Calábria: puro charme à beira mar

As últimas casas da cidade de Scilla vão mesmo até às águas do mar Adriático.

As últimas casas da cidade de Scilla vão mesmo até às águas do mar Adriático.

 

O Borgo Chianalea di Scilla é um pedaço de charme em cima da terra. Fica à beira mar, com vista para a Sicília, e desce encosta abaixo de forma vertiginosa, tal como outras terras que costumamos apenas ver em postais ou folhetos de viagem de aldeias piscatórias das costas italianas, que ficam mais a norte e são mais mediatizadas do que esta.

É, para mim, difícil de transmitir o prazer que senti enquanto caminhava pelas ruelas do pequeno povoado, depois de uma semana intensa e bem vivida na Calabria, a parte final da bota italiana. Entrecortado por algumas ruelas estreitas e deambulantes, o casario de Scilla vai, em alguns sítios, mesmo até às águas do Mediterrâneo. Depois de um pequeno almoço simpático numa pequena esplanada, recém-aberta, na companhia de duas das minhas colegas de viagem por terras calabresas, uma brasileira e outra alemã, porque o B&B onde tínhamos ficado alojados apenas disponibilizava o primeiro B, de bed, fui caminhando até ao porto e fotografando tudo o que podia pelo caminho.

Para trás tinham ficado três dias de prova cega de quase 140 vinhos brancos e tintos a convite, mais uma vez, da organização do Concurso Mundial de Bruxelas. E uma viagem profunda de aquisição de conhecimento sobre os vinhos de uma região que se quer mostrar ao mundo. Saboreei também a sua comida, conheci alguns dos seus lugares de charme, senti o seu temperamento e vivi um pouco os seus contrastes.

Não é fácil explicar a Calábria que visitei. O seu interior montanhoso e muito florestado, com diversos picos acima dos dois mil metros de altitude, vale pelo menos uma viagem entre o litoral do mar Jónio e o litoral do mar Adriático, com paragem no Museu Natural de Cupone, para o conhecer um pouco melhor. O Lago Cecita, que fica bem perto, é, ali, verdadeiramente fotogénico.

O lago Cecita fica no Parque Nacional da Sila, na zona montanhosa do interior da Calábria.

O lago Cecita fica no Parque Nacional da Sila, na zona montanhosa do interior da Calábria.

Um passito distinto

Também gostei de ir à cidade de Saracena, talvez pelo seu ar um pouco decrépito e vetusto, de casas com aparência de estar a cair, já há muitos anos, e de prédios inacabados. É preciso salientar que estava no sul de Itália e que vi, muitas vezes, construções a precisar de restauro, sobretudo na viagem que fizemos pelo interior da Calábria, uma das regiões mais pobres do país. Aqui e além, em cima de um alpendre ou a enfeitar uma escadaria, havia algumas botas e sapatos velhos a fazer de vasos, um pormenor que não deixei escapar e trouxe para casa em fotografia.

O objetivo da visita à cidade foi a prova do seu Moscato, um vinho de sobremesa feito de uma forma muito diferente, geralmente, a partir de uvas de castas Guarnaccia, Malvasia e Moscatello di Saracena, mas também outras. As duas primeiras são, habitualmente, usadas para produzir um mosto que é fervido até ficar reduzido a 1/3, com uma concentração de açúcar muito elevada. A última casta é vindimada tardiamente, já com as uvas em passa, que são separadas e esmagadas manualmente para produzir um mosto que é adicionado ao que foi concentrado pela fervura. Depois da fermentação, o vinho obtido estagia em madeira durante seis meses.

O Moscato di Saracena tem um aroma intenso e complexo, que pode incluir notas de frutos secos, tâmaras, figos, frutas cristalizadas, alguma tosta e nuances de mel. Na boca é doce, fresco e longo, com boa persistência. Provei vários destes vinhos, uns mais interessantes que os outros, mas todos ficaram bem com a companhia de queijo Pecorino local e de uns irresistíveis Cannaricoli, bolinhos locais feitos, entre outras coisas, com Moscato de Saracena.

Cannaricoli e Moscato são duas pequenas joias de aroma e sabor da vetusta cidade de Saracena.

