Sandra Barão Nobre, biblioterapeuta

Receitar livros para combater os males que afligem os seus clientes, particulares ou organizações, é a sua profissão. A biblioterapeuta recomenda alguns títulos para as leitoras da Executiva.

Sandra Barão Nobre, biblioterapeuta

Depois de seis meses de licença sem vencimento e de uma viagem à volta do mundo, viu-se no mesmo escritório, presa à mesma rotina, sem se sentir feliz, realizada e reconhecida. Decidiu que era a si que cabia mudar. A paixão pelos livros foi a resposta que encontrou. Mas antes preparou-se para a transição profissional.

Como nasceu a paixão pelos livros?
Nasceu em casa dos meus pais, onde sempre houve livros e onde sempre se leu. Algumas das minhas memórias mais remotas são da minha mãe a ler ou de mim mesma, deitada numa cama, a ler. A paixão pela leitura devo-a primeiro aos meus pais. Depois aos meus professores.

O que faz uma biblioterapeuta?
Uma biblioterapeuta dinamiza e orienta processos biblioterapêuticos. A Biblioterapia pode ser definida como “um método facilitador do desenvolvimento pessoal e da resolução de problemas através dos livros” (Phersson e McMillen, 2016). Assim, a função do/a biblioterapeuta passa por conhecer bem as necessidades e os objetivos dos seus clientes, recomendar as leituras mais adequadas, providenciar orientações para a realização dessas leituras, acompanhar o processo de extração de ensinamentos e/ou novas perspetivas adquiridas sobre determinados assuntos através das leituras e orientar os seus clientes na implementação eficaz dos novos conhecimentos às suas vidas pessoais/profissionais. Espera-se que desta forma possam ultrapassar os problemas previamente identificados ou mudar para melhor algum outro aspeto da sua vida.

Com as empresas gosto de recorrer primeiro a um jogo bibloterapêutico que concebi em parceria com a Mindshake, ao qual chamamos Biblioshaking. O jogo estimula uma dinâmica de grupo no fim da qual cada participante leva um título de livro para ler.

Como decorre uma consulta nesta área?
Com um cliente particular, a primeira sessão consiste numa conversa de uma hora, uma hora e meia, em que procuro conhecer o melhor possível a pessoa que requisitou os meus serviços e com que objetivo(s). Traçado o perfil do cliente e das suas necessidades, elaboro a lista de leituras e forneço alguns materiais para orientação das mesmas. Nas sessões seguintes conversamos sobre os livros lidos, fazemos o levantamento do que foi aprendido, das novas perspetivas adquiridas e daquilo que o cliente está disposto a transpor para a sua vida. Elaboramos, então, um plano para implementar essas mudanças que, paulatinamente, encaminharão o cliente para o objetivo que tinha estabelecido à partida.

Com as empresas ou instituições em geral, o método é semelhante. Mas porque neste contexto trabalho com um grupo de pessoas — que apesar do objetivo comum, podem ser muito distintas umas das outras, por exemplo, no grau de instrução, de literacia ou na disponibilidade de tempo para ler, entre muitos outros aspetos — gosto de recorrer primeiro a um jogo bibloterapêutico que concebi em parceria com a Mindshake, ao qual chamamos Biblioshaking. O jogo estimula uma dinâmica de grupo no fim da qual cada participante leva um título de livro para ler. No decorrer dessa leitura, toma nota das suas associações, recordações, ideias, descobertas, aprendizagens, etc. recorrendo a um mapa mental. A partir daí, podemos avançar para uma biblioterapia de grupo, que implica a resposta anónima a um inquérito (para traçar o perfil do grupo e definir um denominador mínimo comum) e a leitura de um mesmo livro. As aprendizagens e novas perspetivas são discutidas em grupo para que se decida em conjunto que mudanças querem implementar, como e quando, até ser atingido o objetivo final. Num último momento, com clientes particulares ou institucionais, o processo é avaliado.

A biblioterapia é indicada em que situações?
Julgo que é preciso deixar bem claro, antes de mais, que a Biblioterapia não substitui a medicina. Pode, contudo, funcionar como uma terapia coadjuvante. Posto isto, a Biblioterapia é um método muito flexível e criativo, pelo que pode adequar-se a qualquer situação, a qualquer contexto e a qualquer faixa etária, já que saber ler não é obrigatório. Podemos levar processos biblioterapêuticos a cabo a partir da leitura de textos em voz alta.

Sabia que a empresa onde trabalhava não mudaria de acordo com as minhas necessidades, portanto era a mim que competia agir no sentido da mudança.

