes, tentavam dar o seu melhor em relação a um bem comum- os nossos doentes e as comunidades que servimos. A minha passagem pela Apifarma foi muito enriquecedora e deixou-me memórias gratificantes para a vida.

Sempre que era convidada para uma nova função tinha receio e até chegava a recomendar outros colegas que considerava estarem mais bem preparados.  Como é que depois dava o passo?

Tinha receio de não corresponder às expectativas. Que poderia expor a minha família, achava que a estabilidade financeira da minha família dependia muito de mim. Refletindo com o meu marido e a minha família chegava à conclusão “Não, a família é muito mais do que a estabilidade financeira”. A nossa estabilidade é o apoio, o amor que temos uns pelos outros, e mesmo que algo corra mal, nós vamos ter sempre alguém que nos vai apoiar. Acredito que Deus acaba por proteger os audazes e não permitia que o medo me paralisasse, fui assim agarrando as oportunidades. Houve alturas em que achei que estava a dar um passo demasiado grande e isso assustava-me. Tive algumas situações muito disruptivas e a ida para a Itália foi uma delas. Hoje em dia, acredito em mim e tento trazer essa confiança a outras mulheres que possam duvidar de si mesmas. Conseguimos e somos capazes!

Depois de perceber que nos boicotamos a nós próprios já consigo pensar “Eu tenho algum receio, mas vou em frente porque me estou a boicotar e não posso permitir que isto me limite”.

Tinha medo de perder o emprego por incompetência?

Como referi, tinha medo de não entregar aquilo que eram as expetativas dos outros e isso teria consequências. Mas também descobri que a pessoa que duvidava sempre mais era eu própria e não os outros, e isso foi um momento de revelação. Mas ainda assim não era mais fácil, principalmente à medida que fui progredindo para lugares de maior responsabilidade. Nas primeiras semanas, invariavelmente, acordava a meio da noite: “O que é que eu fui fazer?!”. (risos)

Com o passar dos anos fui ganhando serenidade. Com esta decisão de aceitar uma função em Nova Iorque já sofri muito menos. Já consigo pensar “Calma, vamos conseguir fazer isto”. Há uma maior autoconsciência que tenho ganhado nos últimos anos. Acho muito importante que as mulheres saibam isto. Demorei muito tempo a perceber que as dúvidas que eu tinha eram iguais às de outras mulheres e que muitas não as conseguiam ultrapassar. Lembro-me da primeira vez que ouvi falar da síndrome do impostor. O impostor leva-nos a questionar e a ter receio – eu não mereço estar aqui, porquê eu? Quando comecei a ter este entendimento de que nos boicotamos a nós próprias e que há outras mulheres que passaram pelo mesmo, isso ajudou-me imenso. Foi a partir daí que consegui pensar “Eu tenho algum receio, mas vou em frente porque me estou a boicotar e não posso permitir que isto me limite”. Ao fazer este exercício mental consciente consigo seguir em frente com todo o ânimo e confiança. Já ninguém me para.

Qual foi o momento mais marcante da sua carreira?

Quando saí da Amgen e fui para a Pfizer. Passei, na altura, de uma empresa pequena na área da biotecnologia (Amgen) para uma multinacional que era a maior em Portugal e a nível mundial, e saí da minha área de formação. Deixei a área regulamentar, onde tinha começado a carreira e que era a minha zona de conforto, para liderar pela primeira vez em Portugal um departamento exclusivamente dedicado à área do acesso, que incluía todas as componentes multidisciplinares antes do lançamento dos medicamentos – o preço, a comparticipação e a estratégia de acesso ao mercado. Tinha colegas que me diziam “O que é tu foste fazer? Porque vais liderar uma coisa tão difícil como as comparticipações?!” E isto assustava-me, mas o que é certo é que fomos a primeira empresa a ter um departamento só dedicado a isso e funcionou.

Como é que surgiu esse convite?

Antes da Amgen eu tinha estado na Boehringer durante sete anos, e foi quando tivemos a parceria com a Pfizer e o diretor-geral Jorge Saavedra me conheceu. Um ano depois de estar na Amgen ele fez-me o convite para ir para a Pfizer porque tinha gostado muito do meu trabalho.

