Profissão: Inês Carvalho, programadora

Inês Carvalho apaixonou-se por tecnologia aos 12 anos e a paixão dura até hoje. É programadora na Aptoide e confessa que gostaria de ver mais mulheres na sua área.

Inês Carvalho é programadora na Aptoide.

Ter crescido numa família de geeks fez com que Inês Carvalho se apaixonasse pela tecnologia muito cedo. Nunca ninguém lhe disse que este era um mundo só de homens e assim, aos 12 anos, descobriu “o maravilhoso mundo do HTML” e quando dois anos depois teve de optar entre Letras e Engenharia, ganhou a última. Formou-se no Porto, mas o primeiro emprego foi na Deloitte, em Lisboa, em 2012, como analista. Desde que descobriu que era na web que queria trabalhar já passou pela Monday, pela Zaask e, desde 2015, está na Aptoide.

A sua experiência no mundo da tecnologia diz-lhe que há muito sexismo nesta área e que a opinião das mulheres é ainda pouco valorizada. Inês acredita que mais mulheres a trabalhar neste área vao ajudar a combater o preconceito e a boa notícia é que não é difícil encontrar emprego nesta área.

Como nasceu a sua paixão pela tecnologia?
Na verdade, esta paixão é algo que está comigo praticamente desde sempre! O meu pai é também engenheiro informático, e portanto desde muito pequena que tive acesso a computadores. Lembro-me perfeitamente do meu pai chegar a casa todo entusiasmado com uma inovação que era o MP3, que se podia ouvir música sem ter de se ir buscar o disco, e eu também ficar super entusiasmada. Somos uma família de geeks .

Quando decidiu que a programação seria a sua profissão?
Apesar do histórico familiar na informática, e de me ter envolvido com a programação relativamente cedo, tive muitas dúvidas quando chegou a altura de escolher o agrupamento no ensino secundário. Sempre gostei muito de ler e escrever, e, talvez num mundo ideal, tivesse ido pelo caminho de Letras. Mas como não vivemos num mundo ideal, e já nessa altura o agrupamento das Humanidades não tinha muita saída a nível de emprego, decidi, aos 14 anos, que a minha vida ia passar mesmo pela Engenharia. As pessoas ficam muito admiradas quando lhes conto isto, porque são áreas quase opostas!

O primeiro emprego não foi exatamente no que pretendia, o que levou Inês a procurar uma nova oportunidade. Encontrou-a, mas a ganhar “um bom bocado menos”. “Foi um sacrifício que fiz e que compensou”, garante.

Que critérios conduziram a escolha do curso?
Resumidamente, escolhi o melhor. A percepção que tinha era que, a nível da Engenharia Informática, os cursos de topo eram os do IST em Lisboa, e a FEUP, no Porto. Como naquela altura não equacionava, de todo, vir para Lisboa, nem sequer pensei muito no IST.
 Na minha ficha de candidatura constava o Mestrado Integrado em Engenharia Informática e Computação na FEUP como primeira opção, e em segundo lugar Engenharia Electrotécnica, para o caso de não conseguir entrar na primeira opção. A minha mãe passou-se quando percebeu que eu só tinha entregue duas escolhas, mas era o nível de confiança que eu tinha na altura. E, de facto, consegui entrar no curso que queria logo à primeira.

Quando teve a sua experiência de programação? Em que consistiu?
O meu pai tentou passar-me para as mãos um livro de SQL (base de dados) durante umas férias de verão, deveria eu ter uns 11 ou 12 anos, para “ser produtiva”. Ainda comecei, mas o livro estava obviamente dirigido a pessoas bem mais velhas que eu, e perdi o interesse muito rapidamente.
 Pouco tempo depois – tinha no máximo 12 anos – descobri o maravilhoso mundo do HTML, que é a linguagem base em que as páginas Web são construídas. Embora seja uma programação muito básica, foi por aí que comecei. Tinha um blog, onde escrevia essencialmente parvoíces típicas de uma miúda de 12 anos, e mantive também o site da minha turma da escola, onde colocava as fotografias das nossas visitas de estudo. Tinha muito tempo livre! Mas fui mantendo o blog até ao fim do secundário, e cheguei a participar num concurso da Microsoft, o Webmaster 2006 (Concurso Nacional de Criação de Páginas Web) no meu 12.º ano. Só ganhei uma menção honrosa, mas fiquei feliz na mesma. Todas estas experiências fizeram-me perceber que queria mesmo trabalhar na área da Web.

Foi difícil encontrar o primeiro emprego?
Quando acabei o curso, no início de 2012, estava a crise instaladíssima no país. Mandei muitos currículos para o Porto enquanto estava a escrever a tese, mas ninguém me respondeu. Mandei dois CVs para Lisboa – um para a Deloitte, e outro para uma agência de Marketing – mais perto da data da defesa da tese. Umas horas depois da defesa e de terminar assim o meu curso, ligaram-me da Deloitte para marcar entrevista. Vim cá pouco tempo depois, fizeram-me uma proposta, e foi assim que vim parar a Lisboa. Mas não fiquei muito tempo, porque nem um mês depois fui fazer um projeto em Luanda!