Quando decidiu que essa seria a sua profissão?
Quando voltei de uma volta ao mundo que fiz em 2014. Tinha pedido uma licença sem vencimento para me ausentar durante 6 meses, realizar um sonho, arranjar conteúdos para o meu blogue acordofotografico.com e festejar os 10 anos do meu autotransplante de medula óssea.  Quando voltei ao trabalho e me vi de novo fechada no mesmo escritório, a picar o ponto, a desempenhar as mesmas funções, presa às mesmas rotinas e aos mesmos “vícios”, soube em muito pouco tempo que não aguentava mais e que tinha de mudar, sobretudo se queria manter a minha sanidade física e mental que são o que de mais precioso temos nesta vida.

Sabia que a empresa onde trabalhava não mudaria de acordo com as minhas necessidades, portanto era a mim que competia agir no sentido da mudança. Estava entediada pela rotina, não aprendia nada de novo havia muitos anos, não se investia na minha formação, considerava que o meu trabalho e o meu mérito não eram reconhecidos, não tinha quaisquer perspetivas de progressão na carreira e, ao fim de 15 anos, considerava também que era mal paga.

Ainda passei uns meses a trabalhar em algo radicalmente diferente em Cabo Verde (na área da hotelaria e da restauração) e foi lá, no Mindelo e nas muitas horas passadas na praia a olhar para um mar azul sem igual, que me reestruturei: decidi que seria Biblioterapeuta e concebi um plano que pus em marcha assim que aterrei em Portugal.

Quando e em que circunstâncias se deu conta dessa transição profissional?
Fiquei manifestamente descontente a partir de 2012. Fui para casa com baixa médica por duas vezes e com instruções, por parte da minha médica de família com quem desabafei, para descansar e pensar na vida. A licença sem vencimento e a volta ao mundo serviram também para isso, para pensar na vida. Quando viajei já levava a Biblioterapia na cabeça e no coração. Ao regressar ao trabalho, em 2014, precisei de poucas semanas para ter a certeza que tinha de mudar o meu rumo profissional. Despedi-me. Ainda passei uns meses a trabalhar em algo radicalmente diferente em Cabo Verde (na área da hotelaria e da restauração) e foi lá, no Mindelo e nas muitas horas passadas na praia a olhar para um mar azul sem igual, que me reestruturei: decidi que seria Biblioterapeuta e concebi um plano que pus em marcha assim que aterrei em Portugal.

Como se preparou para a mudança?
Voltei a estudar. Comecei por obter um certificado internacional em Coaching Practitioner, que eu sabia que ia ser muito útil no desempenho das minhas novas funções. Depois, frequentei um curso breve de Biblioterapia para a Infância e Juventude, na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto. E li tudo o que pude sobre Biblioterapia — livros e informação disponível online. Infelizmente, a formação em Biblioterapia disponível em Portugal é quase nula, a não ser que nos proponhamos a fazer um mestrado ou um doutoramento nessa área, fora do meio estritamente académico não existe quase nada.

Qual o problema e o livro recomendado na sua primeira consulta
Dei a primeira consulta no Verão de 2016. O problema identificado foi a perda do gosto pela leitura no seguimento de uma depressão prolongada e o isolamento social. A pessoa em questão já tinha sido uma grande leitora, por isso optei não só por ir ao encontro das suas preferências literárias — boa literatura lusófona, romances históricos e biografias/testemunhos —, mas também em recomendar textos que não fossem demasiado longos, que constituíssem relatos alegres e com um foco positivo nos relacionamentos humanos, como por exemplo: Razões Para Viver, de Matt Haig, Sorrisos de Bombaim, de Jaume Sanllorente, A Cidade de Ulisses, de Teolinda Gersão ou A vida Inútil de José Homem, de Marlene Ferraz.

Como é o seu dia típico?
Quase não tenho dias típicos… Mas, pelo menos três vezes por semana os meus dias começam com exercício físico, de que preciso desesperadamente. Frequentei ginásios durante muitos anos, agora nado. Depois, respondo a mensagens que possam ter chegado via email ou qualquer outra rede social onde marque presença, porque há sempre solicitações que chegam a propósito d’ A Biblioterapeuta ou do Acordo Fotográfico. A partir daí, invisto o meu tempo nas múltiplas tarefas que tenho em mãos: redigir as bulas terapêuticas para a Bertrand Livreiros; acompanhar clientes de Biblioterapia; conceber e enviar orçamentos para workshops de Biblioterapia e outras atividades que vou concebendo em torno do livro e da leitura; redigir conteúdos para os meus blogues; ler (ser biblioterapeuta obriga a ler muito  de tudo um pouco; este ano vou no meu 22º livro lido e já fui da astrofísica, à filosofia, da ecologia ao romance), fazer a leitura em voz alta no Hospital de Santo António, no Porto, onde sou voluntária, entre muitas outras coisas…

Paralelamente a isto, tenho uma outra vida como líder de viagens para uma pequena agência, a Magellan Route. Sou a responsável pela viagem ao Irão (que já visitei três vezes e que devo visitar de novo em Setembro/Outubro; a propósito, ainda há vagas para quem quiser ir comigo) e estou atualmente a detalhar e orçamentar um roteiro para um novo destino.

