Brígida Pereira Neves sempre quis ser bailarina. Começou a dançar na Escola de Dança Ana Mangericão, em Cascais, mas formou-se em Londres, na Rambert School of Ballet and Contemporary Dance, em 2003, ano em que participou na Genée International Ballet Competition, em Birmingham, e se sagrou semi-finalista. Seguiram-se quatro anos como freelancer, passando por companhias como a English National Ballet, a Vienna Festival Ballet e a English National Opera. De 2007 a 2012 foi solista e a única bailarina ocidental a integrar uma companhia chinesa, a Liaoning Ballet of China, e em 2008 participou na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Entre 2013 e 2016, dançou como segunda solista na Ballet of the National Moravian-Silensian Theatre, na República Checha, tendo igualmente feito parte da criação de uma nova versão do bailado “O Quebra-Nozes” no Tivoli Ballet Theater, em Copenhaga. Finalmente, na temporada de 2016/17, rumou à Áustria e integrou a Tiroler Landestheater TanzCompany Innsbruck. Hoje é embaixadora da Genée International Ballet Competition 2017, que se realiza pela primeira vez em Lisboa.
Quando decidiu que ser bailarina seria a sua profissão?
Desde os 3 anos que pedia à minha mãe para me pôr no balela e sempre me lembro de querer ser bailarina. Dançar sempre me fez sentir uma liberdade e um prazer interior inigualável.
A atividade e a preparação física necessária são duas das grandes componentes da profissão. Mas penso que a parte mais desafiante é, talvez, a mental, pois é necessária muita resiliência.
Que formação foi necessário fazer?
Comecei numa escolinha local em Cascais com 3 anos. A conselho da professora, mudei-me para a Escola de Dança Ana Mangericão, onde treinei até aos 16 anos. Em busca de formação mais avançada e profissional, entrei na Rambert School of Ballet and Contemporary Dance, em Londres em 2000, onde frequentei o curso profissional até aos 19 anos.
Ao longo dos anos frequentei vários cursos no estrangeiro, enquanto estudante e profissional também, em Portugal, Inglaterra, Hong Kong, França, Dinamarca, Holanda e Estados Unidos. Pessoalmente, considero essencial uma aprendizagem contínua ao longo da vida.
Participar na competição da Genée International Ballet Competition em 2003, da qual agora sou Embaixadora em 2017 (que se realiza em Lisboa pela primeira vez), foi também um passo importante nessa formação. Treinar e dançar com colegas estudantes de todo o mundo e ter a oportunidade de me comparar com todos eles, foi um impulso e uma aprendizagem para o mundo profissional para o qual me estava a preparar.
Quais os principais desafios da sua profissão?
A atividade e a preparação física necessária são duas das grandes componentes da profissão: as longas horas de trabalho, a aprendizagem e execução de estilos de dança muito variados, as diferentes pessoas com quem se trabalha e as suas múltiplas culturas. Mas penso que a parte mais desafiante é, talvez, a mental, pois é necessária muita resiliência. Por um lado, ter de passar por tantos sacrifícios, tal como estar longe da família, amigos e a cultura que conhecemos, só é possível gostando muito do que se faz. Por outro lado, é um desafio e uma aprendizagem pessoal mantermo-nos motivados e ter a capacidade de redirecionar os nossos sonhos, ambições e expectativas ao longo da carreira. Como esta é uma carreira limitada no tempo, sentimos uma pressão extra para alcançarmos os nossos objetivos rapidamente.
A experiência na China foi inesquecível, mais difícil no início. Tive de reaprender o modus operandi da sociedade, até de coisas tão simples como andar de comboio, ir ao mercado, aos correios ou apanhar um táxi.
Em 2007 integrou a Liaoning e, à época, era a única bailarina ocidental numa companhia chinesa. Como se sentiu?
A experiência na China foi inesquecível, tal como em todos os outros países onde trabalhei e vivi, cada um importante em determinada altura da minha vida. Na China, foi, no entanto, mais difícil no início, pois tive de reaprender o modus operandi da sociedade, até de coisas tão simples como andar de comboio, ir ao mercado, aos correios ou apanhar um táxi. Isso refletia-se também na minha integração na companhia. Aos poucos fui aprendendo mandarim o que me permitiu uma maior aproximação dos chineses, aliado a um constante esforço de integração que eu sempre considerei muito importante para qualquer emigrante. Claro que também experienciei algumas situações de discriminação, tanto positivas como negativas, apenas pelo facto de ser diferente.