O meu primeiro ano de trabalho foi quase todo passado em Angola. Para quem nunca tinha saído de casa dos pais nem feito Erasmus, posso dizer que foi uma mudança bastante radical e nem sempre fácil. 
Só integrei um projeto na Deloitte, e não estava a trabalhar na área que pretendia. Na altura o que pensei foi: “enviei currículos para trabalhar em Web no Porto, mas não enviei nada para Lisboa. Agora que já cá estou, será que consigo?”
 E consegui, mas fiquei a ganhar um bom bocado menos durante mais ou menos um ano. Portanto, trabalhei um ano, regredi outro ano, e só no terceiro ano de trabalho é que evoluí a nível de salário. Mas não me arrependo de todo da decisão que tomei, porque é mesmo na Web que sou feliz. Foi um sacrifício que fiz e que compensou.

“Escrever código não é difícil. Difícil é escrever código que seja robusto, escalável e legível! Ou seja, que o programa / aplicação final tenha o mínimo de erros, que aguente muitos acessos sem ficar lento, e que outra pessoa que pegue no projecto a seguir consiga ler.”

Como descreve o seu trabalho a quem não entenda nada de tecnologia e programação?
A nível mais geral, o que faço no dia a dia é escrever código. Programar pode ser descrito como escrever um conjunto de instruções para resolver um determinado problema, e queremos que a solução seja a mais elegante possível.
 Uma amiga, que é designer de interiores, perguntou-me algumas vezes “mas afinal o que é que fazes? Fazes sites? Portanto podias desenvolver o Facebook?”. O meu tipo de trabalho, na área Web, é mesmo isto! E a beleza da programação, independentemente da especialização, é que tanto posso estar a trabalhar em algo mais sério, como aplicações para o governo, como em coisas mais divertidas, como o portal de promoções Promofans da Sonae. Podemos fazer qualquer coisa, desde que tenhamos o tempo e meios necessários para tal.

Quais os principais desafios da sua profissão?
Escrever código não é difícil. Difícil é escrever código que seja robusto, escalável e legível! Ou seja, que o programa / aplicação final tenha o mínimo de erros, que aguente muita carga / acessos sem ficar lento / impossível de aceder, e que outra pessoa que pegue no projecto a seguir consiga ler. É muito mais difícil do que parece, porque há muita coisa que não conseguimos prever no momento em que estamos a programar, mas depois corre mal no momento em que a aplicação é disponibilizada aos utilizadores. Também existe muita dificuldade em entregar ao cliente o que ele pretende, porque muitas vezes o cliente não sabe ao certo o que quer, e nós precisamos de ter tudo bem definido para podermos trabalhar.

Como se mantém atualizada?
Vou lendo o que se passa nas comunidades online para saber que frameworks / ferramentas estão em voga no momento e porquê. A nível profissional, muitas vezes não temos escolha sobre as ferramentas com as quais trabalhamos, portanto, para pôr em prática algumas ideias ou experimentar coisas novas, o ideal é ser mesmo em horário pós laboral, para depois tentar passar essas boas práticas para o trabalho. Há alturas em que tenho mais disponibilidade para programar em casa, mas muitas vezes chego exausta e quero fazer tudo menos ter o computador à frente… Requer muita força de vontade.

Como é o seu dia típico?
Como já referi, podemos trabalhar em programação mas em muitas áreas diferentes. Consoante a área, o típico dia é diferente. Quando estava em consultoria, tinha muitas reuniões e trabalhava muitas horas, sendo raro o dia em que saía antes das 20h, e trabalhei também muitos fins de semana. Na empresa onde estou actualmente, tenho uma reunião semanal para coordenar com a equipa o que cada um vai fazer durante essa semana, e depois eu organizo o meu próprio tempo consoante as minhas tarefas. Vou tendo reuniões menores com elementos de outras equipas, para nos alinharmos e assegurarmos que estou a desenvolver exactamente o que pretendem. Claro que há sempre imprevistos, mas raramente saio muito depois do horário estipulado.

“As pessoas acham que, sendo programadores, sabemos tudo sobre computadores e sabemos resolver todos os problemas informáticos das suas vidas. Não é verdade!”

Sendo um tipo de trabalho mais intelectual e que precisa de ser muito bem pensado e estruturado, o pior que se pode fazer é mesmo trabalhar cansado. Muitas vezes dei por mim ao fim do dia a tentar resolver um problema, perder imenso tempo, não conseguir, e no dia seguinte, com a cabeça fresca, resolvê-lo em 5 minutos. Tomamos más decisões quando estamos cansados, e em programação isso pode sair caro.