Mais tarde, tive outro momento muito marcante, quando na Pfizer me entregaram o marketing e as vendas e me lançaram o desafio de montar um piloto em Portugal com a criação de uma unidade de negócio de produtos hospitalares e de especialidade com P&L independente. Nessa altura, eu tinha sob minha responsabilidade a área do acesso e dos assuntos governamentais e passam-me o marketing e as vendas, áreas em que eu não tinha experiência.

Mais uma vez, a minha primeira reação foi achar que não fazia sentido. O diretor-geral da altura em Portugal e o presidente da região tiveram uma conversa comigo e deram-me o facto como consumado. Os argumentos que usaram ainda hoje os uso com as pessoas que trabalham comigo: “Tu podes não ter ainda as competências para a nova área, mas tens o bom senso, sabes ouvir e trazes o melhor dos outros, tens vontade em aprender portanto isso vai ajudar-te”.  Certo é que fui bem-sucedida. Mas nunca me vou esquecer dos olhares de perplexidade na primeira reunião. O diretor de vendas e o diretor de marketing tinham imensos anos de experiência, tínhamos medicamentos com o crescimento em queda e eles olharam para mim a pensar como é que uma garota ia liderar uma área em que nunca tinha trabalhado. Senti pena deles! [risos]. No final desse ano, o principal medicamento que estava em queda, crescia 14%. Foi um trabalho de equipa tremendo e deu-me amigos para a vida!

Em 2013 convidaram-me para ir para Itália assumir aquela que era na altura a maior unidade de negócio de toda a Europa – valia praticamente 1 bilião de dólares -, e era a quarta a nível mundial.

Como é que conseguiu?

Sempre tive consciência de que sozinha nunca iria conseguir nada e que era importante ouvir os outros e aprender com eles. Trabalhei muito, estudei muito, ia para a rua e acompanhava a equipa, ia falar com os médicos.

Nunca cheguei às funções com a pertinência de achar que sabia mais do que os outros. A minha postura foi sempre a de questionar como é que juntos conseguiríamos que as coisas resultassem. A consistência entre aquilo que dizemos e fazemos desmonta qualquer barreira, bem como as pessoas perceberem que são ouvidas e que a sua opinião conta.

Mas não foi fácil entrar numa equipa com mais experiência e ainda por cima numa área nova.

Não, mas consegue-se. Tenho sempre o receio de dar o primeiro passo, mas uma vez dado só penso que vai resultar e que não há um plano B. Focalizo-me e visualizo esse mesmo sucesso, não olho mais para trás e não me permito mais a duvidar do quer que seja.  E as coisas vão acontecendo naturalmente, à medida que se consegue o envolvimento das equipas.

Qual foi o momento mais desafiante da sua carreira?

Itália foi muito desafiante, sem dúvida. O convite surgiu porque enquanto fui diretora-geral da Pfizer em Portugal [dezembro 2008 a agosto 2013] e vice-presidente da Apifarma [junho 2012 a agosto 2013] ganhei muita visibilidade. A situação que o país atravessou – a crise e a intervenção da Troika em Portugal – criou muitas preocupações e receou-se que a situação portuguesa contaminasse mercados como a Espanha ou a Itália. Isso implicou que eu tivesse calls quase semanais com os presidentes europeus das diferentes áreas de negócio da Pfizer para explicar o que estava a acontecer, as medidas que estavam a ser implementadas, como estávamos a tentar negociar a nossa dívida hospitalar, que era muito grande.  Em simultâneo, ao nível da Apifarma, também tínhamos reuniões com representantes da troika e do governo.

Isto deu-me muita visibilidade e a forma como eu e a minha equipa de direção conduzimos o processo foi muito valorizada pelos presidentes da Europa da Pfizer. Em 2013 convidaram-me para ir para Itália assumir aquela que era na altura a maior unidade de negócio de toda a Europa – valia praticamente 1 bilião de dólares -, e era a quarta a nível mundial.

Era uma grande mudança profissional e pessoal. Perante o meu receio, quem me fez o convite sugeriu-me que conversasse com a diretora que estava a gerir Itália. Quando falei sobre os meus receios, essa colega deu uma grande gargalhada e disse-me “São só mais uns zeros num PowerPoint!” Nunca mais me esqueci disso. Claro que o risco de exposição do negócio de um bilião não é a mesma coisa que um de 170 milhões, mas o rigor com que se gere e a importância que damos às pessoas é idêntico.

