É noite de segunda-feira. No Clube Ferroviário, em Santa Apolónia, os alunos vão chegando à sala com janelas abertas para o Tejo. Mudam de sapatos e começa mais uma aula de tango. Ao som de Donato, di Sarli, Canaro e das orquestras de outros grandes maestros, vão-se trocando os pares, praticando passos e aquecendo os movimentos. Segue-se o ensino da técnica do tango. Graciana mostra como fazer ocho atras, seguido de boleo. Os movimentos são explicados e decompostos na sua menor fracção para que os alunos percebam a forma correta de abraçar, como manter o equilíbrio no seu eixo ou dissociar as pernas do tronco.
Há oito anos que os professores argentinos Graciana Romeo e Juan Capriotti assumiram a propriedade e a gestão da escola Lisboa em Tango, que descrevem como “um espaço para a exploração, prática e aprendizagem da dança de tango argentino”. No ensino da “dança do abraço”, mais do que a coreografia, privilegiam as ferramentas da linguagem do tango que possam ser aplicadas no baile social (milonga), mediante a improvisação sugerida pela música.
Graciana é argentina e bailarina com formação clássica pela Escuela Nacional de Danzas, de Rosario. Fazia parte da companhia de dança Ensamble de Ballet, em Rosário, quando descobriu o tango. “Íamos fazer uma peça de dança com música de Piazzola e, para apanhar melhor o estilo e a essência dessa dança, decidi fazer aulas de tango tradicional. Enquanto a dança clássica, que é um trabalho solitário, muito duro e rigoroso, o tango é descontraído, trabalha-se com um par. Fiquei maluca. Comecei a ir às milongas (bailes de tango), tornei-me milongueira”, conta. Rapidamente estava a dançar e a fazer espetáculos destes dois estilos em paralelo.
Participaram no V Festival Buenos Aires Tango e foram finalistas do primeiro Mundial de Tango.
Integrou a Escuela de Perfeccionamiento do Teatro Colón, em Buenos Aires. Com 19 anos, ganhou uma bolsa para prosseguir os estudos de ballet no Santa Mónica College, na Califórnia, nos Estados Unidos, e levou consigo algumas coreografias de tango, pois sabia que essa dança era um bom recurso para ter sempre trabalho. Dali foi para Barcelona, convidada pela maestra Victoria Colosio para trabalhar com o método Propedêutico de Tango-Danza.
Tinha 22 anos quando regressou à Argentina, cansada do trabalho exigente e decidida a parar de dançar e a recomeçar os estudos universitários em Ciências da Educação. Foi nessa altura que começou a namorar com Juan, um advogado que a convenceu a dançar tango. Na viragem do milénio, estudaram com os últimos milongueiros de Rosário. Pouco tempo depois estavam a fazer espetáculos e em 2003 participaram no V Festival Buenos Aires Tango e foram finalistas do primeiro Mundial de Tango.
Com a crise económica e o corralito, o par decidiu deixar a Argentina.
Com o corralito (termo por que ficaram conhecidas as medidas económicas do ministro argentino da Economia Domingo Cavallo, que determinaram o congelamento das contas bancárias), no final de 2001, decidiram partir. “Éramos muito novos e o país parecia que ia explodir. Roubaram-me cinco bicicletas consecutivamente”, conta Graciana. “Como se diz na Argentina, viemos com uma mão à frente e outra atrás.” O irmão de Juan, professor em Barcelona, contava coloca-los num workshop na Universidade, conheciam um escritor em Granada que organizava um festival e que os contratou, e numa milonga em Rosário, na véspera de partirem, encontraram Guillermo que lhes pediu para tomarem conta do clube que dirigia em Lisboa.
Chegaram à capital portuguesa, de camioneta, vindos de Alicante, pensando ficar 15 a 20 dias. Mas acabaram por ficar três meses porque havia poucos eventos de tango e, por isso, a procura era muita. Voltaram numa segunda tournée europeia que, mais uma vez, culminou com uma estada de três meses em Portugal. Até que, quando Guillermo decidiu sair de Portugal, em 2005, o par comprou a empresa “por um preço simbólico que fomos pagando aos poucos”. “Passámos a fazer as tournées a partir daqui porque desta forma quem nos contratava não tinha de pagar a viagem desde a Argentina.” Correram a Europa toda dando workshops e fazendo exibições em festivais de tango.
