Chegou à APED já em plena crise e nas vésperas do resgate. Com um currículo feito nas administrações do Teatro Nacional de São Carlos e do Centro Cultural de Belém, dirigir a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, parecia um tiro ao lado, mas não era. Ana Isabel Trigo Morais trazia na bagagem muita experiência de gestão e a arte de conciliação de sensibilidades. Defende as virtudes do trabalho em equipa no trabalho e em casa. Foi assim que conseguiu conciliar uma vida profissional intensa com a maternidade. Acredita que essa é uma das formas que vai ajudar as mulheres e aparecerem mais nos lugares de chefia.
Assumir a direção da APED em plena crise foi uma decisão difícil?
Foi um contexto interessante da minha vida que correspondeu aquilo que eu senti como um fim de um ciclo e em que já me preparava para o seguinte. Estive seis anos como membro do conselho de administração do CCB, onde entreguei a minha energia e o meu empenho a tentar que aquela organização se tornasse melhor e mais eficiente. Sempre trabalhei em áreas de gestão. O meu trabalho tem quase sempre as mesmas caracteristicas, só muda o pano de fundo.
Gostou dessa experiência?
Gostei muito. Mas entendia que era o fim de um ciclo e que teria de sair da minha zona de conforto e procurar outra área onde eu me desafiasse, pudesse evoluir, testar-me um bocadinho mais naquilo que eu era capaz de fazer.
Isso é exatamente o que a maioria das pessoas não gosta de fazer.
Mas foi a minha decisão porque achei que era preciso gerir a mudança, antes que a mudança me gerisse a mim. E esta minha vontade de mudar correspondeu à vinda para a APED. Devo confessar que não foi inesperado mudar de setor, mas foi inesperado o convite para vir para uma associação de um setor tão desafiante. Foi mais além da mudança que eu desejava, mas como eu queria a mudança, decidi entregar-me a ela e aceitar este desafio.
Lembro-me de a minha mãe sempre me dizer ‘se uma coisa merece ser feita, merece mais ser bem feita’. Esta é uma frase que me marcou
Têm sido cinco anos de muito trabalho?
Têm sido anos bastante intensos. É um setor que cria muita riqueza no país, e por isso sentamo-nos em muitas mesas a discutir muitos temas diferenciados, mas todos têm a ver com o enquadramento da nossa atividade. Trabalhamos com 131 empresas, que representam 96 mil postos de trabalho e cerca de 11% do PIB.
Apesar do convite ter sido inesperado, sentia-se preparada para o aceitar? Não vacilou?
Há sempre um processo interior em que quando somos colocados, ou nos colocamos, perante um desafio, nos questionamos se estaremos mesmo à altura dele. Será que caibo neste desafio e ele cabe dentro daquilo que sou capaz de fazer? Também passei por esse momento.
E como é que isso se supera?
Eu supero com a minha maneira que de estar na vida que é ‘vamos saber estar à altura deste desafio e vamos dar tudo por tudo para o vencer’. Lembro-me de a minha mãe sempre me dizer ‘se uma coisa merece ser feita, merece mais ser bem feita’. Esta é uma frase que me marcou para a vida e que sempre me fez acreditar que mesmo sabendo que posso ter de me esforçar mais do que os outros, se me empenhar e se perceber bem para onde quero ir, e como quero lá chegar, vou conseguir.
UMA CARREIRA FEITA DE DESAFIOS
Apesar do convite inesperado, este foi apenas mais um desafio na sua carreira. O primeiro foi ter decidido fazer o programa Jovens Técnicos para a Indústra durante o estágio para advocacia. Foi um desvio a um percurso tradicional de quem faz a licienciatura na Católica, tem o estágio e um trabalho temporário. Mas foi apenas o primeiro. Logo de seguida ingressou na Associação Industrial Portuense, onde continuou a trabalhar quando veio para Lisboa depois de casar. A sua ligação às Artes começou com uma ajuda na organização do Teatro de São João do Porto e tornou-se mais séria com as suas duas passagens pelo Teatro Nacional de São Carlos – primeiro para criar o departamento de comunicação e marketing e depois para integrar a administração – e com os dois mandatos no Centro Cultural de Belém. Pelo meio ainda ficou um período muito rico da sua vida em que coordenou um Info Deck sobre os financiamentos europeus para o setor das artes e da cultura. O objetivo era não só captar os financiamentos europeus que existiam para o setor, mas também ajudar a formar as estruturas que trabalhavam neste setor a aprenderem a lidar com os mecanismos de financiamento e de acesso a esses fundos. “Foi uma fase muito interessante e enriquecedora porque viajei imenso pela Europa e conheci experiências diferentes”, garante.
