Como será o futuro do trabalho? Luís Cabral responde

O economista e professor da NYU Stern esteve na AESE Business School para falar do impacto que a inteligência artificial terá nos postos de trabalho e na economia mundial, num futuro próximo. Luís Cabral falou ainda à Executiva sobre profissões em extinção, o regresso dos monopólios e sobre um setor que poderá ser a solução para Portugal.

Luís Cabral é professor de Economia e Negócios Internacionais na NYU Stern e na AESE. Foto: cortesia AESE Business School.

A introdução da inteligência artificial no mundo do trabalho já transcendeu o domínio da ficção científica. Os sistemas de inteligência artificial já ocupam funções em vários setores, não estão a substituir apenas trabalho não qualificado, e a tendência é para que a sua presença se alargue, segundo Luís Cabral, professor que ocupa a cátedra Paganelli-Bull de Economia e Negócios Internacionais na NYU Stern (EUA) e professor da AESE Business School. O académico português, já considerado o melhor investigador nacional em microeconomia, é ainda research fellow do Center do Economic Policy Research, com passagens anteriores pela Universidade Nova, London Business School, e por períodos curtos, em Yale, Berkeley e IESE. Ontem, dia 15, falou sobre o futuro do trabalho durante o evento “People & Management”, organizado pela AESE.

Assistentes virtuais e táxis sem condutor

Muito se evoluiu em Inteligência Artificial (I.A.) desde que o supercomputador Deep Blue, da IBM, ganhou ao campeão mundial de xadrez, Garry Kasparov, em 1997. Hoje, o negócio dos gigantes da tecnologia e do entretenimento assenta nela e na melhoria dos seus algoritmos de pesquisa e previsão, alimentados com quantidades cada vez mais massivas de dados — o big data, gerado pelos seus consumidores e utilizadores. Basta pensarmos em exemplos quotidianos, como as sugestões da Netflix com base nas nossas visualizações e preferências do passado, lembra o economista. A Amazon e outras empresas com aposta forte no e-commerce estão, aliás, usar a I.A. para melhorar o grau de previsão das nossas compras e poderem vir a estabelecer estratégias ship-then-shop. A mecânica é simples: mandam-nos para casa produtos que não encomendámos, baseados nas nossas compras e preferências anteriores, com um grau de precisão elevado — se gostarmos, pagamos depois.

Mas também já há programas de IA a substituir o trabalho feito por humanos. Entre 2015 e 2016, a universidade norte-americana Georgia Tech recorreu a uma assistente de ensino de nome Jill Watson para responder às milhares de perguntas mais frequentemente colocadas pelos alunos do seu curso online de Inteligência Artificial. Em apenas alguns meses, os 350 alunos do curso tinham publicado 10 mil mensagens no respetivo fórum de discussão online, algo que levaria cerca de um ano a responder por um professor assistente a trabalhar a tempo inteiro, segundo o professor e coordenador do curso, Ashok Goel. Na verdade, Jill era uma versão do programa de I.A. Watson, desenvolvido pela IBM e que até já bateu campeões mundiais de Jeopardy — os alunos só o souberam no final do programa experimental — e passou mesmo a ser a nona assistente “contratada” pelo departamento de ciências da computação da Georgia Tech, deixando os outros professores assistentes libertos para tratar das questões mais complexas dos alunos.

Mas há mais exemplos. Em Pittsburgh, EUA, já existem táxis sem condutor, diz Luís Cabral. Em gestão de recursos humanos, já foram testados e aplicados vários programas que procuram o candidato certo para uma vaga. “Será uma ajuda ou o despedimento do gestor de recursos humanos?”, foi a reflexão que Luís Cabral lançou à assistência.

Substituto ou complemento do emprego?

A questão que tem desassossegado economistas e profissionais de recursos humanos em todo o mundo é, precisamente, a do impacto que a inteligência artificial terá no emprego. Enfrentaremos um cenário pré-apocalíptico em que milhões de pessoas ficarão sem trabalho e sem perspectivas de rendimento?

“Muitas empresas de advocacia americanas estão já a utilizar sistemas de I.A. para fazer pesquisa de precedentes legais. Fazem em 5 minutos o trabalho que quatro advogados juniores fazem em seis meses de trabalho a tempo inteiro.” Luís Cabral, economista e professor na NYU Stern e da AESE

Para Luís Cabral, não será exatamente assim. “Historicamente, as revoluções tecnológicas destruíram milhões de empregos, mas não criaram desemprego. Pode parecer uma contradição, mas não é porque também criaram outros postos de trabalho. Claro que houve enormes custos de ajustamento, pessoas que ficaram sem emprego e tiveram uma enorme dificuldade em adaptar-se à nova realidade. Mas é importante saber distinguir entre destruição de postos de trabalho e desemprego. Os condutores de autocarros escolares nos EUA, por exemplo, estarão sem emprego dentro de 10 anos, no máximo. Mas continuará a ser precisa pelo menos uma pessoa dentro do autocarro para tomar conta das crianças. Haverá, claramente, novos postos de trabalho.”

