Uma das nossas grandes aprendizagens mais complexas e duras que, como sociedade tivemos que fazer, durante este último ano e meio de pandemia, foi sobrepor o interesse geral acima do individual, priorizar a saúde dos outros em detrimento da nossa liberdade de circulação ou comodidade, nomeadamente forçando-nos com a utilização generalizada das máscaras. Apesar de tudo, a sociedade no conjunto continua a fazer um esforço draconiano de solidariedade e apoio mútuo, sem desprezar as restrições de direitos fundamentais e o impacto negativo na economia que a protecção da saúde pública causou. Desde inícios, do ano 2020, toda a sociedade viu-se forçada a cumprir com indicações das autoridades sanitárias e políticas, que sem muito conhecimento técnico possível à data, decidiam, com carácter urgente, à medida das necessidades, para a salvaguarda de todos. Durante esta fase, a capacidade de compreensão e a forma de processar a insegurança do regime jurídico transitório e instável, foi essencial! O desconhecimento perante a Covid-19 e a necessidade de tomar decisões urgentes, obrigou a sociedade a fazer um esforço de adaptação histórico.
Durante todo este período de pandemia, as restrições de direitos fundamentais, especificamente da livre circulação (um direito fundamental e humano, básico nos pilares da constituição da União Europeia), foram um instrumento essencial para combater as consequências na saúde da cidadania mundial. No entanto, os gestores políticos e sanitários encontravam-se focados no nefasto impacto na economia mundial, como seja, a título de exemplo na restauração, turismo, hotelaria, aviação, eventos, entre outros, da falta de mobilidade da sociedade que por medo da doença ou pelas restrições, não queria sair de casa. Nos últimos meses, tivemos que conviver com ambas situações, restrições muito duras relativamente à mobilidade e as drásticas consequências na economia, ao mesmo tempo, que existe uma evolução muito favorável da vacinação, o que faz com que as restrições até agora vigentes, não se verificavam totalmente proporcionais.
Tendo em conta que a nível internacional, os certificados de vacinação e os requisitos de vacinação para viajar para determinados países já existem há muitos anos (Certificado Internacional de Vacinação), como foi o exemplo da febre-amarela ou a cólera, os países da União Europeia decidiram criar um novo Certificado Digital Covid-19.
- Será assim esta a melhor forma de recuperar a mobilidade e a economia?
- Recuperamos o direito à mobilidade, pondo em causa outros direitos fundamentais?
- Será que o direito a não ser discriminado com base na situação pessoal ou social, e o direito à protecção dos nossos dados pessoais, especialmente se forem tão sensíveis como os relacionados com a saúde, estão a ser rigorosamente protegidos?
A 25, de Junho, o Regulamento europeu foi transposto numa directiva interna, o Decreto-Lei 54-A/2021, definindo assim as normas de emissão, apresentação e utilização do certificado digital Covid, da UE, em Portugal. Esta directiva entrou em vigor no passado dia 25 de Junho de 2021. Os cidadãos portugueses, e residentes da UE, podem agora solicitar via online a emissão e verificação dos seus certificados digitais Covid em toda a Europa. Apenas os menores de 12 anos estão dispensados da apresentação de certificado digital Covid ou do comprovativo da realização de teste para despiste da infecção por SARS-CoV-2 para efeitos das utilizações reguladas na presente secção, conforme o disposto no artigo 11º, do referido decreto.
O certificado digital Covid, é uma prova digital de que uma pessoa foi vacinada contra a Covid-19, que recebeu um resultado negativo no teste ou que recuperou da doença. Este certificado tem na génese as seguintes características:
- ser em formato digital e/ou papel,
- ter código QR,
- ser gratuito,
- ser emitido na língua nacional e em inglês,
- ser seguro e protegido,
- ser válido em todos os países da UE, na Islândia, no Liechtenstein, na Noruega e na Suíça.
