O Pico e a vida

Há três anos subi ao Pico. Em família e com amigos, foi uma experiência inesquecível, que exigiu de mim um grande esforço mental e físico. Ainda hoje incluo este feito na minha lista de sucessos, porque foi de facto um grande desafio ultrapassado.

Olhando para trás, e revendo o dia, julgo ser possível fazer um paralelo da subida (e descida!) da maior montanha de Portugal com a vida e o trabalho. De vários momentos, decisões e obstáculos, o facto de no grupo sermos tão heterogéneos em idade e preparação, é interessante encontrar algumas situações nesta atividade que podemos transpor para a profissão.

 

Escolher fazer o caminho com um guia e em grupo pode ter sido mais lento, mas foi mais seguro, divertido e responsável.

Quando decidimos subir o Pico, o facto de sermos famílias com crianças de várias idades e sem experiência neste tipo de caminhadas, escolhemos levar um guia. Tivemos imensa sorte com o que nos calhou, o Ricardo, um jovem super experiente, bem disposto, e com imensa paciência para nos acompanhar. Tivemos de fazer várias paragens, quer na subida e na descida, para manter os níveis de energia sob controlo. Termos alguém connosco que ia gerindo as expectativas, mantendo a coesão, foi crucial. Em termos de grupo, uns iam puxando pelos outros, partilhando o peso das mochilas, desacelerando a velocidade inconsciente dos mais novos e animando-nos mutuamente, com histórias, piadas e cantorias.

Provavelmente, teria sido mais rápido só a dois. Ou só eu e o guia.

Mas as memórias de fazê-lo com os meus filhos, o marido, e os amigos, ficam para sempre e tornou o feito, com quem partilhamos ainda hoje em conversas, muito mais mágico!

 

A preparação é importante, mas não é tudo

Durante o planeamento, conseguimos definir o que levar, quantas garrafas de água cada adulto carregaria para as crianças irem mais leves. As roupas e o calçado a usar. A que horas do dia começar, o guia que nos ia acompanhar. Antes, também fizemos alguns treinos físicos, porque sabíamos que era exigente. Todavia, só isso não chega. É preciso ter sorte com o tempo, com o nosso próprio humor e vontade. Vimos gente noutros grupos a desistir no primeiro patamar. A disposição mental é possível, mas é menos trabalhada e, neste tipo de desafios é fundamental. Se não nos predispusermos ao esforço e ao objetivo, tivermos consciência que não vai ser fácil e que teremos de adaptar a velocidade e até o percurso, dificilmente conseguiremos chegar ao topo.

 

Ser-se jovem facilita a caminhada, temos mais energia. Mas também temos menos experiência, algum excesso de confiança, e cometemos mais erros.

No nosso grupo iam 6 miúdos. Quando alinhamos neste projeto, começamos a fazer corridas e intensificamos os passeios a pé para preparação. Ora, para os mais novos não teria sido necessário tanto treino, porque eles pareciam cabras do monte. Subiram e desceram de mãos nos bolsos, como quem faz um passeio à beira-mar. Já nós, os adultos, vergávamo-nos para nos apoiar em pedras (algumas partes são íngremes), usámos os bastões e os cajados que nos emprestaram para facilitar o caminho. Mas, a realidade é que os miúdos caíram mais vezes do que nós, felizmente sem se magoarem muito, porque foram menos cuidadosos por onde punham os pés. Arriscaram mais. E teriam feito mais disparates se não estivéssemos lá, os mais velhos, a orientar e chamar a atenção para os perigos.

 

Parar para apreciar a vista.

Chegar ao cimo do Pico, num dia limpo de nuvens e de sol é fenomenal. A vista é estonteante.

O céu estava completamente livre, víamos as ilhas ao nosso redor, São Jorge, Faial, e os que ainda subiram ao Piquinho puderam observar a quilómetros de distância até à ilha Terceira ou Graciosa.

Tirámos fotos, festejámos o feito, subir a montanha mais alta de Portugal! Apreciamos a natureza ao nosso redor, parámos para valorizar o privilégio que nos era concedido. Foram momentos de festa e alguma introspeção, para os mais velhos, obviamente.

 

A subida é exigente, mas descer custa mais. Muito mais.

Quando iniciámos a subida, íamos frescos, motivados, felizes por ali estarmos todo juntos. Tirámos fotografias, partilhámos os lanches que trazíamos. O dia estava bonito, as pedras e o chão estavam secos, as condições eram favoráveis ao passeio. À medida que as horas foram passando, o cansaço foi-se fazendo sentir, mas íamos conseguindo gerir as emoções porque tínhamos o objetivo a atingir.

A paragem para apreciar a vista lá no alto foi complicada de ultrapassar. Os músculos arrefeceram e apercebemo-nos das dores musculares. Por outro lado, tendo o objetivo sido atingido, só faltava agora chegar ao ponto de partida. Emocionalmente, a motivação tinha baixado abruptamente e, para agravar tudo isto, no sentido para baixo sentem-se muito mais as vertigens.

Por outro lado, a descida é mais perigosa, há margem para mais erros e mesmo fisicamente é mais difícil. As paragens para descanso começaram a custar mais, a vontade era continuar seguido, mas estávamos em grupo e o ritmo tem de ser o mais homogéneo possível para não dispersarmos uns dos outros. A dada altura, começou-se a ficar com as chamadas “pernas de esparguete”, que é basicamente estarmos tão cansados que o nosso cérebro já não consegue passar a informação para os membros inferiores continuarem a trabalhar. E param de funcionar.

Aí serviu a ajuda fabulosa do guia, que foi crucial para apoiar algumas pessoas na descida durante os últimos metros e não atrasar o grupo todo. E de alguns pais que carregaram os filhos às costas.

Eu, a dada altura e reconhecendo o caminho até à casa da montanha, arranquei com a juventude, porque sentia que se desacelerasse mais ia ser impossível continuar. O sprint final até às escadas do edifício.

 

Depois de tanto tempo em modo dificuldade e desafio, é complicado acreditar que nos podem facilitar a vida. 

Quando cheguei às escadas da casa da montanha e tentei descê-las, não consegui. Não consegui. O meu corpo estava habituado a colocar os pés em pedras irregulares, a rodar os calcanhares e os tornozelos tinham sofrido torcidas como nunca na vida sabia existir. Ter de fazer o movimento para ultrapassar degraus de tamanho regular, num movimento repetido, pareceu-me impossível porque o meu cérebro tinha-se desabituado à facilidade. As lágrimas chegaram-me aos olhos, porque estava tão perto do fim e não sabia se ia conseguir lá chegar. Depois, respirei fundo, e a chorar lá tentei fazer o percurso de costas e de lado. O meu filho passou por mim e pergunta-me preocupado “estás a chorar, mãe?”

Eu menti, para não o assustar: “de felicidade, meu filho, de felicidade.”

Acabámos todos a festejar no café da casa da montanha, por entre águas e sumos, e arrastámo-nos para casa, sabendo que o dia seguinte ia continuar a ser de dores corporais pelo enorme esforço realizado.

Mas, por entre o cansaço enorme, eu estava mesmo feliz. Por ter conseguido, por ter acabado, por estarmos todos cansadíssimos, mas bem.

Só não sabia, ainda, o quanto.

Publicado a 10 Junho 2021

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