Ocupando, atualmente, o oitavo lugar do ranking internacional na categoria de -57kg, Telma Monteiro é considerada por muitos a melhor judoca portuguesa de todos os tempos e uma das melhores do mundo. Quem esteja a par do seu palmarés desportivo, recheado com uma medalha olímpica, 11 medalhas em Campeonatos da Europa – cinco das quais, de ouro – e outras cinco em Campeonatos do Mundo, entre outros títulos, talvez ignore, porém, que este percurso vitorioso se iniciou, aos 14 anos, no tapete de judo da rua onde cresceu, no carenciado Bairro Branco, em Almada, por incentivo da irmã Ana.
Aos 30 anos, desta feita com o Rio de Janeiro em pano de fundo, a judoca traz da participação nas suas quartas Olimpíadas (depois de Antenas em 2004, Pequim em 2008 e Londres em 2012) o tão ambicionado título olímpico. No dia em que Telma Monteiro conquistou a medalha de bronze, deixamos um excerto do livro Na vida com garra, no qual a atleta partilha, pelo próprio punho, “as histórias por detrás das medalhas, o suor por detrás dos sorrisos e as lições que os momentos menos bons trouxeram”. Um livro “sobre a luta”, que quer inspirar todas as pessoas “a viver a vida com garra”.
A importância da preparação
Uma boa preparação nem sempre nos garante o sucesso, mas sem ela não podemos vencer.
“A preparação é a base fundamental do sucesso. Quanto melhor nos prepararmos, mais perto ficamos de vencer. Mas dentro do tapete como na vida, nem sempre uma boa preparação nos garante sermos bem-sucedidos, por isso todos os pormenores contam. Para uma boa preparação é importante definir desde o princípio, qual o nosso objectivo, onde pretendemos chegar e a partir daí planear todo o processo. E sempre tendo em conta, que durante o caminho poderão ser precisos fazer ajustes, o plano guia-nos, é dinâmico e deve ser adaptado às condições com que nos vamos deparando.
Para nos prepararmos bem, primeiro temos de nos conhecer bem. Os nossos pontos fortes e os nossos pontos fracos. É preciso saber o que precisamos melhorar. Que ferramentas temos ao nosso dispor e de que forma as podemos utilizar. Depois de nos conhecermos, é a vez de conhecermos os nossos adversários. Conhecer a concorrência é fundamental para delinearmos a nossa estratégia. Que ferramentas tem, que estratégia usa, e em que é que eu posso ser melhor. Num combate, não posso pensar apenas naquilo que faço, tenho de saber como luta a minha adversária para poder surpreendê-la e estar um passo à frente. E durante um combate, uma má estratégia leva-nos à derrota, sem segundas oportunidades.
Só quando estou de consciência tranquila por saber que fiz tudo o que poderia ter feito, é que me sinto capaz de enfrentar qualquer desafio. É muito importante conquistarmos essa tranquilidade. Mesmo quando olho para trás e revejo alguns momentos em que não ganhei, sinto que dei o meu melhor e fiz tudo o que estava ao meu alcance naquele momento.
É proibido estagnar
Nos últimos anos, aprendi mesmo muito. Sinto que evoluí como atleta e como pessoa. O nível de exigência que sempre tive em relação a mim mantém-se, desde cadete, júnior, até agora. Não podemos estagnar, não podemos fazer sempre o mesmo e depender sempre do mesmo, de uma técnica ou de uma solução, que nos garanta o sucesso. Isto é válido tanto na vida como no Judo.
Sempre procurei essa evolução, fazer mais e fazer melhor, e por isso se a minha carreira acabasse agora estaria de consciência tranquila. Acredito que as pessoas que procuram sempre superar-se, adaptar-se, e se preparam, sempre, conseguem estar em condições para dar o seu melhor. Por isso não estagnam.
Quando não nos preparamos bem, podemos até ser excepcionalmente bem-sucedidos em algum momento – um pouco de sorte e alguma experiência podem chegar num bom dia. Mas quando se pensa em ser excelente, em ser consistente nos resultados, a sorte e a experiência não são suficientes. É difícil chegar ao topo, ninguém pode dizer o contrário, mas o mais difícil quando temos sucesso é manter-nos lá, lidar com toda a expectativa que passa a existir.
O nervosismo não me domina, não me enfraquece.
As pessoas vêem-me ganhar muitas medalhas, e por vezes a forma como acontece pode levar à falsa sensação de que é fácil. Mas a verdade é que o resultado da competição é a consequência de muitas horas dedicadas à preparação, ao treino mais exigente.