Para o economista, existirão casos em que a inteligência artificial substituirá facilmente um posto de trabalho — e não apenas em força braçal e trabalho não qualificado; o mesmo se passará com algumas funções qualificadas — e outras em que funcionará como um complemento. “Muitas empresas de advocacia americanas estão já a utilizar sistemas de I.A. como o Watson para fazer pesquisa de precedentes legais. O Watson faz em 5 minutos o trabalho que quatro advogados juniores fazem em seis meses de trabalho a tempo inteiro. Claro que não vai depois a tribunal falar com o juiz… Na medicina funcionará como um complemento, porque não substituiu um médico. Mas já está a ajudar no diagnóstico, tornando o trabalho do médico extraordinariamente mais produtivo do que quando tinha que utilizar apenas a sua memória.” Nos Estados Unidos, no setor da saúde já se testam sistemas de IA capazes de prever um ataque cardíaco com uma antecedência de 5 minutos, precisando apenas de estar ligados aos sinais vitais do paciente.

Consequências da revolução da inteligência artificial

O século XXI será diferente no que respeita à forma como trabalhamos. O horário de trabalho tenderá a ser mais reduzido para maior parte das profissões, segundo Luís Cabral. Com mais tempo livre em mãos, assistiremos também a um aumento do voluntariado.

Vamos trabalhar mais a partir de casa, em parte devido ao aumento do fenómeno da gig economy, ou desintermediação do mercado de trabalho, com mais profissionais a trabalharem remotamente e à tarefa, mas também porque o modelo de empresa enquanto espaço físico onde vamos todos os dias — “que é relativamente novo e que se massificou a partir do século XIX, com a revolução industrial”, como lembra o professor — tenderá a reduzir-se.

“A promessa da tecnologia é extraordinária, há nela ganhos potenciais enormes, mas teremos problemas enormes de ajustamento. Estou convencido que a economia do século XXI tem dentro de si as sementes da desigualdade.” Luís Cabral

Importa, por isso, distinguir entre trabalho e emprego, acrescenta. “As pessoas sempre trabalharão porque faz parte da natureza humana, mas não é evidente que tenham um emprego estável, à semelhança do que aconteceu nos últimos 200 anos. Até sabermos fazer esta distinção, teremos um problema social enorme. A promessa da tecnologia é extraordinária, há ganhos potenciais enormes, mas teremos também enormes problemas de ajustamento. Estou convencido que a economia do século XXI tem dentro de si as sementes da desigualdade. Não tenho a resposta para saber como o vamos solucionar, mas penso que irá exigir um novo modelo de solidariedade social. É importante garantir o direito ao trabalho e ao rendimento, mas teremos que reinterpretar o sentido destas expressões porque elas não implicam o direito ao emprego estável.”

 

No final da sessão, a Executiva teve oportunidade de conversar com Luís Cabral a propósito do tema.

Diz que não são apenas trabalhos não qualificados que vão desaparecer com a revolução da inteligência artificial e que o mesmo acontecerá com muitos trabalhos qualificados. Em que profissões ou funções se prevê que isso venha a acontecer?
Alguns casos já são exemplos do presente. Todos os sistemas de atendimento, por exemplo, de bancos ou outros serviços — primeiro o outsourcing desses serviços foi deslocado para call centers que países como a Índia ou as Filipinas, mas tenderão a ser substituídos por sistemas de inteligência artificial com linguagem natural. Neste momento, já é muito comum termos sistemas em que, apesar de ainda não terem voz humana, já têm chats em que as respostas são escritas e que utilizam I.A., mas as estou convencido que, num futuro próximo, serão substituídos pela forma de linguagem natural. Em alguns casos, algum deste atendimento é mais qualificado, dependendo da natureza do produto ou serviço em questão.

Na consultoria isso já se nota. A McKinsey já utiliza motores de pesquisa de I.A. para descobrir empresas que sejam um bom match para aquisição. A análise textual é importante, por exemplo, para ver quais as empresas que têm uma cultura empresarial mais semelhante à minha. A cultura não é totalmente quantificável, mas já se pode fazê-lo, em grande parte — utilizam expressões semelhantes, têm uma visão semelhante.

