A sociedade no Paleolítico estava estruturada em relações de reciprocidade e de aliança entre os vivos e o mundo do além. Quando surgem as divindades com aspeto humano, surge a ideia de hierarquização, que transforma as ligações de proximidade e de partilha direta em relações de subordinação. Em cima, encontram-se os deuses, transcendentes e omnipotentes; em baixo, os homens que a eles recorrem.
A dimensão sagrada no universo humano tem a sua demonstração nos grandes palácios reais, nas “casas de morada dos deuses”, em santuários monumentais, enfim numa arquitetura de grande magnificência em que colunas, estátuas e obeliscos representam a superioridade dos deuses e a sede do homem em se aproximar do céu. É o luxo personificado em pedra, não para contemplar mas para servir de acesso ao além, à vida eterna.
Com o aparecimento da sociedade de classes, o luxo passou a ser o traço distintivo entre os ricos e os pobres.
Refere Gilles Lipovetsky, em O luxo eterno, que “ a uma escala de longa duração, não há qualquer dúvida que o aparecimento do Estado e das sociedades divididas em classes constitui apenas uma das ruturas maiores da história do luxo”. E acrescenta (citado por Renata Fernandes Galhanone, em Mercado do Luxo – Aspectos de Marketing): “Foi com o surgimento do conceito de Estado, 4000 anos a.C. que surgiu a separação social entre ricos e pobres. Nesse novo momento histórico, o luxo tornou-se um elo entre os vivos e os mortos. Do mesmo modo, o luxo tornou-se uma maneira de traduzir a soberania dos reis. O luxo passou a ser o traço distintivo do modo de viver, de se alimentar e até de morrer, entre os ricos e pobres. Assim, fixou-se a ideia de que os soberanos se deveriam cercar de coisas belas para mostrar a sua superioridade, o que gerou a obrigação social de se distinguir por meio das coisas raras. Na escala dos milénios, se sempre houve algo que jamais foi supérfluo foi o luxo totalmente imbuído da função de traduzir a hierarquia social, tanto no aspecto humano quanto ao mágico“.
O luxo como forma de se diferenciar
A partir da antiguidade clássica (séculos VI e IV a.C.) o homem pretendeu sobressair do seu semelhante, através da ostentação de objetos belos e luxuosos. Não obstante, tal como nos primórdios, o apelo ao sobrenatural permanecia. O luxo como dádiva foi mantido na sociedade por longos milénios, nomeadamente, na Roma Antiga e durante o período feudal, como nota o filósofo Gilles Lipovetsky.
No Antigo Egipto, (3200-32 a.C.) ostentar, peças de ouro, prata e lápis lazúli, ainda que só após a morte, era reservado exclusivamente às elites políticas: faraós e sacerdotes. Esta prática prolongou-se por todo o período da dinastia egípcia, a mais antiga da história da humanidade.
Na época das pirâmides (3000 a.C.), a classe dirigente era detentora das maiores riquezas em jóias, mobiliário e esplendorosas moradias. O faraó era um deus na terra, um deus criador e magnânimo que dava beleza e deslumbramento ao mundo, para deleite do seu povo. Criava imagens festivas, que se traduziam nas cores exuberantes e luminosas dos baixos-relevos dos templos. Uma das suas mais altas missões era a de construir câmaras funerárias de enorme sumptuosidade, para que a sua eternidade fosse assegurada no além. E cada um que lhe sucedia queria sempre acrescentar algo ao que o antecessor já fizera, originando, assim uma espiral de beleza e magnificência crescentes.
Como nota Lipovetsky, os textos egípcios revelam a existência de deuses grandes e de deuses menores, “os primeiros instalados num trono e tendo nas suas mãos os atributos da vida e do poder.” A partir do III milénio, surge o título de rei dos deuses. Um deus supremo acima dos outros. O grande senhor e mestre que, do alto e a par dos reis, intervinha no mundo. Semelhantemente à ordem política, a multidão de deuses encontra-se hierarquizada. Para além de servir o monarca, os indivíduos tinham o dever de servir os deuses, oferecendo-lhes comida, bebida e um fausto que não desmerecesse da sua dignidade. O fausto dos reis aqui na terra é o modelo transplantado para o culto dos deuses.
