Sara Vicente Barreto é managing diretor no Morgan Stanley, banco onde está há 19 anos. Depois de se licenciar em Economia na Nova SBE, e antes de partir para Londres para trabalhar no Morgan Stanley, viveu durante quatro meses em Moçambique, onde desenvolveu trabalho como voluntária. A sua ideia era ser um projeto com principio e fim, mas tornou-se numa fase transformacional da sua vida, ao formar a ONGD Um Pequeno Gesto, Uma Grande Ajuda. “Hoje somos uma equipa apaixonada que todos os dias alimenta mais de 2500 crianças, que apadrinha 1000 afilhados, que constrói casas e que até já tem bolseiros universitários”, conta, com orgulho, nesta entrevista à Executiva.
Além da estratégia e gestão do Morgan Stanley e do projeto em Moçambique, a que dedica muitas horas e energia, tem o blogue, comunidade e podcast Make Space for Growth, centrado em mulheres.
A Economia é a área com que sempre sonhou?
A minha formação inicial é em Economia na Nova SBE. Mais tarde fiz um MBA na Harvard Business School. Quando era pequena queria ser “dona da empresa do pai e da mãe”’, por isso a área de Economia e Gestão fazem sentido. Durante uns tempos também considerei ser professora, mas não durou muito.
Desenvolveu grande parte da sua carreira fora de Portugal: na Alemanha, em Moçambique e Londres. Quais as principais etapas do seu percurso e o que a levou a sair?
É uma pergunta interessante e que me levou a pensar, já que cada etapa teve um papel diferente na minha carreira.
O meu primeiro estágio foi na Alemanha, numa altura em que os poucos que saiam íam para Londres. Lembro-me da surpresa da recrutadora quando me dispus a uma entrevista em alemão. Nesse verão foi a primeira vez que passei fora de casa mais do que umas semanas e a minha primeira experiência de trabalho. Não foi fácil, mas mostrou-me que estava disposta a seguir um caminho diferente.
Uns meses mais tarde, começou a minha jornada em Moçambique, que mudou toda a minha vida, criando a minha paixão pelo setor social e levando-me a criar a Um Pequeno Gesto, após o regresso.
Finalmente, Londres, a cidade onde desenvolvi a minha carreira e, de certa forma, a minha identidade. A mudança para Londres não foi muito pensada e planeada. Pensei que ia por um ano, só para experimentar, já que não tinha ideia de trabalhar em Finanças. Não arranjei trabalho em consultoria à primeira. Entreguei o meu CV à Morgan Stanley numa apresentação da faculdade, não me largaram e isso despertou a minha curiosidade. Depois de lá estar, o ambiente de trabalho, a cultura, os colegas, o tipo de trabalho cativaram-me e em vez de um ano passaram 17…
O que é que o MBA mudou na sua vida?
A experiência de MBA foi curiosa. Eu fui para MBA como um career break, incentivada por um dos meus mentores. Não fui com uma perspectiva de mudança, mas de experiência pessoal, e foi nisso mesmo que se tornou, mas muito mais.
Eu achava que já tinha feito quatro anos e meio de licenciatura e chegava de estudar, mas em Harvard ganhei uma nova vontade de aprender. O case method foi francamente inovador, já que eu tinha experienciado um método de ensino muito tradicional; ensinou-me a pensar de fora para dentro e a dissecar um problema de forma analítica, mas depois dar um passo atrás e procurar ter uma visão estratégica. Adicionalmente, desenvolvi ainda uma componente grande em cadeiras do setor social e estagiei em micro crédito durante o curso, o que para mim foi uma mais-valia enorme e uma fonte de grande satisfação pessoal.
Parece que nada mudou por causa do MBA, porque voltei para a Morgan Stanley. Mas, 18 meses depois, saí da área de M&A e estou, desde então, na área de estratégia e gestão, onde passo o dia a usar os skills que aprendi em Harvard, beneficiando também de uma auto-confiança profissional muito maior.
Tirando os dois anos de MBA, está desde 2004 no Morgan Stanley em Londres. Como evoluiu a sua carreira no banco?
A minha carreira já passou por alguns sítios diferentes no banco, com abrandamentos e acelerações diferentes. Comecei como graduate em Global Capital Markets, um ano como analista a descobrir o que era um trading floor, leveraged finance e private equity. 2004 foi um ano intenso nesta indústria, mas mesmo assim senti que não estava a por as mãos na massa o suficiente. Ao fim de um ano consegui mudar-me para banca de investimento ou M&A, onde trabalhei até ao MBA e no regresso do mesmo. Contudo, ao regressar vinha com uma visão muito mais alargada do que era a empresa e decidi que queria começar à procura de outra área no banco de que eu gostasse tanto como M&A, mas que fosse mais sustentável para a minha vida.