Este é um setor nem sempre bem visto por toda a gente…
É verdade. Este setor tem uma curiosidade que é termos uma excelente opinião pública dos consumidores em relação a nós, mas nem sempre uma boa opinião publicada. Por isso a nossa missão é mostrar que temos um contributo muito importante para a economia do pais, para a vida das pessoas, para o tecido económico, para a criação de emprego. É um trabalho sempre incabado porque há sempre outras coisas a acrescentar, porque tão depressa estamos a falar do mercado dos combustiveis, como dos medicamentos não sujeitos a receita médica, como de boas práticas ambientais, das relações com os fornecedores, das marcas da distribuição, as tendencias de comportamentos do consumidor… temos uma enorme diversidade de temas.
Num segundo nível é também muito importante a nossa função de representação. Nós representamos os nossos interesses, que é uma coisa que gostava de dizer com muita clareza, porque defendo que a representação dos interesses se deve fazer com clareza e acho que é uma coisa que a APED faz e faz bem.
A distribuição ajudou imenso as famílias, redesenhando os preços para acompanhar o seu poder de compra, que caiu brutalmente
Quais os principais ajustes, nem sempre visiveis, que a distribuição teve de fazer para enfrentar a retração do consumo?
A distribuição é um negócio muito sofisticado e para trás das portas da loja existe um universo enorme de imensa sofisticação, tecnologia e inovação. Tivemos uma quebra de poder de compra em Portugal que implicou perdas de postos de trabalho num setor que só tinha crescido até 2010. A crise foi séria, afetou muito uma serie de empresas, que tiveram de ajustar as suas estruturas, mas a parte menos visivel foi responder com investimento em inovação. E a inovação neste setor é muita inovação de processo, orientada para a criação de valor, para a eficiência e para a capacidade de chegar ao mercado em condições de competir melhor com todas as outras empresas. Esta foi talvez a arma mais importante, e que serviu também para ajudar as familias portuguesas a redesenhar os seus hábitos de consumo. Há habitos de consumo que se transformaram em Portugal durante a crise e que acreditamos que vão continuar a evoluir e que não vão voltar aos padrões que tinhamos antes. Os portugueses estão consumidores mais esclarecidos e mais inteligentes na sua compra. As pessoas continuam muito focadas no preço, mas já se nota uma evolução para o valor.
Mas isso é porque já estamos um passo à frente, porque na crise profunda o que contava era o preço.
Sim, estamos precisamente agora a fazer esta transição. Na crise profunda todos os nossos indicadores nos dizem que o drive da compra era o preço. A distribuição ajudou imenso as famílias portuguesas, redesenhando os preços para acompanhar o seu poder de compra, que caiu brutalmente, com o aumento do desemprego e da carga fiscal. As familias estiveram debaixo de uma grande pressão e a distribuição teve este papel muito positivo de as ajudar a continuar a aceder a um cabaz de bens a preços compativeis com o seu poder de compra. Isto é pouco dito, mas é muito sentido pelas pessoas.
Quais têm sido as suas principais batalhas na APED?
A primeira foi de organização de uma estrutura que faz 30 anos em 2016. A segunda foi a introdução da legislação que veio cobrar pela utilização dos sacos de plástico. Há muito que os nossos associados vinham introduzindo alternativas para diminuir o seu impacto ambiental. Conseguimos, em colaboração com o governo, com as organizações do ambiente e com os associados, fazer uma alteração nos hábitos das pessoas, que foi muito tranquila e rápida e em que conseguimos evidenciar que os portugueses também são abertos à mudança.
Qual a principal dificuldade que tem encontrado na sua missão?
É ter de discutir um conjunto de legislação para o setor, sem que haja um conhecimento desse setor. E este é um aspeto onde Portugal ainda tem muito que evoluir. Ao longo dos processos de revisão legislativa que tenho acompanhado – desde a lei da cópia privada, à dos combustiveis, à da publicidade, à das práticas restrititvas do comércio, à dos horários dos estabelecimentos comerciais, à transposição das diretivas em matéria de energia – discuto o enquadramento legislativo e o texto da lei com interlocutores que estão muitas vezes longe da realidade sobre a qual essa lei vai produzir efeitos. Isso obriga depois as empresas a custos acrescidos de trabalho burocrático e de custo de contexto para interpretar as leis.
Migrámos da burocracia em papel para a burocracia digital. Precisamos de desburocratizar o digital senão é um retrocesso
Isso tem que ver com a falta de preparação de quem faz as leis?
Para mim tem a ver com dois aspetos muito importantes. Primeiro porque acho que deviamos ter mais clareza naquilo que são os interesses de cada setor presente em Portugal. E depois pecisavamos de ter a noção que mesmo quando pensamos que sabemos das coisas é melhor ir perguntar a quem está no terreno e a quem sabe. Precisamos de evoluir numa relação de confiança entre a função legislativa, a função administrativa e aquilo que é a função de consulta aos agentes económicos.