Esta conversa foi muito importante, até porque ela também tinha marido e filhos e tinha deixado o Reino Unido para ir para Itália ocupar aquela função. Foi uma conversa entre pares, entre duas mulheres, que me ajudou imenso. A minha família também teve um papel decisivo.

No início da carreira não tinha qualquer ambição em ser diretora geral nem de ter uma carreira internacional. Mas tive as pessoas certas que me ajudaram a perceber que esse era um caminho possível entre muitos outros.

Muitas mulheres ambicionam uma carreira internacional, ou reconhecem a mais-valia que uma função internacional pode ser na sua carreira, mas não dão esse passo porque os maridos não estão dispostos a abdicar da carreira para as acompanhar. Como geriu esta mudança em família?

Muitas vezes nós não temos a ambição, nem idealizamos isso. No início da minha carreira não tinha qualquer ambição em ser diretora geral nem de ter uma carreira internacional. Mas tive as pessoas certas que me ajudaram a perceber que esse era um caminho possível entre muitos outros.

Em relação à mudança para Itália, quando me sinalizaram essa possibilidade, mais uma vez recusei. Depois daqueles cinco anos de tanto trabalho intenso enquanto diretora geral em Portugal, de já ter conquistado uma posição forte na Apifarma, achei que estava na altura de desfrutar o que tanto me tinha custado conseguir e não de começar tudo de novo. Por isso a minha primeira reação foi “não”. Telefonei ao meu marido a partilhar o convite, sem qualquer ideia de o aceitar, e quando cheguei a casa foi ele que me disse “Passei o dia todo a refletir, e porque não? Porque é que nós não fazemos isso? Se calhar é bom para nós enquanto família, os miúdos vão para uma escola internacional e pode ser bom para ti”. Foi esta conversa entre os dois que me fez começar a pensar que se calhar fazia sentido.

De seguida tive outra lição, vinda dos meus filhos, que tinham 14 e 13 anos. Eles tinham mudado de escola nesse ano, a adaptação tinha sido muito difícil, eram muito chegados aos primos e aos avós, por isso imaginei que seria terrível fazê-los mudar novamente e perderem o contacto com a família e amigos. Quando falámos com eles descrevemos o pior cenário possível: não vão estar com os avós, não vão estar com os primos, vão perder os amigos. E ainda hoje, já passaram mais de sete anos, me emociono com a reação deles. Estavam abertos à mudança e tinham descoberto com a experiencia de mudar de escola em Portugal, que novos amigos e novas aprendizagens os aguardavam em Italia. Nunca reclamaram, nunca se queixaram, foram fantásticos.  O meu filho mais velho disse-me na manhã seguinte: “Eu acho que tu é que tens de decidir porque tu é que vais trabalhar muito”. Foi nesse momento que tomei a consciência que pelo meu marido e pelos meus filhos nós íamos, o problema era mesmo eu.

Este foi um momento que me fez refletir sobre o que me estava a impedir de aceitar e descobri algo de que não gostei: o que me estava a prender era o status de ser diretora-geral da Pfizer e a visibilidade que estava a ter na Apifarma. Achei que não era isso que me devia definir como pessoa. E depois de conversar com os meus pais, que se mostraram muito orgulhosos pela oportunidade que me estavam a dar, decidi ir em frente. Na escola internacional os meus filhos eram os únicos portugueses, o que foi ótimo porque durante uns tempos foram a novidade.

Esta experiência em Itália foi uma grande lição de vida para mim.

Como geriram a situação profissional do seu marido?

O meu marido tinha uma boa carreira e estava a fazer um MBA, mas apoiou-me desde o primeiro momento. No início, ainda fomos com a perspetiva de a empresa em que ele trabalhava abrir um escritório em Roma, mas com a crise a afetar também Itália, acabaram por desistir e ele ficou sem trabalho. Mas nunca se queixou e sentiu-se sempre muito realizado com o apoio que dava à família e evolveu-se em muitas atividades, algumas comunitárias.

O primeiro ano em Itália foi duro. Em termos profissionais, foi sentir que tinha recuado no tempo e precisava de voltar a demonstrar que não era por acaso que estava ali.