Foi nesse percurso que cheguei ao Office do CEO da Europa. Cheguei como único membro da equipa com a COO e fomos construindo a partir daí. Foi ótimo trazer práticas de advisory para dentro da gestão no banco e ter imensa liberdade para o fazer. Na altura eu era associada e comecei a sentar-me em boards e operating committees como observadora, já que parte do que fazia era preparar o que se passava lá. Foi durante o desempenho desta função que tive a minha primeira filha. Uns meses após o regresso achei que precisava de nova mudança.
Nesta mudança tornei-me deputy COO de Equities Sales & Trading para a Europa e, apesar de partes da função me serem conhecidas, recomecei de novo como VP. Valeu muito a pena. Estou em Equities desde 2014, tive o meu filho, e pelo caminho foram-me dadas várias oportunidades de crescimento, incluindo trabalhar com o chefe global da divisão e liderar novas equipas. Fui promovida a managing director em 2021, ainda em lockdown e depois de um ano a trabalhar de casa! E continuo a achar que o meu role muda com frequência e a carreira desenvolve-se com isso. Há dois anos fiz parte da equipa que conseguiu trazer um acelerador com foco em negócios liderados por mulheres ou minorias para a Europa como side business dentro do banco, pelo que as oportunidades continuam a estar lá!
Após 18 anos a trabalhar no estrangeiro, o que a fez regressar a Portugal?
Eu tinha saído só por um ano! O regresso a Portugal tinha estado sempre nas cartas, o meu marido também é português, pelo que facilitou o sonho. Por vários motivos, do país e nossos, fomos ficando. E o sonho nunca mais se tornava um plano, porque a pessoa estabelece toda a vida e quase que se habitua. Às tantas achamos que o longe é perto, porque Londres é aqui ao lado, e andávamos muito de um lado para o outro. O COVID lembrou-nos que a distância é muito real e que, de facto, não estávamos cá. Foi preciso decidir se o sonho ía alguma vez tornar-se realidade. Para mim a oportunidade era única, dado que o trabalho híbrido estava ainda a ser descoberto e eu criei a minha oportunidade de trabalho híbrido sem olhar para trás.
Como foi a adaptação no regresso ao nosso país e que principais diferenças sentiu na forma de trabalhar e liderar?
A parte interessante é que voltei e não voltei. Eu mantenho-me a trabalhar em Londres e vou cada duas semanas ao escritório, o resto do tempo trabalho em casa. Como tal, o meu trabalho mudou pouco e tenho tido pouco contacto com o mundo empresarial em Portugal. Por enquanto mantenho-me observadora, agora mais de perto do que antes e, claramente, com mais intenção.
A parte que voltou foi a pessoal, com os filhos cá, a família à volta, a perspectiva de reforçar laços de amizade ameaçados com o tempo e criar novos laços. E, claro, integrar-me de novo numa sociedade que é muito diferente, mais afectada por política, com um outlook económico difícil, e a tentar entender onde me encaixo.
Quais os principais desafios que enfrenta nas funções que actualmente desempenha?
As funções de chief operating officer têm um atractivo e um problema fundamental: nunca acabam. O scope da minha equipa é muito influenciado pelas preferências pessoais de trabalho, que normalmente envolvem estratégia, análises, melhorias de processos e novos projetos. A dificuldade é definir continuamente prioridades que nos mantenham focadas em adicionar valor ao negócio e solucionar os problemas mais urgentes. O meu dia a dia de trading floor não é passado nem em vendas nem em trading, mas a pensar no negócio e no que pode correr mal ou o que podemos fazer melhor. Parece (e é) giro, mas a lista é infinita. Pelo que a maior dificuldade é mesmo encontrar o whitespace que me permita, por vezes, desconectar-me do imediato e ter uma visão mais global para poder levar a equipa nessa direção.
Projetos de vida
O que a levou a criar o Make Space for Growth e quais os objetivos?
Desde criança que escrevo muito. Até cerca dos 20 anos era maioritariamente em poesia, mas quando fui para MBA uma amiga incentivou-me a escrever um blogue e partilhar um pouco as minhas experiências. Achei interessante, escrevi aqui e ali, mas não levei muito a sério até porque achava que ninguém queria ler.
