O mundo visto pelo calçado

Acompanho a indústria do calçado há imensos anos. Assisti à sua quebra, estagnação, evolução, crescimento, várias vezes, ao longo deste tempo. O que tem sido curioso é assistir a estas mudanças de acordo com a nossa forma de viver. Acontecem paralelamente e têm uma explicação.

Há duas décadas, a indústria do calçado passou uma das suas maiores crises. As grandes coleções, muitas unidades por tamanhos e modelos, desapareceram. Foram para o Norte de África e para a Ásia. Com isto, muitas empresas fecharam as suas fábricas na Península Ibérica, principalmente em Espanha, deslocando-se para outras zonas geográficas, ou tiveram de se reorganizar. Apostaram no design, na qualidade, na criatividade, investindo mais em moldes, em coleções pequenas, poucos números por tamanho. O mundo acompanhava essa tendência, as pessoas compravam vários pares de sapatos, várias cores, várias alturas, valorizando o sapato como elemento-chave da moda. Apareceram marcas caras, que faziam séries de televisão, e definiam um estilo e até uma classe social.

Mas, uns anos depois, com a democratização das viagens low cost, em que a nossa semana tinha de caber numa mala de cabina, já não era possível levar cinco pares de sapatos. Assim, banalizou-se o uso das sapatilhas com qualquer peça de roupa. Até fatos ou vestidos de lantejoulas. As sapatilhas passaram de sapato de conforto para ícones de moda e começaram a valer tanto como os sapatos de marca do parágrafo anterior. Aliás, essas marcas tiveram de aderir aos modelos, até porque chegavam a outras gerações – mais jovens, menos jovens. Hoje, se passeamos na rua e olhamos para o chão, está tudo de sapatilha. Ora, as solas das sapatilhas são produzidas com materiais diferentes dos que se usam no calçado tipicamente feito em Portugal – o clássico de borracha ou pele. Assim, para acompanhar as tendências, novos investimentos em máquinas e tipos de métodos produtivos aconteceram. Os fornecedores de matérias-primas tiveram de encontrar novas origens de produtos e sobreviveu-se a mais uma mudança drástica no mercado.

Depois veio a pandemia. E posso garantir-vos que a indústria do calçado foi das que mais sofreu com o vírus. Ninguém saía de casa, ninguém gastou sapatos, não havia ocasiões para comprar calçado novo. Eram pantufas e chinelos. E o que se viu? Marcas apostaram neste mercado e hoje vemos, junto a botas e sandálias, sapatos de quarto que custam tanto como as primeiras. Paralelamente, começámos a regressar pouco a pouco ao exterior e a proteção na saída sente-se até nos pés: botas com solas grossas que resistem a tudo. Voltamos aos moldes de borracha, às peles, ao que resiste. De preferência que durem, porque temos de ser sustentáveis.

Finalmente, queremos outra vez festas e divertirmo-nos. E nada melhor do que o revivalismo dos anos 70 e 80, com os sapatos de plataforma, coloridos. E comprar, queremos comprar. Já não viajamos tanto, por isso não importa se um par de sapatos pesa 3 kg e se ocupa metade de uma mala de mão. O que importa é viver. Da cabeça aos pés.

E, assim, a indústria do calçado vai voltando às técnicas de antes, com materiais de hoje, reciclados, reaproveitados, renovando-se outra vez. E sobrevivendo sempre. Sempre.

Porque sem sapatos, acreditem, não há História.

 

Inês Brandão é fundadora e Global Business Manager da Frenpolymer. Leia mais artigos da autora aqui

Publicado a 14 Dezembro 2021

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