Saber controlar o nervosismo
Quanto mais conscientes estivermos daquilo que estamos a fazer, mais vantagens teremos, e quando chega o momento decisivo, no combate, naquele milésimo de segundo de tudo ou nada, a nossa resposta é automática e certeira. Aqueles momentos a que algumas pessoas poderão chamar de «sorte», são o reflexo de centenas de horas de treino, muito suor traduzido num momento de sucesso. É trabalho, é preparação. Porque só assim, a nossa capacidade de ação/reação estará muito mais apurada, afinada, e se transformará num automatismo muito valioso. Cada segundo conta.
Se mesmo bem preparada fico nervosa antes dos combates? Se as minhas pernas também tremem? Claro que sim. Mas o nervosismo, tal como o costumo sentir, é bom, porque tenho-o sempre controlado. Não me domina, não me enfraquece. Sou eu quem está ao comando. Fisiologicamente, sinto-o no meu corpo de uma forma muito clara: o coração bate mais rápido, os músculos são tomados por uma tensão boa, que significa que estou pronta para agir, para contraírem ao meu sinal, para explodir, para projetar. Psicologicamente, esse estado de alerta manifesta-se no modo como me foco a 100% naquele combate, naquilo que me espera, com aquela adversária, e naquilo que tenho de fazer para ganhar. O nervosismo fora de controlo seria sentir o meu coração a bater demasiado depressa, como se me saltasse para fora do peito, os músculos demasiado tensos, contraídos antes de tempo, e ter a minha mente focada (ou distraída) em pormenores dos quais me deveria abstrair, como «a minha adversária é muito grande», «o treinador dela é ameaçador», «o pavilhão está ao rubro» ou «o público está a fazer demasiado barulho».
Mais importante do que o talento com que nascemos, é o trabalho.
Os mais jovens, quando começam a praticar desporto são muitas vezes levados por estes pensamentos. Muitas vezes poderão pensar «o meu pai está a ver», «a minha mãe está na bancada», «aquele adversário é enorme», mas todos estes pensamentos devem ser afastados da cabeça. Não contribuem em nada para que avancemos. Claro que este poder de abstração (que é ao mesmo tempo o poder de nos concentrarmos naquilo que é mesmo importante) é algo que se treina. Acredito que tudo o que fazemos deve ser antes de mais para nós. E se assim for, o resultado não será o mais importante, independentemente de se perder ou ganhar, porque o nosso foco vai estar no processo.
Dom, não: oportunidade
Muitas vezes, quando olhamos para os nossos ídolos acreditamos que são seres excepcionais, afortunados, abençoados à nascença, com uma dose incrível de talento. De facto poderão existir pessoas «naturalmente» mais talentosas que outras. Mas a verdade é que muito mais importante do que o talento com que nascemos, é o trabalho. Não acredito que alguém com talento possa ter sucesso sem trabalhar para isso. Sinceramente às vezes até é possível que o talento a mais seja quase «uma armadilha», um presente envenenado.
Todos nós temos facilidade em identificar «alguém que tinha muito jeito» mas que não «aproveitou». Consigo facilmente identificar colegas de treino que tinham mais talento do que eu. Mas ter talento é apenas uma pequena parte do sucesso. Trabalhar sobre um dom é o que distingue os talentosos dos campeões. O meu maior talento foi não desperdiçar o meu dom, ter tido a capacidade de transformar esse «dom» em medalhas, em passar da teoria para a prática.
Quando queremos estar entre os melhores do mundo, o talento acaba por ser uma parte muito pequena da equação.
Desde muito cedo que comecei a ouvir elogios. Diziam à minha irmã «a Telma tem jeito, Ana», «a Telma vai ser muito forte». Para uma adolescente de 14 e 15 anos ouvir isso era bom, mas para mim não chegava. «Eu» era uma promessa, mas queria ser uma certeza. Comecei a ganhar medalhas pouco tempo depois de começar a praticar Judo, mas sempre quis treinar mais, aprender mais técnicas, e progredir todos os dias. Era isso que ocupava a minha mente, uma coisa real, o suor, o treino, o esforço para conseguir algo de muito bom. Como no meu grupo de treino eram todas motivadas, o trabalho parecia-me ser o melhor caminho para atingir o meu objectivo. Não havia outra forma. Ou trabalhava, ou ficava para trás, por muito «talento» que tivesse. É bom termos sempre presente que quando queremos estar entre os melhores do mundo, ou ser um atleta de excelência, o talento acaba por ser uma parte muito pequena da equação.
Com o patamar e visibilidade que atingi, oiço muitas vezes jovens dizerem que queriam ser como eu. Mais importante para mim é que percebam o que foi preciso para aqui chegar. Trabalhei muito para conseguir repetir aquele momento em que todo o nosso trabalho é recompensado, aquele momento em que sentimos que o universo concentrou toda a sua energia ali. O momento da vitória.”