Comida, fado e amigos
O que mais gosta em Portugal? O André, claro: conheci o português mais fixe de todos. O que mais gosto é serem fiéis, quando consegues entrar no coração de um português é para a vida toda. Mal cheguei apaixonei-me por Lisboa, que é uma cidade única. Aliás, gosto imenso de Portugal. Venho de um país gigante, em que andas, andas, andas e estás sempre no mesmo sítio, e vim para um país em que todos os fins-de-semana posso ir a um sítio diferente.
O que menos gosta em Portugal? A formalidade: “Senhor Dr., com licença, desculpe, obrigada…”
O que é melhor em Portugal do que em qualquer lugar do mundo? A comida. O fado.
Adorámos a cidade, esta coisa da saudade e do fado… começámos logo a dançar fado e a investigar o fado”, rememora Graciana. Viram que nas milongas em Portugal era costume os pares dançarem fado e o par foi pioneiro ao levar essa combinação para o palco. No primeiro show que fizeram em Portugal dançaram “Estranha forma de vida” cantado à capela por uma argentina que estava em tournée em Portugal. Atuaram de novo no Festival Internacional de Tango de Lisboa e foi um êxito. “Naquela altura estava muito na moda o tango nuevo, dançar tango com outras músicas, o tango electrónico. Como o fado é lindíssimo as pessoas adoravam.” Muitos estrangeiros que assistiram contrataram-nos para exibições no seu país, com um pedido explícito: que dançassem fado.
Graciana e Juan foram pioneiros ao dançar tango ao som de fado em exibições.
“O tango estava a explodir na Europa. Viajávamos quase todos os fins de semana. À conta de ir dançar conheci imensos sítios, imensas pessoas, e finalmente aprendi a falar inglês. Mas depois começou a ser um bocado cansativo”, conta. Começaram a ser mais seletivos: podiam recusar viagens a locais que já tinham ido muitas vezes ou quando o cachet não era atrativo. “Entretanto separei-me do Juan. Eu tinha o meu namorado cá e quando comecei a ter filhos, nem pensar em viajar. Pode ser atrativo e estimulante profissionalmente. Mas eu também consigo encontrar aqui, ao pé da minha família, coisas que me estimulem.”
Gerir uma escola de dança é um trabalho desafiante. “Não basta abrir as portas à espera que os alunos venham. É preciso inventar trabalho, estar sempre a puxar pela cabeça para criar eventos. Temos de estar atentos ao que resulta nas aulas para, sem sair do nosso interesse que é ensinar de forma muito profissional, conquistar o interesse das pessoas, gerir os seus estímulos para que se sintam motivadas e continuem a dançar. É um trabalho que requer muita sensibilidade. Não se pode entrar em piloto automático.” Além das aulas, workshops, milongas (bailes de tango) e exibições, a escola Lisboa em Tango (LE Tango) organiza desde 2008 o Portugal em Tango, um encontro de três dias que junta as diferentes vertentes e promove o intercâmbio de professores, e o Tempo em Tango, dedicado à música do tango.
Para Graciana Romeo, a vida é como o tango, uma improvisação criativa. “O futuro nunca foi algo em que pensasse muito. Tenho a certeza que quando tiver 60 anos e já não puder dançar o universo vai por outra coisa à minha frente. Tudo o que construímos no presente vai criando futuro.” “Se va la vida..”, o tango de Edgardo Donato, já toca no Clube Ferroviário.
Os papéis do tango
O tango argentino é uma dança de improviso, em que o homem conduz, sugerindo movimentos à mulher. Sinal dos tempos, cada vez mais se prefere falar em papéis, de leader e de follower, em que as mulheres podem também liderar. É cada vez mais comum ver mulheres a dançar com mulheres. Mais raro em Portugal é ver-se pares masculinos, mas na sua origem, no século XIX, o tango era exclusivamente dançado por homens, pois era considerada uma dança imprópria para senhoras. O tango nasceu nos arredores de Buenos Aires, no final do século XIX, mas foi através de Paris, na primeira década do século XX, que popularizou em todo o mundo e se tornou uma dança que beneficia de toda a sensualidade feminina. Veja a milonga “Reliquias Porteñas” dançada por Enrique e Guillermo de Fazio, e como os dois irmãos vão alternado os papéis de líder e de follower.