A área mais óbvia, para já, é a dos veículos sem condutor. Já existe em Pittsburgh, nos Estados Unidos, para táxis, mas gradualmente será introduzida nos automóveis de passageiros e, com impacto talvez ainda maior, em camiões de longa distância, onde já se fazem experiências. O impacto a jusante implicaria um abaixamento drástico do tempo e do custo do transporte terrestre, quando deixarmos de ter pessoas que só podem conduzir 8 horas e que têm que dormir e parar pelo caminho. São só alguns exemplos, mas existirão mais. Têm-se feito muitos estudos sobre este tema e, quando olhamos para as conclusões, vemos que não tem a ver com o grau de qualificação desses trabalhos.

Um dos temas de que já se fala, no que toca à aplicação da inteligência artificial ao recrutamento, é o enviesamento na escolha de candidatos, que já aconteceu em sistemas em teste. Teremos um longo caminho a percorrer ainda neste sentido?
No sentido em que a inteligência artificial tem um certo paralelo com a aprendizagem humana, processando dados do passado e utilizando-os para fazer previsões no futuro, os enviesamentos que frequentemente encontramos na aprendizagem humana poderão também estar presentes nela. Concretamente, o preconceito e discriminação que encontramos nas pessoas podem ter muito a ver com a forma ou sequência que a aprendizagem teve. Se, no passado, eu só tiver empregue homens para uma determinada tarefa, apenas tenho informações sobre eles e não sobre a prestação de mulheres. Com os seres humanos, tentamos corrigir estes fenómenos com medidas legais e legislativas, com campanhas de sensibilização. Quando falamos em aprendizagem supervisionada em inteligência artificial, uma parte importante desta tarefa é a monitorização e classificação das características do sistema com base no que fez até agora, para que possa ser corrigido. Sendo que estes sistemas têm a vantagem de não terem emoções e de corrigirem imediatamente esses enviesamentos.

Uma vez que são gigantes como a Google que dispõem do chamado big data que alimenta os programas de inteligência artificial, isso significa que teremos um tecido empresarial ainda mais concentrado em megaempresas?
De facto, o século XXI representa um ressurgimento do problema do chamado monopólio natural, a que assistimos no século XX por diferentes razões. Nessa altura, eram principalmente empresas de produtos e serviços, em que o monopólio natural tinha a ver com grandes investimentos feitos em custos fixos — como uma central nuclear, a criação de uma rede de telecomunicações ou de distribuição de água. Nessas situações não se justificava a existência do que mais do que um operador porque isso implicaria, muito provavelmente, a duplicação dos custos fixos. O século XXI gera um novo conceito, que tem a ver com o big data — ou bigger data, como costumo dizer, porque o que hoje é grande será pequeno amanhã. O monopólio verifica-se porque a qualidade dos algoritmos de I.A. melhora-se com o input de dados. Isso leva a um ciclo em que a empresa que tem o algoritmo mais eficiente consegue atrair mais consumidores; com base nisso, consegue gerar mais dados, que vão melhorar o grau de precisão do seu sistema de IA. Isso gera um efeito de bola de neve em que as empresas grandes serão ainda maiores. É muito difícil criar um novo Google e um novo mecanismo de pesquisa que consiga ultrapassar ou igualar o da Google, não porque tenham necessariamente os melhores engenheiros a trabalhar nela, mas porque é o fluxo de dados de informação (as pesquisas que fazemos todos os dias) que tornam o seu algoritmo cada vez mais preciso e apetecível para os utilizadores.

Notamos também que a riqueza, no mundo empresarial, está concentrada num número menor de empresas. Observamos isso no topo das empresas dos Estados Unidos, por valor de mercado, que está completamente dominado por empresas com base em plataformas digitais. O valor da Apple e da Amazon ultrapassou os mil milhões de dólares, patamares que seriam impensáveis há 10 anos.

O pequeno negócio terá ainda mais dificuldades de vingar face a esse tipo de competição?
Depende muito do tipo de negócio. O facto de existirem estes grandes gigantes não significa que não venham a existir novas atividades humanas com uma escala mais humana e menos virada para este ciclo vicioso com efeito de bola de neve. Acho que Portugal tem um futuro enorme no campo da vivência assistida, por exemplo. Temos todas as condições para sermos um país de residência de idosos da Europa, pelo clima e a proximidade geográfica. Essa é uma indústria que se baseia no trato humano, em empresas de dimensão mais pequena.

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