Importa assim frisar, que as nossas autoridades são responsáveis pela emissão do mesmo, podendo ser emitido, por exemplo, pelos centros de testagem ou autoridades de saúde ou, directamente, através de um portal de saúde em linha. Os nossos serviços devem ponderar a forma como obter o certificado junto das populações mais vulneráveis, tanto que o artigo 3.º, da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, relativo ao direito de acesso ao ambiente digital, atribui ao Estado a obrigação de definir e executar programas de promoção da igualdade de género e das competências digitais nas diversas faixas etárias, e a eliminação de barreiras no acesso à Internet por pessoas portadoras de necessidades especiais a nível físico, sensorial ou cognitivo.
Também ao nível do funcionamento do certificado digital COVID, o mesmo contém um código QR, com uma assinatura digital para impedir falsificações. O certificado digital COVID é verificado através da aplicação móvel própria para a leitura do respectivo código QR. Quando o certificado é inspeccionado, o código QR é digitalizado e a assinatura verificada.
Assim, segundo Ricardo Lafuente, vice-presidente da Associação D3 – Defesa dos Direitos Digitais, “A falta de informação em relação ao funcionamento do Certificado Digital Covid, sobretudo no que respeita à protecção dos dados dos cidadãos que os venham a usar, leva a duvidar da segurança deste certificado”. O Parlamento Europeu garantiu que “todos os dados pessoais serão tratados de acordo com o Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados” e que “não serão conservados quaisquer dados pessoais”, mas para Ricardo Lafuente, dizer isto não é o suficiente. Pelo contrário é “primário, porque apenas dizem ‘vamos cumprir o RGPD’, não explicam como”.
Se a legislação relativa a nossa privacidade já é estrita, ainda mais se torna quando se trata de dados de carácter sensível como os relativos à saúde. Os dados de saúde, como são os resultados dos testes a Covid-19 ou vacinação, têm um grau de protecção reforçado de acordo com o artigo 9.º, do Regulamento Geral de Protecção de Dados, e cada país é obrigado a fornecer as medidas necessárias para salvaguardar os direitos e liberdades dos indivíduos mesmo quando são perseguidos interesses de saúde pública.
De facto, devemos reflectir sobre esta temática porque assegurar a protecção de dados é essencial e está consagrada na Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, pela execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de Abril de 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados.
Acrescenta-se que a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital veio apoiar os direitos da cidadania em um contexto cada vez mais tecnológico, uma vez que a maioria dos nossos dados estão em plataformas digitais. Esta Lei n.º 27/2021, de 17 de Maio, abrange dentro do direito à protecção de dados pessoais (artigo 8.º direito à privacidade em ambiente digital), o controlo sobre a sua recolha, a conservação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, entre outros, e a eliminação ou a destruição (artigo 13.º direito ao esquecimento).
Se a legislação relativa a nossa privacidade já é estrita, ainda mais se torna quando se trata de dados de carácter sensível como os relativos à saúde. Os dados de saúde, como são os resultados dos testes a Covid-19 ou vacinação, têm um grau de protecção reforçado de acordo com o artigo 9.º, do Regulamento Geral de Protecção de Dados, e cada país é obrigado a fornecer as medidas necessárias para salvaguardar os direitos e liberdades dos indivíduos mesmo quando são perseguidos interesses de saúde pública. In casu, o consentimento individual não é suficiente. À luz do disposto no artigo 25.º, do RGPD, estabelece que, mesmo quando cada paciente dá consentimento para que seus dados sejam colectados, armazenados e processados para um passaporte digital de saúde, os fornecedores devem incluir a protecção de dados por padrão no desenho dessas tecnologias.
Sendo este, um certificado europeu deve reger-se pelo respeito dos princípios da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, sendo que esta consagra direitos e liberdades como a inviolabilidade da dignidade humana, a igualdade perante a lei ou a liberdade de circulação.
E perante tal discriminação abordamos o Bastonário da Ordem dos Advogados, Prof. Doutor. Luís Menezes Leitão, afirma que: ”(…) a questão não me parece residir tanto na obrigação de transportar um boletim de vacinas, que já ocorre em relação a outras doenças. Mas sim no facto de estas vacinas não estarem disponíveis para todos e, portanto, as pessoas não poderem proceder à sua própria vacinação, se quiserem viajar. É nessa medida que a exigência pode violar o princípio da igualdade, ao discriminar os não vacinados, e a liberdade de circulação, ao exigir para a mesma um requisito que os cidadãos não estão em condições de obter (…)”. Com referência às palavras do Bastonário, devemos acrescentar a “falsa sensação” de segurança que cria o facto dos vacinados acederem a espaços fechados (com outras pessoas não vacinadas) sem saber que estão contaminados, sendo que, as pessoas vacinadas podem continuar a contagiar-se e contagiar, o que nos faz ponderar sobre se o certificado digital será realmente uma opção segura.
