Depois de uma década como advogada, Cláudia Louzada fez o curso de despachante oficial e não tardou a chegar à direção executiva da organização que os representa. Abraçou o cargo como uma missão, a de ajudar estes profissionais a adaptarem-se aos tempos modernos. Lidera uma classe historicamente dominada pelo sexo masculino – em 275 inscritos, apenas 3% são mulheres -, mas que hoje considera já ser compatível com a rotina de qualquer mulher, mesmo com a sua que inclui um filho de seis anos.
A inclinação para dirimir conflitos e defender argumentações foi um ponto de partida para escolher Direito
Porque escolheu Direito?
Foi um pouco por acaso. Embora tenha pessoas próximas na família que trabalham nessa área, a verdade é que a minha inclinação para dirimir conflitos e defender argumentações, foi um ponto de partida, desde logo reconhecido pelos meus pais. Escolhi a menção Jurídico-políticas, que aborda com maior rigor e especialidade ramos do Direito Público, que no fundo era (é) o que mais me fascinava. Sentir que na presença de um conflito entre um elefante (Estado, “lato senso”) e uma formiga (particular), esta última consegue derrotar com grande dignidade e coragem, o que parecia impossível! É quase uma missão para mim.
O que a levou a entrar num feudo masculino como a atividade de despachante?
A atividade de despachante oficial tem sido, historicamente, desempenhada por homens, por motivos relacionados com as suas características essencialmente físicas. As mulheres não dispunham de robustez e sobretudo disponibilidade, para conciliar a vida familiar com os horários mais exigentes da atividade. Em particular no que respeita aos horários das cargas e descargas de mercadorias nos cais e terminais de transporte e todas as movimentações acessórias.
Atualmente, as funções de um despachante oficial passam essencialmente pela análise de toda a documentação relacionada com a operação comercial em si mesma, desde a sua viabilidade e operacionalidade à escala mundial, bem como de todo os procedimentos legais, internos, comunitários e internacionais, que devem ser observados para que o negócio seja concretizado dentro das melhores condições. Hoje, esse desafio constante é conciliável com as rotinas e exigências de uma mulher. Particularmente, vivo inserida numa família com uma criança pequena, e nesse âmbito procuro conciliar todas as responsabilidades que aceitei na minha vida, com o mesmo empenho.
Mergulhei nesta área para saber os procedimentos necessários para realizar um negócio internacional e com sucesso!
Que competências reunia para abraçar este desafio?
A minha formação académica consiste numa licenciatura em Direito e no aproveitamento no curso de acesso à actividade de despachante oficial, a par de outras especializações na área da atividade física. Devo referir que não foi em contexto académico que me encantei pela área. Isto porque o ramo do Direito Aduaneiro não é objeto de estudo na licenciatura e daí que nunca me tivesse cruzado com essas matérias. Foi precisamente por me considerar uma pessoa inquieta e sobretudo que não gosta de ter conhecimentos vagos e generalizados, que mergulhei na descoberta desta área, procurando saber em rigor todos os procedimentos necessários para realizar um negócio internacional – e com sucesso!
Qual a sua missão neste cargo?
Descobri que esta atividade consiste num olhar mais profundo sobre a interligação comum que povos, nações e culturas partilham, com base num indicador comum: economia. A visão de um mundo sem fronteiras é um sonho que aspira a realidade. Nesse aspeto, permito-me partilhar um texto que usei durante muito tempo, estampado numa t-shirt, da autoria de um sacerdote que muito admiro e estimo, o Padre Tolentino Mendonça: “As tuas férias são em Marrocos, Canárias, ou Espanha; a tua música é inglesa; o teu carro japonês … então não trates o teu próximo como a um estranho!”. Passados mais de 20 anos, verifico que este texto é o retrato da realidade.
A minha missão é de transformação. A CDO atravessa hoje uma missão de renovação institucional determinante para o futuro da atividade. Essa transformação deverá ser entendida com plena noção dos desafios que o futuro e as novas gerações podem conceder. A esse nível é indispensável uma visão atualizada quer das pessoas, quer das entidades que representam. Penso seriamente que esse é o meu papel no contexto em que estou inserida. Tudo na vida é uma questão de perspetiva e de facto aquela que eu trouxe à instituição pode servir de mote para uma renovação do paradigma institucional existente.
O despachante é responsável “in extremis” pela evolução do PIB e das receitas fiscais
Com a União Europeia qual é hoje o principal papel dos despachantes?
O projeto europeu limitou a actividade, nos moldes do que havia sido no passado até 1 de Janeiro de 1993. Porém, a capacidade de adaptação às novas exigências legais, procedimentais e de circunstância, foi sabiamente ultrapassada pelos despachantes oficiais que, genericamente optaram por uma de duas vias: a especialização em determinado regime aduaneiro e a diversidade de serviços que prestam maior rigor técnico.