Como foi chegar a um mercado diferente, com uma língua que não dominava?

O primeiro ano foi duro, não só por isso, mas porque o meu marido teve de terminar o MBA e eu ficava sozinha com os meus filhos todos os fins de semana. O que significava que estava non-stop durante a semana e ao fim de semana. Mas ele esteve sempre ao meu lado para cuidar dos filhos e estava presente em tudo o que eu não podia estar.

Em termos profissionais, foi sentir que tinha recuado no tempo e precisava de voltar a demonstrar que não era por acaso que estava ali. Tive de mais uma vez demonstrar que a minha competência técnica e de negócio era elevada. Tive de tentar entender qual era a dinâmica da empresa e a sua cultura. Tive de entender que não podia lutar todas as lutas. Escolher onde pôr a minha energia foi um fator de sucesso.

Tive de aprender e estudar muito. Voltei a ir para o mercado para ouvir os clientes. A coisa boa é que nós percebemos o italiano, mas tive lições, claro. O facto de ir para o mercado com os delegados e com os nossos médicos num esforço de entender a dinâmica e as especificidades de Itália, fez com que fosse rapidamente acolhida dentro da minha própria unidade de negócio, o que depois ajudou no meu posicionamento ao nível da direção.

Hoje quando converso com colegas que estão em transições internacionais os meus conselhos são não subestimar o primeiro ano – mas depois tudo melhora – e não partirem do pressuposto de que é igual sendo a mudança dentro do grupo de empresas, pois as nuances culturais são muito importantes. Não devemos fazer comparações. Nos primeiros meses dei comigo a comparar constantemente Portugal e Itália, até que percebi que não valia a pena. Quando fui para Espanha já ia preparada. A primeira saída internacional é a mais difícil, as outras já sabemos ao que vamos.

O facto de ser mulher não lhe dificultou ainda mais a integração?

Na verdade, chegar a um board em que eu era a única mulher na área comercial foi desafiante. Naquela altura em 2013, Portugal não tinha a projeção que tem hoje na Europa e no mundo, ainda era encarado como um mercado de segunda classe, por isso alguém que vinha de um país tão pequenino para assumir o maior negócio da Pfizer em Itália e na Europa e mulher, não foi fácil. Hoje já não é tanto assim. Mas tal como das outras experiencias, tudo correu muito bem e mais uma vez construí fortes amizades naquele país maravilhoso.

Sentiu uma grande diferença na forma de trabalhar?

Sim, esse foi o meu primeiro erro. Parti do pressuposto de que Portugal e Itália, por serem países do sul da Europa, eram muito parecidos culturalmente. Não era verdade. Na altura, na Pfizer Portugal as hierarquias já eram muito informais, havia uma grande proximidade entre a direção e os colaboradores. Em 2013 em Itália, a hierarquia era supervalorizada e isso foi um choque. A seriedade era praticamente sinónimo de competência.

Apoiei-me muito no meu marido, mas gostava de ter tido outra mulher no mundo empresarial que percebesse o que eu estava a passar [com a adaptação a Itália] e com quem pudesse partilhar as minhas dúvidas.

Nesse primeiro ano em quem é que se apoiava?

Só tinha o meu marido, por isso eu acredito tanto que as iniciativas de apoio entre mulheres são importantes. Era com o meu marido que conversava, pois não tínhamos amigos em Itália e a comunidade portuguesa era praticamente inexistente. Gostava de ter tido outra mulher no mundo empresarial que percebesse o que eu estava a passar e com quem pudesse partilhar as minhas dúvidas.

Senti sempre um grande conforto na missa a que assistíamos todos os domingos na única igreja que tinha missa em português, a igreja de Santo António dos Portuguese em pleno coração de Roma. A mudança para Itália foi um momento de transformação daquilo que eu era como pessoa e da minha carreira.

Mais uma vez, quando atinge a zona de conforto em Roma, surge a proposta de mudar para Espanha.

Estive cinco anos em Roma sempre na mesma função, apesar de me terem sido oferecidas outras oportunidades por achar que não era o timing correto para a minha família. No final de 2015, por exemplo, propuseram-me um lugar de presidente regional. Este é uma daquelas funções que toda a gente ambiciona e há poucas oportunidades. Eu queria muito aquele lugar, mas recusei-o porque implicava mudar de país e isso impactava o meu filho mais velho que estava na fase final dos estudos antes de entrar na universidade.

