“No início era o espírito”, escreve o filósofo e historiador Gilles Lipovetsky, em O Luxo Eterno – Da Idade do Sagrado até ao Tempo das Marcas, em co-autoria com Elyette Roux. “O luxo não nasceu mecanicamente de um excesso de riquezas e de progressos tecnológicos no fabrico de objetos, requer um modo de pensamento de tipo religioso, um cosmos metafísico e mágico.” Hoje com uma conotação essencialmente materialista, não deixa de ser curioso o facto de se saber que, nos primórdios da humanidade, o luxo foi um fenómeno do espírito.
Prossegue aquele autor: “O luxo não começou com os bens de elevado preço, mas com o espírito de dispêndio: este precedeu o entesouramento das coisas raras. Antes de ser uma marca da civilização material, o luxo foi um fenómeno de cultura, uma atitude mental que se pode tomar por uma característica do humano-social, afirmando o seu poder de transcendência, sua não-animalidade”.
Pigmentos, ossos e plumagens
Apesar de viverem numa economia rudimentar, com um nível de vida rasando o estritamente indispensável à sobrevivência, os povos primitivos organizavam festas e adornavam-se com objetos que não tinham por função a satisfação de necessidades primárias. Na pré-história, os dois aspetos mais importantes da vida, eram a caça e a espiritualidade e, os xamãs, os primeiros líderes humanos conhecidos, faziam-se distinguir pelas vestes e pelos objetos com que ornamentavam: pigmentos, ossos e plumagens exuberantes.
Não praticar atos de generosidade e de dádiva era altamente criticável.
Acredita-se que o pensamento primitivo não concebia qualquer ideia que tivesse a ver com previdência, com o sentimento de posse ou guarda de bens para o futuro. O homem da Pré-história vivia o dia a dia e partilhava todos os seus haveres com a comunidade. O luxo, não representava fausto mas, essencialmente generosidade, mesmo em situações de menor abundância. Não praticar atos de generosidade e de dádiva era altamente criticável.
Ser avaro era como que anti-natural, pois dar e retribuir garantiam a ordem coletiva. A magnificência constituía um elemento aglutinador na sociedade. Este confronto ostentatório tinha a função de manter a coesão social através do espírito de partilha, criando as condições para que não houvesse a divisão ente ricos e pobres. As relações estabeleciam-se, pois, entre homens, e não entre os homens e as coisas.
O fausto legitimado pelo espírito
Mas não só entre homens. Também entre homens e espíritos, entre homens e deuses. Talismãs e outros objetos de culto e de prestígio específicos de cada cultura, eram oferecidos aos espíritos e aos deuses, visando uma contrapartida benéfica, tanto para os vivos, como para os mortos. O fausto, porque instrumento mágico e mediador no caminho do homem até à eternidade, estava, assim, legitimado por esta necessidade. Os objetos, por mais valiosos que fossem, não tinham valor económico. Consubstanciavam um enorme valor simbólico, um grande poder de origem espiritual, dada a natureza sagrada que assumiam como portadores de virtudes mágicas.
Certas tribos primitivas queimavam ou deitavam ao mar o que tinham de mais precioso.
O espírito de consumo esteve na génese do luxo. A festa era necessária para consumir os excessos e mostrar abundância, em autênticos duelos sem armas. Os gastos sumptuários eram, afinal, uma exigência da coletividade fundamentada em significações mitológicas. Certas tribos primitivas mais opulentas, que dispunham de bens preciosos, já cobiçados, rivalizavam entre si para ganhar ou manter o seu prestígio, gastando desmesuradamente, para se “fazerem grandes”, inclusivamente, queimando ou deitando ao mar o que tinham de mais precioso, afirma Georges Bataille, citado por Gilles Lipovetsky.
Os chefes granjeavam prestígio, e mantinham-no, através do consumo exagerado e da circulação dos bens, patrocinando festas e oferendas. O poder não estava em quem possuía coisas de valor. Ele residia no elemento social e espiritual indissociável da troca dádiva.
O slogan podia ser, nestas culturas sábias: “Gastar para não matar”. Relevava, contudo, o gosto do combate, ainda que de forma simbólica, na necessidade de ultrapassar o outro na grandiosidade da sua oferta.
A mulher sem luxos
Os comportamentos de prodigalidade eram terrenos reservados aos homens. A mulher, considerada inferior, não atingia o estatuto de líder, daí que fosse afastada desse papel. Não obstante, era reconhecida e enaltecida na sua função de mãe. A arqueologia regista que no Paleolítico existia uma religião primitiva, baseada no culto às mulheres.
Rochas Cro-Magnon em Les Eyzies apresentam conchas descritas como o “portal por onde uma criança vem ao mundo” cobertas por um pigmento vermelho ocre, simbolizando o sangue presente em cada nascimento, ligadas ao ritual de adoração às estátuas femininas que evidenciavam a função da mulher naquele período: procriar e amamentar.
Facilmente se intui que as transformações religiosas e políticas foram decisivas na história do luxo.
Outros capítulos do dossiê “A deslumbrante história do luxo”
Capítulo 1. Introdução: tudo o que luz é luxo
Capítulo 3. Antiguidade: o luxo torna-se ostentação
Capítulo 4. Idade Média: Esbanjar para impressionar