As prestações de saúde requerem acesso a dados pessoais e sensíveis relativos ao próprio serviço médico recebido. No entanto, esses dados estão na ficha médica, de acesso ao médico pessoal. A digitalização dos certificados de vacinação vai acompanhada de um aumento da recolha de dados pessoais e facilita a consulta, por pessoas externas ao serviço médico, ao obrigar a população a circular com essa informação, o risco de perda de controlo derivado de usos não relacionados com o tratamento da saúde, é muito elevado.
As prestações de saúde requerem acesso a dados pessoais e sensíveis relativos ao próprio serviço médico recebido. No entanto, esses dados estão na ficha médica, de acesso ao médico pessoal. A digitalização dos certificados de vacinação vai acompanhada de um aumento da recolha de dados pessoais e facilita a consulta, por pessoas externas ao serviço médico, ao obrigar a população a circular com essa informação, o risco de perda de controlo derivado de usos não relacionados com o tratamento da saúde, é muito elevado. Neste sentido o Tribunal Superior de Justiça das Ilhas Canárias, suspendeu cautelarmente, a medida estabelecida pelo governo regional que obrigava a mostrar o certificado digital em restaurantes e bares, porque considera que os dados relativos a saúde são dados íntimos que não devem ser divulgados.
Seguindo este argumento, a criação do certificado Covid-19, com possibilidade de consulta por qualquer entidade, ao contrário da maioria dos registos médicos até agora, é um incentivo para os empregadores condicionarem o acesso a novas oportunidades laborais. O uso espúrio causa vulnerações do direito a igualdade no acesso ao emprego, e desafios logísticos nas medidas de prevenção (uso de máscara e distanciamento social) pela “falsa sensação” de segurança, aumentando assim os comportamentos de risco.
Inclusive a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou não desenvolver passaportes de saúde digitais desde os primeiros meses da pandemia, e o Comité de Emergência na sua reunião em 14, de Janeiro, fê-lo novamente. Insistiram em que os Estados não solicitem certificado de vacinação como requisito para viajantes que entram em um país, porque “o impacto das vacinas na redução da transmissão do vírus ainda é desconhecido e a disponibilidade de vacinas é muito limitada”.
Esses riscos também foram claramente observados em uma recomendação específica emitida no ano passado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em sua Resolução 4/20 sobre os “direitos humanos das pessoas com Covid-19”: “Os Estados devem abster-se de usar dados sobre o estado de saúde das pessoas com COVID-19 e emitir certidões de imunização que gerem diferença injustificada de tratamento no gozo e exercício de outros direitos ”.
Uma diferença de tratamento entre a cidadania é contrária ao direito internacional quando não tem uma justificação objectiva e razoável, ou seja, quando não procura uma finalidade legítima e não há uma relação razoável de proporcionalidade entre os meios utilizados e o fim perseguido. Um argumento sólido é que este certificado digital veio favorecer uma economia muito fragilizada numa tentativa de não descurar a saúde pública, sendo só uma forte tentativa, visto que não todos têm acesso a vacina e os não vacinados podem ser contagiados pelos mais privilegiados.
Tendo em conta, que vários países utilizam internamente o certificado, esta medida facilita outro dos objectivos fundamentais da UE, — a harmonização da legislação —, mesmo assim o facto de outros ordenamentos terem começado a utilizá-lo antes não faz desta medida, tal como está desenhada, algo correto. No entanto, é pertinente matizar, que por forma a cidadania ver-se beneficiada da liberdade de movimento pode cumprir três requisitos, não exige exclusivamente estar vacinado, podendo:
- ter superado a doença ou
- ter um teste negativo.
Estas opções possibilitam a dita liberdade, na mesma proporção, a outras pessoas não vacinadas.