Em 2018,  integrei a Global Leadership Team da Unidade de Negocio Hospitalar, a reportar ao presidente global e fiquei com 15 mercados, como o Reino Unido, a França e a Espanha, todos os mercados nórdicos e ocidentais da Europa.

Como Espanha era o mercado com maior perspetiva de crescimento nos próximos cinco anos e em que queríamos construir uma nova estratégia e novas competências para o colocar na rota do sucesso, pediram-me para ir para Madrid. A experiência foi tremenda. Desde a cidade à própria dinâmica da Pfizer Espanha, altamente inclusiva, de uma informalidade que me apraz muito, em que me senti sempre muito acarinhada pelos colegas e por todos na organização.  A vontade que tinham em perceber o que é que eu dizia em português, de saber o que é que eu achava sobre as coisas, correu tão bem que me custa muito deixar Madrid para ir para Nova Iorque.

Nova Iorque é um novo salto para fora da zona de conforto?

É verdade. Ao fim de um ano em Espanha o presidente global desafiou-me para mudar para Nova Iorque para uma função que me vai dar novas competências e o conhecimento de mercados como a China, a América Latina, a Ásia e Africa e Middle East. Mais uma vez não é uma mudança simples, são várias: vou mudar de continente, de nível de responsabilidade, de mercados e de área de negócio. Ou seja, depois de ter assumido a liderança de áreas especificas de negócio nos últimos anos, agora vou voltar a ter todo o portfólio da Pfizer. Além disto, ainda terei a área de desenvolvimento do negócio, como aquisição de novas empresas, parcerias, discussão de pipeline.

Em um ano passei da leadership team europeia para uma leadership global e tive de provar que tinham tomado a decisão certa em me terem dado parte do negócio da Europa. Depois veio o desafio para Nova Iorque.

Foi difícil tomar a decisão?

Mentia se dissesse que não. (risos) Em um ano passei da leadership team europeia para uma leadership global e tive de provar que tinham tomado a decisão certa em me terem dado parte do negócio da Europa. Quando cheguei a dezembro do ano passado estava exausta e quando me falaram nisto eu só pensei “Meus Deus, isto parece que é a história da minha vida. Quando finalmente vou começar a desfrutar, tenho um novo recomeço”. Já me sentia um bocado cansada para isso e além disso, os meus pais já têm outra idade e Nova Iorque não fica a apenas uma hora de avião como Madrid.  O meu irmão descansou-me em relação ao apoio aos meus pais. Assumi a função a 1 de janeiro deste ano e estou a adorar este novo desafio!

Como está a correr esta experiência nos Estados Unidos?

Na Europa os colegas já me conheciam, agora foi como aterrar de paraquedas em Nova Iorque! Encontrei pessoas extremamente talentosas, de todos os lados do mundo. As inseguranças tentam voltar ao de cima, mas graças a Deus que já tenho aquele discernimento de “não te boicotes, vai em frente”. Estou ainda em fase de aprendizagem e de estudar muito. A China é um mundo a parte. Atualmente, 60% do meu tempo é dedicado à China, não só por causa da situação do coronavírus como pela importância que aquele mercado tem a nível mundial. A China é tão importante para nós que tive de entrar de cabeça. É incrível o que já aprendi sobre este mercado desde janeiro!

A minha função já é efetiva desde Janeiro mas a mudança para NY está on hold. Estou serenamente a aguardar os desenvolvimentos desta luta mundial que é a pandemia de COVID 19. Sei que junto vamos vencer, não tenho a menor duvida. Temos que fazer o que nos pedem e que é ficar em casa! Temos que nos entreajudar.

A China será o seu próximo passo?

O meu objetivo não é ir para a China e acredito que também não é o da Pfizer. A estratégia de desenvolvimento de talento da empresa é desafiar as pessoas para áreas que ainda não dominam e eu já provei que sei gerir uma região inteira ou um país, não importa o tamanho. Acho que a função que tenho agora é sobretudo para ganhar novas competências na área de Business Development, como uma das peças fundamentais na perspetiva global da Pfizer, na aquisição de outras empresas ou parcerias estratégicas.