Apesar de estar sempre inserida numa equipa, a dada altura preciso de ser só mesmo eu e o teclado para me poder concentrar e produzir bom código, e é assim com os meus colegas também. Tiramos dúvidas e perguntamos a opinião uns dos outros em diversos temas, mas programar em si é algo mais individual. 
Já o contacto com clientes é muito, muito raro. Normalmente, existe alguém que gere o cliente e nos passa o que é pretendido; os gestores lidam com o cliente e nós, os programadores, arranjamos soluções e concretizamos o que o cliente pretende.

Qual a parte mais surpreendente do seu trabalho que ninguém imagina?
As pessoas acham que, sendo programadores, sabemos tudo sobre computadores e sabemos resolver todos os problemas informáticos das suas vidas. Não é verdade! Programar é, aliás, muito diferente de suporte técnico, às vezes somos nós que precisamos de suporte técnico. Quando me pedem ajuda tento é fazer o que faço todos os dias mas noutro contexto: tento encontrar uma solução para o problema.

“Se não conseguimos organizar o nosso trabalho, também não vamos conseguir organizar a nossa forma de pensar, e isso traduz-se no código que escrevemos… Se estiver uma confusão, ninguém vai perceber como funciona e, quando der problemas, vai ser terrível para perceber a origem.”

Que características considera fundamentais para ser uma boa programadora?
Acho que organização é fulcral. Se não conseguimos organizar o nosso trabalho, também não vamos conseguir organizar a nossa forma de pensar, e isso traduz-se no código que escrevemos… Se estiver uma confusão, ninguém vai perceber como funciona e, quando der problemas, vai ser terrível para perceber a origem.

Ajuda bastante se soubermos comunicar de forma clara. Já vi muitos problemas que foram causados por falhas de comunicação. Faço os possíveis por incluir as pessoas com quem estou a trabalhar, e informá-los se estou a ter mais ou menos dificuldades a concretizar o que me pediram. Gerir expectativas é muito importante.

Quem é para si a grande referência na programação?
Hum, não diria que há grandes personalidades na programação, ou estrelas… A programação é um trabalho mais de bastidores, ficamos mais no anonimato.

Vemos é a forma como se trabalha em grandes empresas da área (Google, por exemplo), e tentamos reproduzir as técnicas que usam. Apesar de ser um trabalho mais individual, não é só uma pessoa que consegue construir sozinha um portal gigante: por vezes, parte do que está online já foi escrito há mais tempo, por alguém que até já nem está na empresa!

Que perspetivas de carreira existem na sua área?
Quando terminei o curso, foi relativamente fácil encontrar emprego; acho que ainda hoje se mantém esse cenário, porque há imensa procura.
 O único problema é que em Portugal ainda se quer muito o depressa e barato, mais do que trabalho de qualidade. Pedem-nos coisas muito complexas mas nem imaginam o esforço que requer, então o que acabamos por fazer é montar um castelo de cartas em vez de um edifício bem estruturado… e isso desmotiva. É preciso ter cuidado para evitar esse tipo de situações / empregos, e analisar as propostas para ver onde há possibilidade de aprender a fazer as coisas bem em vez de em cima do joelho.

“Nas comunidades online existe uma forte presença masculina que, por trás do anonimato do computador, pode ser mais desagradável quando percebem que estão a falar com uma mulher, desvalorizam o que ela diz.”

Porque acha que ainda há poucas mulheres na programação?
Eu tive a sorte de ter pais que sempre me incentivaram e nunca me deram a entender que esta área era “só para homens”. Creio que é preciso cativar mais raparigas em idade escolar para a programação, para poderem ingressar em bons cursos superiores e depois fazerem carreira nesta área.
 O facto de ser um meio maioritariamente de homens pode também ser intimidante para as raparigas, mas isso só se resolve se mais mulheres quiserem fazer carreira nesta área.

Acredita que a existência de mais mulheres nesta área pode mudar a forma como se pensa e faz a programação?
Acredito que, mais do que mudar a forma como se pensa, se mudaria o ambiente em geral. Nas comunidades online existe uma forte presença masculina que, por trás do anonimato do computador, pode ser mais desagradável quando percebem que estão a falar com uma mulher, desvalorizam o que ela diz. Existe sexismo nesta área, tal como existe de forma geral no mundo de trabalho, mas se houvesse mais mulheres na área, creio que conseguiríamos dar melhor a volta a este problema.

Que conselho deixaria a uma mulher que queira tornar-se programadora?
É um percurso difícil, não vou mentir. O curso é muito exigente, e o trabalho em si também é. Estando num mundo de homens, também temos de provar mais o nosso valor. O conselho que dou é mesmo trabalhar arduamente e tentar aplicar, dentro do que for possível, as boas práticas de programação, e não ceder à tentação da solução rápida e fácil. Mesmo que demore mais tempo a completar uma tarefa, o tempo que se poupa em manutenção dessa funcionalidade no futuro acaba por compensar largamente.

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