Houve um facto determinante na escolha do caminho que Ana Trigo Morais percorreu até hoje, na altura em que frequentava o antigo 5.º ano do liceu (hoje 9.º ano). Optara por Direito, entre as disciplinas opcionais que existiam, e conta que foi o seu professor, “António Coutinho, uma pessoa muito interessante, muito intelectual, que contribuiu para aumentar o meu interesse, não só pelo Direito, mas também pelo mundo”. Lembra-se também dos seus incentivos à leitura, sobretudo da imprensa escrita, “porque isso nos ia tornar mais atentos e iria contribuir para percebermos melhor tudo o que nos rodeia”. Estudo Direito, na Universidade Católica Portuguesa do Porto, que abrira cinco anos antes. “A nossa universidade era pequena, tinha poucos alunos e havia uma grande proximidade entre estes e professores e funcionários”, conta, salientando que sentiu, ali, uma sensação de comunidade.
A paixão pela cultura
Depois da licenciatura e do estágio, Ana Trigo Morais exerceu a profissão de jurista durante muito pouco tempo. O espírito de curiosidade levou-a a fazer diversos pequenos trabalhos, para conhecer outras realidades, até que fez o programa de formação Jovens Técnicos para a Indústria, na Associação Industrial Portuense, “que visava qualificar e capacitar pessoas para entenderem melhor o sistema de fundos europeus, para responder às necessidades das empresas”, conta. Na altura, tal como deve acontecer ainda hoje num país onde a burocracia impera, “os tribunais funcionavam mal, a máquina da justiça era lenta, complexa e complicada e a das empresas era ágil, muito mais criadora de valor e interessante”, explica, como argumento que condicionou a sua decisão de começar a trabalhar noutras áreas para além do Direito.
Começou por fazê-lo em part-time no Teatro Nacional de S. João, sobretudo porque gostava de tudo o que estava ligado às artes. Veio para Lisboa em 1994, ano em que a cidade foi Capital Europeia da Cultura, quando surgiu a oportunidade de trabalhar na fundação que geria o Teatro Nacional de S. Carlos, que era presidida pelo Professor Machado Macedo, “um grande humanista, um homem de fortes princípios e valores, de grande ética, que me influenciou muito”, conta. Numa altura em que se pensava que o mecenato iria ter um papel importante em Portugal, foi responsável, entre outros, pela criação duma área que pretendia aproximar o teatro e a ópera ao setor empresarial, o que acabou por não acontecer, mas também para fazer a sua ligação ao público em geral, porque era preciso rejuvenescê-lo e criar o interesse de novos públicos por aquilo que era a atividade principal do teatro, a ópera. “Foi um momento muito desafiante na minha vida, em que tudo era novidade”, diz.
A entrada na Gestão
Depois de um ano a trabalhar fora, numa rede europeia onde tinha a missão de ajudar os artistas e as organizações culturais portuguesas a candidatar-se a financiamentos europeus que eram, na época, dirigidos para os grandes países do centro da Europa, voltou ao S. Carlos. Esteve no Conselho Diretivo do teatro, com a responsabilidade da área administrativa e financeira, “num tempo complexo, em que aprendi muito sobre contratação pública e direito administrativo, que é fundamental para se gerir uma casa com aquele perfil”, defende.
Depois esteve na Fundação Centro Cultural de Belém, durante quase sete anos, como membro do Conselho de Administração com funções na área administrativa e financeira, gestão de espaços comerciais, pessoas, infraestruturas e contratos de fornecimento. “Havia muito bons profissionais a trabalhar no Centro Cultural de Belém, o que contribuiu para passar lá vários anos de minha vida até que me desencantei um pouco com o sector das artes, porque se mantinha excessivamente dependente de financiamentos públicos, o que limitava muito a capacidade de se estabelecer uma criação artística mais empreendedora”, conta explicando que se passava o tempo a discutir orçamentos, já de si reduzidos, em vez dos grandes temas de política cultural necessários para estabelecer condições para os artistas produzirem o seu trabalho. Como a discussão era sempre a mesma, decidiu fazer uma pós-graduação em Alta Direção de Empresas, na AESE, em 2007.
