Maria João Martins:
o apelo do cheiro dos livros

Desde sempre fascinada por livros e avessa a rotinas, a jornalista lançou a Gato do Bosque Editores "disposta a reencontrar o empolgamento da descoberta"

Selfie da diretora editorial da Gato do Bosque Editores, na loja singular, em Benfica: livros entre antiguidades e bric-a-brac

“Fui arrebatada para dentro dos livros por volta dos quatro anos. Em casa dos meus avós maternos havia uma biblioteca majestosa, em que ‘brilhava’ a História de Portugal em vários volumes, coordenada por Damião Peres, que, por essa altura, me deveria fascinar por incluir mais personagens do que qualquer outra obra alguma vez escrita. Esse fascínio antigo perdurou e intensificou-se. Aos 20 anos, estudante de História na Faculdade de Letras de Lisboa, tornei-me jornalista: na secção de ‘Cultura & Espectáculos’, do Diário de Lisboa, situado num prédio do Bairro Alto, onde, em tempos há muito idos, chegara a pernoitar Fernando Pessoa. Assim, apadrinhada por tão nobres ‘fantasmas’, segui para a redacção do JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, onde estive 20 anos consecutivos, durante os quais só por acaso próximo do milagre escapei ilesa a pilhas de livros colocadas em equilíbrio instável. Entrevistei centenas de autores, nacionais e estrangeiros, opinei pouco, resenhei alguma coisa, noticiei muito mais. Por fim, ousei escrever os próprios livros – de História, mas também de ficção.

Tal como os títulos que me arrebataram para dentro deles aos quatro anos, a ousadia vicia e torna-se um modo de estar pouco tolerante com rotinas tão instaladas que transformam o que deveria ser pensamento em automatismo. Deixei a sombra da pilha de volumes em equilíbrio instável, grata pelo muito que me foi proporcionado, mas disposta a reencontrar o empolgamento da descoberta, mesmo que tal desígnio se confundisse, aos olhos dos outros, com os primeiros sintomas de uma crise de meia-idade.

Fazemos o que queremos, como queremos e de acordo com aquilo que pensamos serem as necessidades do público leitor.

Assim nasceu a Gato do Bosque Editores (www.gatodobosqueditores.com), onde, apoiada e coadjuvada desde a primeira hora pelo meu marido, António Alves, entrei definitivamente para dentro dos livros: fazendo os que queremos, como queremos e de acordo com aquilo que pensamos serem as necessidades do público leitor. Admitamos: este não é o final de uma história ao estilo ‘e foi feliz para sempre’. Os obstáculos são muitos: a conjuntura é cabo árduo de dobrar, a leitura não é hábito generalizado entre nós, a ditadura dos grandes grupos pode ser desesperante. Mas fomos à luta: procurámos os nichos de mercado por explorar, as melhores parcerias, errámos e corrigimos a rota, negociámos muito, numa luta diária tão empolgante como desgastante. O primeiro título saiu para a rua em Outubro de 2014: Luanda, Invenção de uma Capital e pode hoje ser encontrado na maior parte das livrarias do país. É também o primeiro volume da colecção “Tanto Mar”, destinada a abordar, já sem complexos nem preconceitos, a relação de Portugal com as ex-colónias. Sobre ele dir-vos-ei que nas nossas memórias ficará para sempre o momento mágico em que chegaram à nossa sede os primeiros exemplares impressos: abrimo-los como crianças que encontrassem pela primeira vez o cheiro do papel novo, a qualidade da colagem ou o vinco da dobra.

Importa estudar todos os dias, investigar incessantemente, manter a atenção de um piloto de avião para nunca perder o rumo.

Muitos outros títulos com a chancela da Gato do Bosque Editores se seguirão, assim haja vida, saúde e… coragem. A História é a coluna vertebral da nossa programação editorial que, ainda este ano, incluirá Lisboa, Brasil, Moda e Desporto. As dificuldades iniciais demonstraram-nos que jamais nos poderemos dar por instalados. Importa estudar todos os dias, investigar incessantemente, manter a atenção de um piloto de avião para nunca perder o rumo. A tecnologia muda rapidamente, as expectativas dos leitores também e só os produtos de grande qualidade se manterão acima dos fenómenos de moda que também assolam o mercado editorial. Escolhi o caminho mais difícil? Possivelmente. Mas estou certa de que nenhum outro me proporcionaria ao mesmo tempo tanta satisfação pessoal e também tanta humildade na relação com o Outro. Acordo todos os dias com o despojamento de quem nas mãos leva livros como se fossem rosas.”

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