Mesmo os constitucionalistas e profissionais do Direito que estão a favor da medida alertam para a necessidade de controlar o armazenamento da informação, sendo que devia ter sido criado uma aplicação exclusiva para o efeito, porque os sistemas informáticos (Android/IOS) são na génese vulneráveis para salvaguardar dados tão sensíveis, como os relacionados com a saúde.
Porém, da mesma forma que o acesso à vacina é gratuito, por forma a evitar discriminação das pessoas não vacinadas, os testes à Covid-19 também deverão ser, desta forma o acesso a determinados lugares ou deslocações será equitativo. A classe mais jovem, por ser a última na lista dos vacinados, ou as grávidas e outras pessoas com alergias graves, cujas circunstâncias os impeçam de recebê-las, poderiam sofrer um tratamento desigual, que poderia ser considerado desproporcional face às vantagens económicas que a activação do passaporte implica para além de, evitar deixar para trás os cidadãos com menos recursos, indocumentados e pessoas não familiarizadas com os meios digitais. Desta forma, os cidadãos da UE, gozam do direito fundamental à livre circulação e aplica-se independentemente de serem vacinados ou não. Se não houver abusos no tratamento da referida informação, não tem por que ser discriminatório, visto que o trato diferenciado não é discriminação, e os não vacinados continuam a beneficiar-se da livre circulação só que com outros requisitos diferentes à vacinação, mas igualmente gratuitos.
Mesmo os constitucionalistas e profissionais do Direito que estão a favor da medida alertam para a necessidade de controlar o armazenamento da informação, sendo que devia ter sido criado uma aplicação exclusiva para o efeito, porque os sistemas informáticos (Android/IOS) são na génese vulneráveis para salvaguardar dados tão sensíveis, como os relacionados com a saúde. Outra questão de particular importância, é o controlo de quem pode solicitar, ver ou controlar este certificado, para evitar assim a discriminação e a vulneração do direito à privacidade. Ainda que, o controlo do certificado de vacinação infantil já seja feito, por imposição legal e por segurança, por todas as creches e escolas, tem que haver um limite no acesso a este certificado para acautelar a privacidade da população. Por último, assiste-se à limitação (em tempo e quantidade de informação) do armazenamento e acesso aos dados pessoais relacionados com a Covid-19, ao fim que se procura, conter e reverter os efeitos da pandemia, pelo tempo estritamente necessário e desvinculados da identidade e outros aspectos íntimos, sendo que deverão ser suprimidos assim que o objectivo seja atingido.
Em síntese, o certificado digital pode ser uma medida pertinente para fazer cedências nas restrições à liberdade de mobilidade da cidadania, no entanto o seu actual desenho permite que pessoas alheias ao serviço médico, tenham informação estritamente confidencial, (como por exemplo se fomos ou não vacinados ou se passamos ou não o vírus), perpetrando situações desconfortáveis de exposição de dados pessoais desnecessários. Se a medida aplicada tivesse sido ligeiramente mais ponderada, deveria restringir as entidades que podem ou não aceder à informação para não criar situações de discriminação, e como resultado do scan do código QR presente no certificado só se deveria ver se cumpre algum dos requisitos ou nenhum. No caso concreto, se foi vacinado, já superou a doença ou fez um teste com resultado negativo, após o scan do código QR, sugeria-se ao legislador ter reflectido sobre a possibilidade de que a pessoa externa ao serviço de saúde só poderia ver, por exemplo, uma luz verde, e caso contrário, uma luz vermelha. Assim, como desde o início da pandemia a sociedade foi sujeita a medidas legais, em muitos casos realizadas de improviso, pela compreensível falta de acesso à informação fidedigna, em um contexto nunca visto antes, tão incerto, este instrumento foi mais um, neste caso sem justificação aparente.
O certificado digital é uma boa medida, no entanto, como o nosso ordenamento jurídico está constituído, entre outros, por um regulamento de protecção de dados tão estrito e garante da privacidade, obriga a rever o desenho e utilização do certificado. Deste modo, poderia evitar-se a vulneração injustificada de direitos fundamentais, limitando o controlo a determinadas autoridades/pessoas e expondo a informação estritamente necessária, sendo esta devidamente protegida em um suporte adequado para armazenar informação sensível.