“É outro marco muito importante no meu caminho de vida, porque essa formação solidificou muitos conhecimentos e capacitou-me para a área da gestão das organizações”, diz. E, em 2010, saiu do Centro Cultural de Belém, no final do mandato, para abraçar um desafio numa área completamente diferente, a direção-geral da Associação das Empresas de Distribuição, em que esteve durante oito anos.
O desafio da sustentabilidade ambiental
Para Ana Trigo Morais a distribuição é “um sector muito exposto, com muita visibilidade e grandes desafios, muita criação de valor e um papel significativo no nosso modelo de vida”, dado que “é muito relevante, não só do ponto de vista económico e para a qualidade de vida das pessoas, mas também porque tem influência na forma como consumimos e vivemos”.
Para a responsável foi um tempo enriquecedor, sobretudo por ter trabalhado em áreas muito diversas, desde assuntos ligados à segurança e qualidade alimentar a toda a legislação do setor e à relação com a banca. Até que, em 2018, depois de ter tomado muito contacto com os temas da sustentabilidade e do ambiente, “porque o sector do retalho tinha um grande compromisso com essas áreas na sua atividade”, surgiu a oportunidade de entrar na Sociedade Ponto Verde. Era hora de trabalhar numa área que representa um passo seguinte ao consumo, naquilo que se faz aos resíduos e às embalagens.
É, há mais de quatro anos, CEO e membro do Conselho de Administração da Sociedade Ponto Verde, entidade que promove a recolha seletiva, retoma e reciclagem de embalagens em Portugal.
Num mundo que está a mudar, entre outros na forma como explora matérias-primas, usa a energia, consome produtos e os descarta ou não, ainda há muito a fazer no caminho da sustentabilidade. Entre outros, para enquadramento das suas boas práticas no tecido empresarial português e para mudar mentalidades, porque é essencial “tomarmos, de facto, mais do que consciência, medidas efetivas para reduzir o impacto do atual modelo de consumo em Portugal”, defende a responsável.
O sistema de reciclagem nacional foi montado há 25 anos, pela Sociedade Ponto Verde e pelos seus parceiros, os municípios, entidades intermunicipais e as suas mais de oito mil associadas, desde empresários individuais e microempresas aos grandes grupos ativos em Portugal. Inclui, hoje, 70 mil ecopontos e outras infraestruturas.
Sistema de recolha não supre necessidades
Mas se durante os primeiros 10-15 anos o país evoluiu positivamente nesta área, com os portugueses a adotarem a prática da reciclagem e os municípios a prestarem os serviços necessários para a gestão operacional do sistema implementado para captar as embalagens com valor económico, “o setor foi abrandando nos últimos 10 anos e está agora quase estagnado”, diz Ana Trigo Morais. Explica, por exemplo, que Portugal apenas cumpre as metas acordadas com a União Europeia para as embalagens de papel e cartão, sobretudo por não haver ainda um sistema eficiente que faça a recolha junto do canal Horeca (hotelaria, restauração, cafés e similares). Ou seja, “todos os outros resíduos urbanos, desde os indiferenciados aos eletrónicos, incluindo embalagens de vidro, e todos os têxteis e madeiras, não cumprem”, afirma. Uma das razões é o serviço prestado para a captação e transporte não ser suficiente para as quantidades depositadas. Foi desenhado há 25 anos, para outra realidade em termos de deposição de resíduos e não supre, com rapidez e eficiência, as necessidades atuais do país em muitas regiões nacionais.
Isso leva a que Portugal esteja atualmente a desperdiçar o equivalente a 31 milhões de euros de resíduos de embalagens, que vão para aterros e queima para produção de energia, por exemplo. “Isto não faz sentido, numa altura em que há crise de matérias-primas, quando existe a capacidade e a tecnologia necessárias para os transformar em recursos que originam matérias-primas secundárias, que são muito necessárias até para proteger o planeta”, defende a responsável. Acrescenta que “tem faltado muita coragem política para legislar e tomar decisões que permitam tornar o setor muito mais eficiente”.