Depois, tenho todas as tarefas domésticas a meu cargo também, porque ninguém as faz por mim: sou eu que vou às compras, limpo, arrumo, lavo, aspiro, passo a ferro, cozinho e trato das plantas no terraço. Gosto muito de cuidar da minha casa, acho que há algo de terapêutico, de disciplinador nisto de arrumar e limpar aquilo que eu mesma desarrumo e sujo.

Quais os traços de personalidade e as competências que considerem serem determinantes para se ser uma boa biblioterapeuta?
Uma biblioterapeuta tem forçosamente de gostar de ler, porque precisa de ler muito e de forma extensiva. Tem, também, de gostar de aprender continuamente, de apostar na sua formação e de estar atenta ao mercado editorial nacional e internacional. Deve ter uma boa cultura geral. Indispensável é gostar de pessoas, saber escutá-las ativamente, saber catalisar processos de mudança, não fazer juízos de valor, ser empática, sigilosa e íntegra.

 Quem é para si a grande referência nesta área? Porquê?
A minha grande referência na área da Biblioterapia em Portugal é a Professora Maria do Rosário Pontes, de quem fui aluna na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto. Porque é um ser humano excecional, dona de uma vastíssima cultura e pioneira da Biblioterapia em Portugal, pelo menos desde os anos 90 do século passado.

Um dos grandes benefícios da Biblioterapia é o estímulo à criatividade e ao pensamento criativo.

Qual a parte mais surpreendente da sua função que ninguém imagina?
Ser biblioterapeuta é um exercício constante de criatividade. Foi e ainda é uma surpresa para mim. É uma das melhores características desta atividade, porque as ideias surgem e acabam por contaminar positivamente outros trabalhos e contribuir para outras áreas da minha vida. Aliás, um dos grandes benefícios da Biblioterapia é o estímulo à criatividade e ao pensamento criativo.

 Que conselho deixaria a uma jovem que queira tornar-se biblioterapeuta?
Antes de mais, que acredite profundamente na Biblioterapia, para saber “defender a sua dama” com garra. Depois, que leia muito sobre o máximo de temas possíveis, que invista continuamente na sua formação e que se muna de uma dose gigantesca de persistência e resiliência. Num país onde ainda pouca gente lê regularmente e onde a maioria desconhece a Biblioterapia e os seus múltiplos benefícios, pode ser tentador resignar em pouco tempo…

Se fosse para uma ilha deserta, Memórias de Adriano seria certamente um dos volumes que levaria comigo.

Qual o livro da sua vida?
Resposta difícil esta… E, no entanto, também eu a coloco a muitos leitores que vou conhecendo por este país e mundo fora, o que é docemente irónico. Posso apontar um dos livros mais importantes: Os Maias, de Eça de Queirós. Com esta obra ímpar, que já reli, migrei da literatura para os mais novos, para a literatura dos adultos e aprendi o que era a grande literatura. Nunca mais fui a mesma leitora depois deste meu primeiro Eça. Mais recentemente, um dos livros que mais me marcou foi Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. Ainda não o reli, mas abro-o muitas vezes para ler parágrafos de forma aleatória. Se fosse para uma ilha deserta, seria certamente um dos volumes que levaria comigo.

 Que livro recomendaria a uma executiva que ambicione tornar-se líder?
É isto que eu faço, de Lynsey Addario, uma fotojornalista norte-americana com pouco mais de quarenta anos, que também é esposa e mãe de dois filhos. Um exemplo de determinação, persistência, paixão, ética e profundo humanismo. Que mulher incrível! Sou sua fã.

E para lidar com alguns dos “males” que afectam as mulheres: o medo (de não estar à altura dos desafios), da síndrome do impostor e da culpa?
Sem dúvida, os quatro volumes da saga escrita por Elena Ferrante (por esta ordem): A Amiga Genial, História do Novo Nome, História de Quem Vai e de Quem Fica, História da Menina Perdida. Não estar à altura dos desafios, culpa, síndrome do impostor e tantos outros desafios com que se confrontam especificamente as mulheres na vida pessoal/profissional — está tudo nas páginas desta obra inesquecível (que eu consumi numa semana, nas férias de Verão do ano passado).

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