Filipa Tomaz da Costa integrou a equipa de enologia da João Pires Vinhos, hoje Bacalhoa Vinhos de Portugal, no início dos anos 80. Diz que teve a sorte de ter sido convidada por Ana Avilez Botelho Neves, uma das proprietárias da empresa, amiga dos pais, em 1981, para assistir a uma conferência sobre vinhos dada por especialistas franceses. O irmão desta, António Francisco Avilez, administrador da empresa na época, quando soube que Filipa Tomaz da Costa frequentava agronomia, perguntou-lhe se não queria fazer uma vindima. “Foi o que fiz, trabalhando com o enólogo Peter Bright”. Depois de terminar o curso, foi sua assistente durante dez anos, passando a diretora de enologia da empresa em Janeiro de 1993.
É hoje a enóloga portuguesa em atividade há mais anos. “Fui pioneira apenas por ter sido a primeira mulher a trabalhar no sector, tal como o foram as que frequentaram medicina e outras profissões 30 anos antes”, defende. Filipa Tomaz da Costa lembra-se que a mãe queria ser médica, mas não o foi por imposição dos pais. “Os meus avós acharam que não era um curso decente e ela teve de ser assistente social”, conta.
Oito milhões de litros de vinho
Esteve sempre ligada à mesma empresa, que apenas foi mudando de nome e proprietários desde que entrou, e hoje é de Joe Berardo. Apesar de defender que o percurso de um agrónomo o pode levar a qualquer ponto do país ou do mundo após o fim do curso, manteve-se em Portugal “um pouco por preguiça” e porque se tem sentido bem onde está. “Vivo meia hora a norte de Lisboa, e trabalho meia hora a sul de Lisboa. É fácil. É relativamente perto, estou perto de uma grande cidade, estou no campo.”
Olhando para trás, reconhece que o mundo do vinho era quase um exclusivo dos homens há 30 anos. As poucas mulheres da empresa integravam a área comercial ou laboratorial e nunca a produção. Era tão estranha a existência de uma enóloga, que os primeiros faxes que recebeu vinham dirigidos a Filipe, e não a Filipa. Era o princípio da mudança.
Hoje há muitas mulheres a fazer carreira em enologia, algumas com mérito reconhecido cá, e lá fora, devido à qualidade dos vinhos que colocam no mercado. Basta lembrar nomes como Sandra Tavares da Silva, Filipa Pato, Joana Maçanita, Rita Marques e Susana Esteban, só para dar alguns exemplos. A verdade é que, mesmo assim, dificilmente se conseguirá encontrar quem seja responsável pela produção de tanto vinho como Filipa Tomaz da Costa. Todos os anos são cerca de oito milhões de litros, das marcas JP, Quinta da Bacalhôa, Má Partilha, Cova da Ursa, Catarina. É toda a produção da Península de Setúbal do Grupo Bacalhoa Vinhos de Portugal.
Os “setúbais”
Depois de uma vida de trabalho, uma das coisas que hoje lhe dá mais prazer é ver a qualidade dos Moscatéis de Setúbal que produz, ou os “setúbais”, como gosta de referir, ser premiada em Portugal e no estrangeiro. E defende que foi, “com certeza”, essa a razão de ter sido considerada Enóloga do Ano, pela Revista Vinhos, há três anos.
“É sempre bom ter reconhecimento cá e lá fora, e os prémios são prova disso”, diz, explicando que os que são feitos na Península de Setúbal são mesmo diferentes. A casta usada, o Moscatel de Alexandria, é a mesma de regiões de Itália e Grécia, por exemplo, mas comporta-se de forma distinta no terroir delimitado pelos rios Tejo e Sado.
As vinhas da Bacalhoa Vinhos de Portugal dedicadas à produção do generoso de Setúbal estão plantadas em encostas viradas a norte, em terras da Serra da Arrábida. A sul, as escarpas viradas para o mar protegem-nas dos ventos quentes, amenizando o ambiente.