90% dos portugueses recicla
“Perdemo-nos em discussões administrativas, legais, de transmissões de diretivas, em vez de nos focarmos na prática operacional da criação de modelos eficientes para prestar serviço ao cidadão”, conta, salientando que isto acontece enquanto se pede, aos cidadãos, que ajudem o país a reciclar embalagens e “não se está a prestar o serviço que deveriam ter e até pagam com a taxa da água e quando as compram”, defende.
“Foi o sistema que se montou na altura, e muitos outros países fizeram o mesmo, mas nós já devíamos ter desacoplado a tarifa de gestão dos resíduos urbanos da tarifa do consumo de água”, defende Ana Trigo Morais, explicando que isso iria permitir, aos portugueses, perceberem realmente o que estão a pagar e avaliar o resultado do seu empenho na reciclagem.
De qualquer forma, 25 anos após ter sido criada a Sociedade Ponto Verde, muito já mudou em prol da sustentabilidade do sistema de consumo em Portugal. Pelo menos as informações atuais disponíveis revelam que atualmente 90% dos portugueses praticam a separação e reciclagem parcial ou total dos seus resíduos. Mas é preciso manter a chama acesa.
A educação e a literacia ambiental são trabalhos que nunca estarão terminados. É preciso manter o tema da reciclagem na cabeça das pessoas e nos objetivos das empresas e é importante que as gerações mais novas a conheçam e saibam porque é importante praticá-la. Nesse sentido “a SPV criou, entre outros, um instrumento oferecido a creches e escolas de todo o país para dar, aos educadores, instrumentos que lhes permitam transmitir isso e explicar as formas de o fazer”, diz a presidente da associação.
Para além de desenvolver ações de sensibilização no pós-consumo, a Sociedade Ponto Verde também o faz a montante, porque é necessário que a cadeia de produção use embalagens com um design que facilite a sua reciclagem, que tenham, para além das explicações sobre o seu conteúdo, outras a informar o que devemos fazer com elas após a utilização. Para tal, o Ponto Verde Lab desenvolveu uma ferramenta para as empresas que colocam embalagens no mercado melhorarem a sua pegada ambiental. Há garrafas com menos plástico, embalagens de cartão mais pequenas e garrafas de vidro mais leves e transparentes, porque o verde não é compatível com o processo de reciclagem.
Um trabalho que não termina
A melhoria da sustentabilidade ambiental das embalagens é um trabalho que não acaba, e deve ser feito em conjunto por quem as desenha, coloca no mercado, consome e as coloca nos ecopontos. Existe, depois, a fase a seguir ao ecoponto, gerida operacionalmente pelos sistemas municipais e intermunicipais. Inclui a recolha nos 70 mil ecopontos espalhados pelo país e porta a porta, e o processamento dos resíduos em centrais, que são depois entregues à SPV para serem vendidos a recicladores que os transformam para voltarem a entrar no mercado.
Segundo Ana Trigo Morais são produzidas, anualmente em Portugal, cinco milhões de toneladas de resíduos urbanos, dos quais um milhão de toneladas de embalagens. Os materiais que os portugueses mais colocam nos ecopontos são o papel e cartão, seguidos do plástico, produtos onde o país cumpre as metas estabelecidas pela União Europeia. Mas o país está a recolher 56% das embalagens de vidro depositadas, quando a meta é de 60%, o que se “deve aos vidrões estarem desenhados para recolherem apenas as embalagens de vidro de consumo doméstico, e termos uma infraestrutura insuficientemente adaptada às necessidades atuais, pois não serve o canal Horeca”, explica Ana Trigo Morais, defendendo ser necessário mudar a forma como é feita a recolha junto deste tipo de estabelecimentos.
Mas não basta apenas reciclar e apostar cada vez mais na economia circular. É preciso poupar os recursos naturais do planeta, reduzindo o consumo e reutilizando as embalagens. Para Ana Trigo Morais, uma boa comunicação, mais transparente, contribuirá para isso. “O ideal é que as pessoas tenham a noção que financiam um sistema que lhes proporciona uma boa qualidade de vida, um país, uma cidade, uma aldeia, um bairro limpos, para si próprios e para quem nos visita, em turismo ou trabalho”, defende.
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