Qual a parte mais surpreendente do seu trabalho que ninguém imagina?
Talvez o facto de enquanto bailarinos, treinarmos todos os dias, aulas e ensaios, tal como os atletas, com horários estipulados e horas certas. Nós, embora profissionais de espetáculo, somos estudantes também todos os dias, procurando melhorar e crescer não só através das peças que dançamos, mas também dos treinos específicos que temos e procuramos.
Como se prepara quando vai integrar uma nova companhia?
Todas as companhias são diferentes, não só por se de tratar de organizações distintas, mas também pelas pessoas que as compõem serem diferentes. Pesquisar a companhia que se vai integrar é crucial, embora nunca se consiga conhecer na totalidade o que vamos encontrar até lá chegarmos. Normalmente, gosto de falar com os bailarinos que já lá estão ou estiveram, e recolher as suas opiniões e experiências. Fazer muitas perguntas e não ter vergonha de perguntar!! Levar connosco as nossas melhores qualidades e capacidades e ir aberto a aprender.
Muitas vezes, integrar uma nova companhia é sinónimo de viver num outro país e isso também traz consigo muitas outras facetas de vida: novo sistema de impostos, sistema de saúde, sistema de segurança social, conta bancária, telemóvel, supermercados, horários de abertura e nova maneira de trato com as pessoas. Isto tudo requer adaptação, flexibilidade e tempo, além de alegria e calma em integrar um novo sistema, dentro e fora da companhia.
Numa audição para além de estar a ser avaliada, também eu avalio a companhia de acordo com as minhas expectativas.
Que cuidados tem com a alimentação e a preparação física?
Durante os meses de trabalho, a chamada temporada, vivo muito focada em estar sempre na melhor forma física possível. Isto significa: dormir bem, comer equilibradamente e não praticar certos desportos ou atividades físicas que possam interferir com a minha capacidade de dançar ao mais alto nível ou criar lesões.
Sempre gostei muito de comer saudavelmente e acho importante ter um pouco de todos os nutrientes necessários a cada refeição. Por isso, apesar de comer o que é necessário para me manter saudável, não me inibo de também comer um gelado ou bolo quando me apetece, pois, proibir-me é também não dar ao meu corpo o que ele às vezes mais precisa. Na verdade, as refeições ou pratos que me dão mais prazer são aqueles que estão cheios de nutrientes e vitaminas, mas também cheios de sabor!
Além das três refeições diárias, entre ensaios e aulas, como sempre com regularidade para manter altos os meus níveis de energia, e para isso recorro frequentemente a fruta, bolachas integrais, frutos secos e sementes, iogurtes, sumo e muita água.
Quantas horas dança por dia?
Entre 8 e 10 horas.
Como se prepara para uma audição?
Além de pesquisar sobre a companhia, o diretor, as coreografias que dançam e outros detalhes que consiga descobrir, o mais importante para mim, é estar preparada mentalmente e isso significa estar clara dos meus objetivos. Saber que bailarina sou e estar preparada fisicamente dá-me autoconfiança, tal como saber o que procuro e o que desejo para um novo emprego. Numa audição para além de estar a ser avaliada, também eu avalio a companhia de acordo com as minhas expectativas. O mais importante, saber que no final eles dirão somente sim ou não, e essa decisão está fora do meu controlo. Se me dedicar à experiência por inteiro, sairei sempre com algo novo.
Adoro qualquer possibilidade de experimentar e aprender novos estilos tais como swing, jive, jazz, folklore, flamenco.
O que faz antes de entrar em palco?