Durante o verão, mesmo quando as temperaturas chegam aos 30ºC durante o dia, o tempo arrefece sempre à noite. “Isso faz com que as uvas tenham uma maturação lenta, contribuindo para a manutenção dos aromas e da acidez natural do bago”, explica Filipa Tomaz da Costa, para quem a limpeza do vinho, da adega, a aguardente vínica são os factores que mais condicionam a qualidade dos Moscatéis de Setúbal.
Quando o processo de fermentação está terminado, após a adição da aguardente, estes vinhos ficam em contacto com as películas cerca de seis meses, para extração dos seus componentes. Em Janeiro/Fevereiro, vão para as barricas. Depois vão sendo provados ao longo dos anos, até ser tomada a decisão de engarrafamento. “Temos várias marcas, desde um novo, engarrafado aos 18 meses, e todos os outros, que têm mais idade”, diz a enóloga, acrescentando que “todos os nossos ‘setúbais’ passam por barricas usadas, usadíssimas, e o processo é semelhante ao dos vinhos de canteiro, na Madeira”, para aumentar a concentração dos aromas. É um método que reproduz aquilo que se passava com os vinhos torna viagem. Embarcados para serem comercializados em portos distantes, voltavam a Portugal com características distintas, mais complexas, apreciadas pelos consumidores de ontem e de hoje.
Tradição da casa
Para esta enóloga, é sempre bom ter na oferta da empresa algo que a distinga e caracterize, como são os Moscatéis de Setúbal ou o branco Cova da Ursa, por exemplo, vinho produzido com base em uvas da casta Chardonnay, fermentadas em madeira. É uma tradição da casa desde 1986. “É um branco de inverno, apropriado para um peixe mais forte ou uma carne menos pesada”, explica.
Mas uma empresa de grande dimensão como a Bacalhoa Vinhos Portugal, com 1200 hectares de vinha em diversas regiões do país, não sobrevive sem acompanhar as tendências de mercado. Agora, que já passou a fase dos vinhos com muita madeira, a tendência é para os mais frescos, com maior acidez natural. “No fundo, é como qualquer moda”, defende a enóloga.
Como é evidente, para acompanhar as tendências de mercado é necessário que a equipa de enologia se mantenha sempre informada e actualizada. Por isso, Filipa Tomaz da Costa prova muito, e aproveita todas as feiras de vinho em que a sua empresa participa para ver o que se vai fazendo pelo mundo.
Diz que teve a sorte de nunca ter trabalhado à moda antiga, porque a sua empresa estava equipada com as tecnologias modernas quando entrou. Mas acompanhou a evolução do sector, e considera que está muito melhor, em particular no que respeita aos vinhos brancos.
“Há alguns anos, apenas havia uma ou duas marcas de vinhos brancos portugueses com qualidade colheita após colheita”. Salienta o exemplo do Palácio da Brejoeira e alguns brancos da Estação Vitivinícola de Nelas, na Região do Dão. Mas diz que eram casos pontuais, porque os vinhos que surgiam no mercado não mantinha as características e qualidade de um ano para outro, nem com o tempo.
PERGUNTAS E RESPOSTAS RÁPIDAS
Quais são as principais virtudes que um enólogo?
Bom senso, bom senso, bom senso. É como em tudo na vida.
Qual é o seu tipo de vinho preferido?
Adoro brancos secos, se calhar por ter vivido sempre no Ribatejo, onde há grande tradição neste tipo de vinhos.
Fora de Portugal tem alguma região de vinhos de que goste em particular?
Adoro Borgonhas e St. Emilions brancos.
Qual a refeição que ficou na memória?
Numa altura em que vim da Vinexpo, em Bordéus, com o meu colega Vasco Penha Garcia e Jorge Paiva Raposo, administrador da empresa na altura, parámos em Madrid e fomos jantar ao Viridiana, que não conhecíamos. Quando chegámos, eram 10h da noite. O chefe de cozinha foi à nossa mesa, começou a abrir garrafas e servir pratos. Não tínhamos pedido nada, mas tivemos um jantar maravilhoso. Nunca mais me esqueci dessa refeição.