Temos de olhar para o futuro com objetivos muito claros relativamente aquilo que é a qualidade do nosso processo legislativo, e temos de desburocratizar o Estado e o relacionamento das empresas com o Estado. Esta é uma das nossas grandes bandeiras, porque o sistema continua muito burocratizado. Migrámos da burocracia em papel para a burocracia digital. Precisamos de desburocratizar o digital senão é um retrocesso.
Alguma vez sentiu dificuldades em fazer valer o seu ponto de vista pelo facto de ser mulher?
Não tenho essa experiência. Tenho o privilégio de trabalhar com um conjunto de empresas que tem pessoas excepcionais nas suas lideranças. Mas olhando para o caminho que tenho feito não sinto diferença, até porque acho que quando sentimos que poderá haver um tratamento diferenciado, somos capazes de gerir a situação. Por vezes, posso sentir que as pessoas não estão a levar em linha de conta o que estou a dizer como eu gostaria que estivessem, e tenho de fazer passar a mensagem de outra forma, mas isso faz parte… e acho que as mulheres são treinadas para isso. Somos capazes de desenvolver uma espécie de leitor automático de cada contexto, o que nos permite reposicionar em relação aquele momento e aquela circunstância. Acho que isso é um lado muito feminino que nos ajuda imenso.
Nota que há hoje mais mulheres em cargos de liderança na distribuição?
Temos assistido a uma evolução muito interessante. A Fnac tem uma diretora ibérica, recentemente também temos uma mulher que veio da Grécia para liderar o Lidl em Portugal, e na Makro também está uma mulher, tal como no Ikea. E posso dizer-lhe que na Europa já vemos muitas mulheres em lugares de destaque no setor do Retalho. É interessante ver que o nosso setor tem já espaço para a liderança no feminino.
Posso estar numa audiência com o senhor ministro a combinar com a minha empregada o que vai ser o jantar. Somos multitasking
Parece-lhe então que a questão das quotas não deve colocar-se?
Não me faz sentido a questão das quotas, mas sim o mérito. Não creio que seja pelas quotas que veremos mais mulheres com competência. Para mim, o primado da liberdade de escolha das mulheres é mais importante do que a questão das quotas. Acho muito legítimo que uma mulher escolha durante uma fase da sua carreira dar prioridade a outros áreas da sua vida. Com as quotas corremos o risco de criar uma certa artificialidade, que no final do dia não tenho a certeza de que seja positivo para as mulheres, nem para as organizações.
Considera que é apenas uma questão de escolha ainda haver poucas mulheres em lugares de decisão?
Acho que temos evidentemente menos mulheres do que seria de desejar em cargos de liderança, porque ainda temos uma sociedade dividida por estereotipos e por papeis que cabem à mulher ou ao homem, mas já muitas mulheres provaram que não tem de ser assim. Quanto mais trabalho de equipa se conseguir fazer no casal, mais espaço teremos para que as mulheres apareçam nos lugares de chefia. Um dia destes ri-me sozinha porque percebi que tinha a lista das coisas que é preciso levar para o campo de férias, as dos medicamentos que é preciso comprar, a dos produtos que tinha de comprar para um jantar que ia dar em casa, tinha um diploma para rever, e um dossier para estudar. A nossa vida é isto! Para mim o mais importante é tudo na nossa vida poder acontecer sem tempos muito espartilhados, Ou seja, eu posso estar numa audiência com o senhor ministro a combinar com a minha empregada o que vai ser o jantar! Faço tudo ao mesmo tempo. Nós mulheres somos muito multitasking.
Estamos a evoluir positivamente para a paridade e se olharmos para as primeiras linhas de muitas empresas, antes dos conselhos de administração, vemos lá muitas mulheres. Basta ir às nossas universidades e ver o perfil dos estudantes. Agora é um movimento natural. O género feminino está, neste início do século XXI, a equipar-se para assumir muita liderança. O mundo vai evoluir, vai haver oportunidade de mudança e portanto não será preciso quotas. Daqui a 10 anos acredito que vamos ver muito mais mulheres em lugares de liderança e de chefia.
Qual é o próximo desafio? já se está a preparar para ele?
Por acaso ainda não. Sinto que estou aqui num ciclo longo, mas há sempre espaço para acrescentar. Gostaria de trabalhar no terceiro setor, onde há imenso por fazer, Mas não o sinto como o próximo passo, porque acho que há espaço para incluir isso na minha vida. Só não não sei ainda quando.
O SEU LADO SOLAR
Além dos três homens que mandam na sua vida (o marido e os dois filhos adolescentes) e da APED, Ana Isabel ainda arranja tempo para os seus interesses. Vinda de uma familia grande em que se valoriza o convívio, não estranha que diga que não há nada melhor do que uma boa conversa. Mas também gosta de cozinhar, de fazer caminhadas, de ouvir música clássica e continua a ir à opera sempre que pode. Mas é a leitura que recorre quando precisa de se “escapar” para mundos diferentes.