Eu nunca fui para um lugar a pensar onde é que estarei dois anos depois. Não acho que isso seja saudável. Conheci muitas pessoas frustradas porque tinham um plano e as coisas não aconteceram como previam. Portanto, quando chego a um lugar o que eu quero é garantir que serei bem-sucedida, que a equipa que trabalha comigo será bem-sucedida, que eu apoie quem está a trabalhar comigo e que impactemos de forma positiva o negócio, as pessoas, o mercado e os doentes que servimos. Concentro-me em fazer bem aquele lugar, o que vem a seguir logo se verá.

[em Nova Iorque] Cheguei a uma equipa de pessoas que conhecem a área e a região muito melhor do que eu. Mas esta é a forma da Pfizer trabalhar os seus talentos, de nos ajudar a ganhar novas experiências e competências para continuarmos a evoluir.

Imagino que ser mulher ou vir da Europa não tem sido um problema.

De todo. O que senti nas primeiras semanas é que cheguei a uma equipa de pessoas que conhecem a área e a região muito melhor do que eu. Mas esta é a forma da Pfizer trabalhar os seus talentos, de nos ajudar a ganhar novas experiências e competências para continuarmos a evoluir.

A ideia é que cada nova função nos tire da área de conforto. Estou a aprender coisas que se eu não tivesse esta função não poderia ter aprendido. Sei que eu e a minha equipa vamos ter sucesso.

Pensa que o facto de ter sido envolvido na iniciativa mundial da Pfizer Women Inspiring Women lhe deu mais visibilidade internamente?  

Ganhei muita visibilidade com o negócio em Itália e quando fiquei com parte do negócio hospitalar da Europa, passei a reportar diretamente ao presidente mundial sediado em Nova Iorque. Passado uns meses, o meu chefe global incluiu-me nesta iniciativa de female leaders mundiais da Pfizer. Somos apenas 12 e isso maximizou a minha exposição, sem dúvida.

O que é que diria a uma jovem que receie não conseguir constituir família e apostar na carreira em simultâneo?

Diria que é possível integrar a vida familiar e a vida profissional. É importante aceitar que existem outros que podem ajudar, seja um familiar, sejam amigos, seja através dos serviços a que se pode recorrer hoje em dia. A segunda mensagem é não se limitar a si própria, não deixar que aquilo que é a normalidade seja um constrangimento, porque a normalidade, infelizmente, ainda é os homens terem uma carreira e as mulheres acompanharem. A terceira mensagem é que não seja muito dura consigo própria, não exija demasiado de si. Muitas vezes caí nesse erro. Ponha-se em primeiro lugar para estar bem nas várias áreas da sua vida, a familiar, a profissional e a pessoal e assim também contribuir para o bem-estar dos que a rodeiam.

A vida é cheia de surpresas, deixem-se encantar por elas. Não pensem demasiado, a vida resolve. As coisas não são tão complexas nem tão dramáticas como nós às vezes achamos. Essa tem sido também a minha aprendizagem. No final, os nossos filhos e família têm um orgulho tremendo em nós. Acreditem.

Em termos de carreira internacional, quais são os conselhos mais importantes que pode deixar?

Tente perceber quem é que poderão ser os seus pontos de apoio no novo país a nível familiar e a nível da própria empresa. Não menospreze as diferenças culturais. Como referi anteriormente, não se martirize com comparações constantes em relação ao que deixou para trás. É uma nova realidade, desfrute-a!

Cuidar de si e encontrar momentos para desligar, para se reenergizar. Isto é extremamente importante porque senão o processo pode levar a um burnout. Essas pausas são necessárias para avançar de forma mais consistente e mais forte.

Quais são para si as principais mais valias de ter feito carreira internacional?

Do ponto de vista familiar, uniu-nos mais que nunca. Em relação ao país, ganhei uma apreciação ainda maior do que a que já tinha, amo profundamente Portugal. No entanto, descobri um mundo novo, novas culturas, novas pessoas, novos amigos.

Do ponto de vista de carreira, descobri formas de trabalhar diferentes e o valor da diversidade de pensamento e o quão disruptivo isso é para a inovação. Adquiri novas competências que enriquecem o meu currículo e que em Portugal não teria conseguido. No geral, tornei-me mais rica profissionalmente, mas também como pessoa.

 

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