Cannaricoli e Moscato são duas pequenas joias de aroma e sabor da vetusta cidade de Saracena, na Calábria.

 

Comida tentadora

Desta viagem guardei também a Região de Ciro, que fica à beira do mar Jónico, porque oferece aquilo que a Calábria tem de melhor, pelo menos para mim: comida simples, de conforto, tentadora e saborosa, bons vinhos para companhia, gente boa e simpática.

Melhor do que apreciar Queijo Mozarella fresco, é fazer isso depois de apreciar a arte de o terminar.

Melhor do que apreciar Queijo Mozarella fresco, é fazer isso depois de apreciar a arte de o terminar.

Ter direito a saborear, todos os dias em que lá estive, coisas como tomate seco, cebolinhas roxas em vinagre, azeitonas irresistíveis, pimentos verdes assados, queijo pecorino, o melhor gorgonzola que já provei, mozarela mesmo fresca, acabada de fazer, pancetta e diversos enchidos, mais salada de polvo, fritos de verduras, peixes e carnes, lulas guisadas ou carne estufada, tudo cheio de bons aromas e sabores, é mesmo um privilégio. O difícil foi parar.

Era em tudo isto que pensava quando estava em Scilla, naquela manhã, a tomar um café numa esplanada quase vazia de gente, sobre uma praia de areia branca, com as águas azuis intensas do mar Tirreno como vista.

Estive apenas um final de dia, uma noite e uma manhã nesta terra cheia de beleza. Mas foi o suficiente para sentir bem o seu poder de atração. Uma volta noturna de embarcação a partir do pequeno porto deu-nos uma visão diferente da terra. Depois de feitas as fotos, fomos levados até a embarcações da pesca do espadarte e, suponho, do atum, para saborearmos camarão da costa de superfície e do fundo, apenas temperados com raspas de casca de limão, mais umas fatias de sashimi de peixe muito fresco, que estavam a ser ultimados quando chegámos. Para companhia escolhi um rosé calabrês.

Amanhecer na praia de Montepaone Lido, à beira do mar Jónico.

Amanhecer na praia de Montepaone Lido, à beira do mar Jónico, na Calábria.

 

Praia de águas límpidas

Depois de alguns dias a provar os produtos da região, cheguei à conclusão que, em média, era o tipo de vinho que parecia sempre mais equilibrado e correto, com os aromas e o toque de frescura certos para a comida, independentemente da região e do produtor. Não que não haja vinhos de qualidade em toda a Calábria, e sobretudo na região de Ciro, no que toca a tintos, mas desta vez fiquei-me, mais uma vez por um rosé.

A praia de Scilla ao início de um dia de verão.

A praia de Scilla ao início de um dia de verão.

Já em terra, tivemos também a possibilidade de saborear biqueirões minúsculos, camarõezinhos e lulinhas fritos e peixe espada grelhado, depois de ter sido preparado à nossa frente. Um belo repasto que terminei cedo, pois queria aproveitar a manhã para percorrer este sítio sedutor, tal como fiz. Depois de calcorrear um pouco as suas ruas íngremes, tomei um pequeno almoço bem cedo numa pequena esplanada de rua, com enchidos e queijo locais, e dei uma volta pela rua mais próxima do mar, explorando as passagens entre os prédios até à água na procura da melhor foto, que acabei por conseguir tirar. Dei, depois, uma volta até à praia de areias brancas, um pouco mais grossas que o habitual, para fazer paragem para mais uma água e um café que já contei acima, a olhar para aquelas águas límpidas e para o horizonte fotogénico e convidativo. Por acaso, ou apenas por sorte, o proprietário sabia falar português, por ter andado embarcado em navios de cruzeiro na costa brasileira durante muitos anos e lá ficámos mais um pouco a ouvir as suas histórias. Enquanto olhava para a praia quase vazia, pensei, de novo, que tinha vontade de voltar, talvez com um pouco mais tempo.

Encontro inesperado à beira das ruínas do Mercado Sarraceno de Ciró Marina.

Encontro inesperado à beira das ruínas do Mercado Sarraceno de Ciró Marina, na Calábria.

 

Leia mais artigos de José Miguel Dentinho.

Publicado a 12 Setembro 2022

Partilhar Artigo

Parceiros Premium
Parceiros