Gosto de chegar ao teatro com tempo, normalmente duas horas e meia ou três horas antes, embora esse tempo me pareça sempre insuficiente! Faço a maquilhagem e o penteado com calma, mas quando tenho uma boa profissional no teatro em quem confie gosto muito que me maquilhem e penteiem! Não dispenso um bom aquecimento, bem como meia banana e uma pastilha de glucose antes de ir para o palco. Levo sempre água e uma bebida que me dê mais vitaminas e minerais. Gosto de correr um pouco no palco e sentir o espaço antes da cortina subir. Não ouço música, mas gosto de estar no meu próprio espaço, o que os meus colegas respeitam. Antes de começar o espetáculo, desejamos todos uns aos outros Toi Toi Toi, uma saudação de sorte.
Qual é o seu bailado de eleição?
É sempre tão difícil escolher um bailado específico pois todos me marcam de maneira tão diferente. O Lago dos Cisnes será sempre um favorito. Além da música ser tão forte e emocional para mim, é também o bailado que mais vezes dancei, em quase todas as companhias onde trabalhei, em múltiplas versões. Enquanto corpo de baile sente-se uma união com todas as colegas que, juntas, representam os cisnes e isso requer um trabalho de equipa em uníssono muito especial.
Também, o bailado “La Sylphide” de August Bournonville, por ser um bailado romântico com tanta verdade e diversão também, a peça “Trio G Moll” de Pavel Šmok pelo desenvolvimento emocional e os obstáculos ultrapassados, “Chaplin” de Mario Schrödder pela oportunidade de caracterizar uma personagem tão única e “Edith Piaf” de Marie Stockhausen por retratar toda a vida da cantora numa só noite.
Além do ballet, tem outro estilo de dança favorito?
A dança contemporânea porque dá-me uma liberdade e expressão diferentes. Além disso, adoro qualquer possibilidade de experimentar e aprender novos estilos tais como swing, jive, jazz, folklore, flamenco.
Qual foi o momento mais marcante da sua carreira?
A minha carreira foi sempre pautada por momentos muito especiais: o meu primeiro emprego ao fim de quase um ano de audições, conseguir o meu primeiro contrato a tempo inteiro numa companhia, dançar o meu primeiro papel principal ou fazer a minha melhor audição e conseguir o emprego de entre mais de 300 pessoas. No entanto, todos os momentos em que a minha família ou companheiro vêm ver-me dançar são sempre únicos e continuam a dar-me uma energia extra.
Sinto-me atleta em corpo inteiro, por toda a carga física, rigidez e disciplina física e mental que o meu trabalho requer.
Qual o papel que representou que mais a marcou?
Ao longo da minha carreira eu já dancei repertório muito variado, o que me leva a identificar vários papéis marcantes. Ser Effy em “La Sylphide”, que me ensinou o que é linguagem não verbal, o que significa ser natural em palco e como um bailado do sec. XIX pode ser ainda tão relevante.
Dançar o papel principal, interpretando Charlie Chaplin, no bailado biográfico “Chaplin” de Mario Schrödder. A pesquisa física e mental, o desenvolver desta personagem com maneirismos tão específicos e reconhecíveis, a aprendizagem de como me mover como um homem e não como uma mulher, e a oportunidade de representar uma vida inteira tão forte e marcante. Embora exaustivo fisicamente, foi emocionalmente gratificante.
Interpretar Edith Piaf, a cantora francesa, em “Edith Piaf, o Pardal de Paris” de Marie Stockhausen. Uma vida tão cheia e atribulada, repleta de música tão bela e amada, com tantos altos e baixos. Uma oportunidade de aprender sobre esta artista e os seus compassos morais, as suas preocupações e ambições. Só vivendo essas emoções no palco, encontrando paralelos na minha vida consigo transmitir isso ao público.
Que personagem sonha interpretar?
Apesar das minhas ambições e sonhos se irem modificando, continua a ser um sonho antigo dançar Odete/Odile, o Cisne Branco/Negro em O Lago dos Cisnes.
Sonho também em dançar num bailado de amor trágico, a possibilidade de interpretar uma personagem complexa e dividida em amor, como Romeu e Julieta, Manon ou Onegin.
Sente-se mais artista ou atleta?
Sinto-me atleta em corpo inteiro, por toda a carga física, rigidez e disciplina física e mental que o meu trabalho requer. Com o passar do tempo, sinto-me cada vez mais artista em alma inteira, por todas as viagens em que embarco em cada espetáculo que danço e por todas as emoções que vivo com o intuito de dar ao público a oportunidade de experienciar algo verdadeiro.