Cleópatra, a rainha do luxo
A mítica Cleópatra (69-30 a.C.) culta, bela, inteligente e astuta, ainda hoje é recordada, além das qualidades referidas e do papel que teve na História, pelo luxo da corte em que viveu e pela sua vaidade pessoal. Dominava seis idiomas, mas utilizou, também, a linguagem capitosa dos perfumes, como modo de comunicação. Possuía magnificentes jóias familiares, ornadas de diamantes, esmeraldas, safiras e rubis, e despendia vultuosas quantias em joias encomendadas aos seus artesãos.
Na Grécia Antiga (1100-146 a.C.) o luxo era encarado de forma positiva quando utilizado para o público, porquanto era o símbolo da fartura, de excesso, ligado às ideias de esplendor e magnificência. Os tecidos mais ricos e as tinturas mais raras eram usufruídos pelos membros da nobreza, sendo interditos ao resto da população.
O luxo privado e familiar tinham, em contraponto, um sentido altamente pejorativo, (naquela sociedade que valorizava o bem-estar público e a cooperação) no que representavam de egoísmo e que, segundo os pensadores, causavam a destruição dos valores do indivíduo e da sua família.
Na Roma Antiga (753 AC a 476 a.C.), dada a valorização matriarcal da mulher, o luxo estava associado ao mundo feminino. Os homens, entre si, privilegiavam os aspectos físicos e intelectuais, mas compraziam-se no embelezamento das suas mulheres, filhas e cortesãs. A mulher refletia como um espelho o poder e a riqueza do homem em cujo tecto se abrigava.
Falar da Antiga Roma implica a abordagem de um tema tão do agrado dos romanos: os balneários públicos, verdadeiros centros cívicos, ponto de encontro de senadores e aristocratas que ali se reuniam cumprindo um interessante ritual, não só para cuidarem da sua higiene mas, para conversar, refletir sobre questões de política e exercer outras atividades lúdicas. No ano 300 havia mais de mil na cidade de Roma. Havia, também, a possibilidade de acesso a banhos privados, mediante o pagamento de uma pequena taxa. Curiosamente, os banhos públicos eram bastante mais luxuosos do que os privados, com exceção daqueles que eram pertença de romanos riquíssimos que os mandavam construir junto aos seus palácios.
Todas as classes sociais, sem diferença de género, tinham acesso ao complexo termal, com exceção dos escravos.
Jardins, ginásio, estádio, biblioteca, teatro, integravam o complexo termal, a que tinham acesso todas as classes sociais, sem diferença de género, com exceção dos escravos. Esses acompanhavam os senhores na sua deslocação diária às thermae. No entanto, há quem defenda que até mesmo estes frequentavam os banhos, o que, para a época não deixa de ser surpreendente. Aos homens estava reservada uma parte do dia e às mulheres outra, embora nada impedisse que uns e outros se reunissem ao mesmo tempo, a não ser as convenções sociais. Eram locais que variavam em tamanho, arranjo e decoração, sendo as termas de Caracala um exemplar do luxo aplicado àquele sector.
A comida era, de igual modo, extremamente valorizada. Com um vasto Império, os romanos faziam chegar de lugares recônditos os produtos mais exóticos: vinhos especiais, mel, azeite, ouro, especiarias e fragrâncias que exibiam e consumiam nas suas mesas. O festim podia consistir de sete pratos. Por exemplo, Marcus Gavius Apicius gastava autênticas fortunas nos seus jantares: adorava língua de flamingo e nunca servia couve porque como disse ao filho do imperador Tibério era “comida de pobre”. Os banquetes evoluíam frequentemente para orgias, que alguns políticos tentaram moderar.
Outros capítulos do dossiê “A deslumbrante história do luxo”
Capítulo 1. Introdução: tudo o que luz é luxo
Capítulo 2. Paleolítico: o luxo espiritual
Capítulo 4. Idade Média: Esbanjar para impressionar