O principal papel desempenhado pelos nossos associados prende-se com a atenção redobrada nos diversos procedimentos legais e fiscais que devem observar quando movimentam mercadorias, dentro do espaço europeu e para o exterior, uma vez que a multiplicação de acordos e convenções internacionais é tal, que obriga a uma revisão muito apurada do quadro de comércio que o seu cliente pretende implementar. O despachante oficial é um consultor indispensável pela concretização das linhas de comércio, e nesse âmbito, responsável pela evolução das suas ligações e in extremis pela evolução do PIB e das receitas fiscais.
São uma profissão em vias de extinção?
Com a constituição cada vez mais alargada de acordos e associações de comércio livre entre países e regiões, o papel das fronteiras está a diluir-se. No entanto, não acredito que extinga por completo. Pode mesmo redescobrir-se um papel ainda mais controlador da qualidade e características de diversas mercadorias, no sentido de proteger a utilização indevida de, por exemplo, direitos de autor, natureza de componentes e materiais, segurança interna, biológica entre muitas outras.
E quanto a si, quais os principais desafios que tem enfrentado desde que assumiu a direção executiva da CDO?
Diariamente faço a ponte entre as exigências do cumprimento institucional dos serviços que coordeno, e o conselho directivo que dirige os caminhos da classe com plena dedicação e competência, cujas qualidades pretendo absorver de modo a honrar os interesses dos associados que represento.
A diferença entre homem e mulher não é um inimigo, pelo contrário, pode e deve ser encarada como uma potencialidade
Teve dificuldades em impôr-se num mundo de homens?
O mundo é dos homens, criado por eles e para eles. As mulheres sempre tiveram um papel acessório, embora complementar. No entanto, esse paradigma está a dissipar-se porque “eles” assim o permitem. A equiparação de funções e capacidades está a diluir-se, desde logo porque eles devem ter considerado também um desafio acolher as funções de pai presente que muda fraldas e lava a roupa, e sobretudo porque as mulheres quanto a determinação em prol da igualdade são ímpares!
Não acredito muito na “forçada” necessidade de igualdade entre sexos. Somos diferentes e ainda bem! Se um homem desempenha as mesmas funções de direção executiva que uma mulher, não pode ser previsível que o façam de igual modo. Cada um tem uma visão e condições pessoais distintas que, num certo momento, corroboram melhor as necessidades das instituições que representam. No entanto, não podemos dizer que um é melhor do que o outro. A diferença não é um inimigo, pelo contrário, pode e deve ser encarada como uma potencialidade.
O que seria preciso para atrair mais mulheres para esta profissão?
Sou daquelas mulheres que não se sente tentada a competir com os homens, apenas porque sou insegura e tenho de provar algo. O paradigma das profissões típicas de mulheres e de homens é hoje praticamente inexistente. Entendo que as actividades profissionais estão diretamente relacionadas com os traços de cada pessoa e, dessa forma, a pergunta deve ser inversa. Ou melhor, devemos procurar saber por que motivo a actividade de despachante oficial não tem atraído as mulheres? Na minha opinião, sinceramente, há mais um motivo que podemos analisar: o facto dos homens não estarem muito disponíveis para partilhar as suas funções com mulheres. It’s all about power.
Só consigo descansar quando domino um assunto
Qual a parte de que mais gosta no seu trabalho?
A parte mais interessante é a pluridisciplinaridade. Sentir que diariamente não existe uma rotina que conforta e prediz o que se passará no dia seguinte. Tal como na vida, temos de estar sempre preparados para aceitar os imprevistos e reagir com propriedade.
E qual a que considera mais difícil? Porquê?
A falta de conhecimento numa determinada matéria, que rapidamente devo investigar, analisar e concluir qual a melhor reação perante o imprevisto. Só consigo descansar quando domino o assunto.
Este foi até agora o maior desafio da sua carreira?
Efetivamente este é o desafio que melhor utiliza as minhas características e traços de personalidade. Apesar de ser advogada há mais de 10 anos, a advocacia não dispõe da amplitude que necessito para usar as minhas capacidades plenas e integradas, como atualmente são requisitos das minhas funções.
FORA DE HORAS
O tempo livre de Cláudia é partilhado entre o ballet clássico, que a apaixona desde os 4 anos, a inspiração que procura nos passeios na serra da Arrábida e o apoio que dá à Casa do Gaiato. É com orgulho que se refere a Ivanuel Tavares, que incentivou a concluir o curso de dança na Academia de Dança Contemporânea de Setúbal com distinção, ajudando-o a contrariar os preconceitos de outros rapazes da Casa. “A felicidade que a vida nos dá, só faz sentido quando partilhada”, diz Cláudia que também é mãe de um menino de 6 anos.