Que características e qualidades considera fundamentais para ser uma boa bailarina?
Persistência, dedicação, força, coragem, determinação, generosidade e tranquilidade. Para se ser uma boa bailarina e também artista acredito também ser necessário muito amor, paciência, autoconfiança e humildade por igual.
Os melhores bailarinos não são os que têm as capacidades perfeitas, mas sim os que melhor sabem mostrar as suas qualidades.
Quem é para si a grande referência nesta área? Porquê?
Existem tantas referências que poderiam ser mencionadas que se torna difícil selecionar. Porém, as pessoas que me influenciaram e ainda inspiram são: Frank Andersen, por me apresentar à La Sylphide e ao estilo Bournonville, por continuar a puxar-me em novas direções e investir em mim; a Anthony Minghella, por me mostrar o que é ser grande mas continuar a tratar todos individualmente com carinho e atenção; Jeanne Solan, por ser uma inspiração a seguir em como envelhecer na profissão e manter a integridade e valor pessoal; Sylvie Guillem, por ser a bailarina sempre presente na profissão durante todos estes anos de carreira e que nunca mudou o seu rumo por ninguém. Muitos mais pelo caminho, que de uma maneira ou de outra, me ensinaram em que direção rumar e outras que me mostraram no que não me tornar.
Que conselho deixaria a uma jovem que queira tornar-se bailarina?
É importante que seja verdadeira consigo própria. Deve identificar as suas mais valias e fraquezas e trabalhar para as melhorar, sem nunca deixar de mostrar as suas qualidades com orgulho e confiança. Os melhores bailarinos não são os que têm as capacidades perfeitas, mas sim os que melhor sabem mostrar as suas qualidades. Não deve ter medo de falhar e experimentar e deve sempre trabalhar para os seus objetivos e fazer tudo com gosto. Tal como diz a frase: “Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo”.
Nem todas as companhias têm o mesmo horário ou modo de trabalho. Neste momento e desde há um ano, danço com a TanzCompany Innsbruck, inserida no Tiroler Landestheater, no Tirol, Áustria. Lá temos turnos duplos, o que quer dizer que trabalhamos das 10h às 14h e depois das 18h às 22h. É um horário que eu sinto ser mais difícil pois os dias tornam-se muito longos.
7h/7h30 Acordo, bebo a minha água quente com limão e arranjo-me. Costumo fazer 30m de meditação e depois tomo o pequeno-almoço: fruta com iogurte e muesli.
9h15 É a hora a que chego ao teatro. Arranjo-me para a aula de ballet. Temos aulas todos os dias com duração normal de 1h15, onde praticamos todos os movimentos necessários para aquecer e desenvolver a nossa técnica.
11h15 Depois da aula e até às 14h, criamos e ensaiamos novas peças que estejamos a preparar para estreia, reensaiamos outras peças que tenhamos espetáculo ou temos workshops de novos estilos de movimento que precisaremos para as coreografias.
14h Tomo duche no teatro, lavo roupa do trabalho e almoço normalmente na cantina do teatro ou em casa se tiver comida feita. Vou de bicicleta para casa e descanso pelo menos 20 minutos (ou mais, dependendo da carga física a que estiver sujeita nessa altura). O resto do intervalo, que acaba por ser muito curto, trato de coisas em casa ou aproveito para ir comprar comida ou tratar de outros assuntos na rua.
17h Estou de volta ao teatro e preparo-me de novo para ensaiar.
18h Depois do aquecimento, regresso novamente aos ensaios.
22h Terminado o dia de trabalho, tomo um duche antes de regresar a casa.
22h45 Geralmente, chego a casa a esta hora. Janto, vejo uma série, leio umas notícias ou um livro, ou falo com a minha família para desligar do trabalho.
24h Vou para a cama e no dia seguinte começa tudo de novo!
As nossas folgas dependem do nosso plano de espetáculos e nesses dias aproveito para limpar a casa, sair com os meus amigos, relaxar além de procurar novos locais de brunch na cidade, visto ser uma das minhas refeições favoritas!