“Depois de uma consulta convencional ao cão de uma camponesa de meia-idade, esta, no final, faz-me o pedido de a ajudar com um cordeiro recém-nascido que tinha em casa, filho de uma ovelha da sua pequena quinta. Expliquei-lhe que aquela não era a minha área e que podia ajudá-la no sentido de lhe fornecer contactos de colegas aptos a exercer clínica em animais de produção. Não se mostrou minimamente interessada em aceitar a minha sugestão e pediu-me que olhasse para o animal, porque achava que o assunto era simples e podia ser resolvido com a minha ajuda.
Sem compromisso aceitei e, no dia seguinte, para delícia de todos os presentes na sala de espera, a senhora compareceu com o pequeno cordeiro à consulta, aguardando pacientemente a sua vez, com ele no regaço, balindo baixinho no início e depois já com um volume considerável (…) Este era uma bolinha de pelo, enternecedora e macia.
Rapidamente se habituou às visitas diárias do cordeiro, que se sentia à vontade naquele ambiente
Quando o examinei, deparei-me com uma laceração profunda, bastante infetada, num dos membros posteriores (…) Decidi-me pela administração diária de antibiótico injetável (…) Rapidamente nos habituámos às visitas diárias do cordeiro, que se sentia cada vez mais à vontade naquele ambiente.
A ferida estava quase curada e já todos antecipávamos, com algum desconsolo, o momento em que deixaria de nos visitar. E esse dia chegou. Já estava bem e não fazia sentido continuar a frequentar a clínica. Explicámos à senhora que o Choné estava curado. Esta não nos poupou elogios, contente por o animal estar bem. Despede-se de todos com grande pompa e circunstância e deixa-nos, acompanhada do cordeiro (…) Tinham passado apenas alguns segundos, quando identificamos o regresso do Choné (o som dos cascos no piso de mosaico era já rotina da clínica e anunciava sempre a chegada do paciente), com a sua detentora na retaguarda. Esta entreabre a porta o suficiente para espreitar e perguntar, na nossa direção:
– Agora, quanto tempo é que tenho de esperar até a carne poder ser consumida? É que a Páscoa está a chegar e tinha pensado vendê-lo para o talho!”
Um grande “balde de água fria” para todos na clínica. Mas tudo está bem quando acaba bem. A proprietária do Choné retrocedeu na decisão, tornou-o animal de companhia e a clínica continuou a ter notícias das travessuras do carneiro.”
Esta é apenas uma das muitas histórias que a veterinária Célia Palma tem no seu repertório e que reuniu no livro Quando os Animais Vão ao Médico. “Ao longo de todos estes anos como veterinária, foram inúmeras as situações caricatas ou simplesmente divertidas que ocorreram durante a minha prática clínica. Estes episódios acabavam por ser relatados a colegas, estagiários, enfermeiros e auxiliares. Comentávamos, entre nós, que haveríamos, um dia, de escrever um livro que compilasse estes episódios. Secretamente decidi passar tudo para o papel e oferecer a todo o pessoal envolvido. Entretanto, surgiu a hipótese de editar em livro. Foi o meu marido que apresentou o projeto à editora e esta marcou de imediato reunião comigo para acertarmos pormenores. Aquilo que era só uma ideia simples de presentear amigos passou a livro…”
A história mais caricata
Das quase 240 páginas de histórias, Célia Palma selecionou a do gato Afonsinho como a mais caricata. Ocorreu com a sua colega Margarida.
“Margarida recebeu, em consulta, um conhecido seu. Estranhou que viesse sem o animal, apesar de ter esperado pacientemente pela sua vez. Este entra no consultório com um ar comprometido, fechando apressadamente a porta atrás de si. Explica que vem a acompanhar uma senhora de meia-idade, que traz à consulta o seu gatinho, já muito idoso. O assunto é delicado e carece de alguma diplomacia. Pelos vistos, o animal está morto há alguns dias, mas a proprietária recusa-se a acreditar e age como se ele estivesse, simplesmente, ligeiramente indisposto. Pede ajuda para trazer a senhora à realidade.
Uma colega teve de receitar vitaminas a um animal já morto porque a sua dona não aceitava os factos
Margarida faz o seu papel e chama o cliente e o seu gato Afonsinho para a consulta. Esta age normalmente, cumprimentando-a delicadamente, quando entra no consultório. Coloca a caixa transparente em cima da marquesa de consulta e retira o animal da caixa. Sem dúvida, não há nada na atitude da senhora que faça suspeitar de que algo de anormal se passa:
– Óh Doutora! O meu Afonsinho anda um pouco mais parado e a comer menos!
O animal estava já em decomposição e a emanar odores relacionados com a mesma.
– Óh Doutora! Receite-lhe umas vitaminas, que ele melhora logo!
Margarida estava verdadeiramente incrédula. No entanto, para ganhar tempo e pensar na melhor forma de resolver o assunto, auscultou o animal, verificou-lhe os reflexos silenciosa e cuidadosamente. No final concluiu:
– Dona Maria! Lamento ter de lhe dar esta infeliz notícia! O seu gatinho está morto. Um animal que não respira, o seu coração não bate, não se mexe, não come ou bebe, não faz xixi nem cocó, é um animal morto! Mais uma vez, lamento!
– Óh Doutora! Não vê que só de aqui ter vindo, ele já está muito melhor!!! Receite-lhe umas vitaminas!!!
– Dona Maria! Não há vitaminas para curar o seu Afonsinho. Ele já partiu há uns dias. A senhora tem de aceitar a realidade. É melhor o gatinho ficar cá para cremar.
– A doutora não está a ver a coisa bem. Quer ver? Vá lá Afonsinho, mexe-te para a doutora ver. Vê? Ele já mexeu a pata. E já está muito melhor! Só precisa de umas vitaminas.
Frustrada e vendo as suas advertências serem completamente ignoradas, Margarida lá mandou o Afonsinho e mais a dona Maria para casa, com as ditas vitaminas.
– Tá a ver doutora! Eu não lhe dizia. Já está muito melhor.
E boquiaberta, incapaz de reagir, ficou a ver a senhora sair, dirigindo-se ao balcão da receção, para pagamento da consulta. Tudo com muita naturalidade. Quando conseguiu acordar do torpor que tomou conta da sua pessoa, ganhou coragem para alertar as entidades oficiais.”
No início da carreira, um cliente pediu-lhe uma indemnização pela morte do gato, que mais tarde viu à janela de casa…
A história mais marcante
Entre histórias cómicas, tristes ou, simplesmente, surreais. Aquela que intitulou de “mentir para lucrar” foi a que mais marcou a veterinária. “Relata o caso do gato que foi por mim castrado (ainda no início da minha carreira), cujo dono me abordou posteriormente, em tom acusatório, garantindo a morte do animal na sequência da intervenção. Exigia o dinheiro de volta. Vi, pouco depois, o animal confortavelmente instalado na janela da casa do proprietário, a observar os pombos, exibindo perfeita saúde”. Desta história, retira o que há de positivo mesmo em situações graves e absurdas: “Serviu para o meu crescimento e amadurecimento pessoal, não só como profissional, mas também como pessoa adulta. Penso que me tornei um pouco imune à imprevisível natureza humana e já pouco me espanta ou afeta nas atitudes das pessoas”.
Não está previsto para já outro livro, mas “sim, já há material para mais. Como por exemplo o caso do proprietário consternado que, não queria que o seu cão ficasse em estado ‘vegetariano’, após um acidente grave”, revela Célia Palma. De falta de ação, não se queixa este consultório…