Num dos momentos de reflexão acerca de sonhos e projetos inacabados (tenho sempre muitos), decidi começar a encurtar a lista. Tinha vários livros começados e decidi que podia ser escritora sem escrever um livro. Uma amiga ajudou-me a pensar como estruturar o blogue à volta dos meus pilares — corporate strategy, charity e working mum — e decidi começar, de uma noite para a outra. O conceito começou como um espaço para partilha de crescimento, já que somos todos animais em desenvolvimento. Foi também a minha forma de partilhar que, por trás do que se via por fora, havia decisões difíceis, prioridades, lutas interiores e muitas dúvidas.
Como escrevo em forma de reflexão, a autenticidade permeia o que publico. Passo mais tempo a falar dos desafios de carreira, maternidade e a vida em geral do que só em estratégia, mas não há um padrão, porque escrevo de forma espontânea. As pessoas começaram a agradecer, a comentar, a comparar (saudavelmente) experiências, ficando talvez mais descansadas porque não sou uma super mulher robot, sou apenas mais uma pessoa a tentar ser intencional sobre cada dia, com os seus cruzamentos e estradas sem saída! O blogue e a comunidade são para pessoas que acreditam que podem crescer com os outros e para os outros também.
E como nasceu o podcast?
O podcast foi uma coisa mais espontânea na altura da quarentena. Com tudo o que o COVID teve de negativo, teve também uma parte positiva — quanto mais não fosse a paragem, mas também a reinvenção de muita coisa. Eu estava frustrada porque não se falava do bom. A isso juntei a vontade de usar a minha pequena voz para dar voz a outras mulheres autênticas, trazendo também uma perspectiva de comunalidade no que estávamos a viver, entrevistando várias mulheres CEO à volta do mundo.
Tornou-se num fórum para demonstrar exemplos de liderança que não eram sempre os mais falados nas revistas, de pessoas que lideravam pequenos e grandes negócios, e dando a conhecer a profissional e a pessoa. Ainda faço e adoro, especialmente desde que estou mais envolvida com a promoção do empreendedorismo feminino, mas reduzi a intensidade porque não sou muito boa a convidar pessoas! Mas já tenho alguns bons episódios programados.
Organização e planeamento
Escreveu um artigo em que refere que o hábito que mais recomenda é o journaling. Porquê?
Journaling para mim começou com bullet journaling. Foi na sequência de um dia, antes de regressar da minha segunda licença de maternidade, em que olhei para uma lista interminável de afazeres, planos e sonhos numa folha (ou duas) e fiquei angustiada com a impossibilidade de o fazer quando livre (de maternidade, haha) e de ainda mais ser o caso quando voltasse a trabalhar. Quando me falaram do bullet journaling decidi experimentar, numa óptica de organizar o meu dia a dia, mas também de descarregar o meu mental load, que é a parte do trabalho das mulheres que não é muitas vezes partilhado. Foi um alívio e uma lição. Eu não levo o planeamento diário à letra, mas olhar para as semanas e escolher o que realisticamente poderia alcançar ajudou-me a ficar menos frustrada. Também fiquei menos preocupada, porque eu passava muito tempo a tentar não me esquecer de alguma coisa ou criar listas. Desde que tenho o journal, está tudo no mesmo sitio. E até adoptei um modelo semelhante de organização para o trabalho.
Mas o game changer foi mesmo a visão mensal, e o conceito de “fecho do mês” e preparação do próximo. Isso permitiu-me começar a perceber o quanto até tinha feito em vez de olhar só para o que me faltava fazer. Introduzi o meu próprio formato e todos os meses religiosamente escrevo uma lista de achievements. Prometo que não é uma coisa arrogante! É mesmo uma lembrança do que consegui fazer, desde se consegui ir buscar os miúdos à escola, se fomos a um jantar de amigos, se fiz exercício um par de vezes. É parte essencial da minha prática de journaling.
A segunda parte do meu journaling que é essencial, e que comecei cerca de um ano depois com um grupo de duas amigas, é a prática de gratidão. Todos os dias escrevo pelo menos duas ou três coisas pelas quais estou grata no meu dia. Não é pela comida, casa ou saúde, tem de ser mais específico e idealmente não se repetir. Grata que o meu voo não se atrasou (raro). Grata que fiz 15 minutos de ioga. Grata que o meu marido me foi buscar ao aeroporto. Grata por falar ao telefone com uma amiga. Grata por estar lá, quando o meu filho celebrou a queda do primeiro dente.
Está cientificamente provado que a gratidão impacta o nosso cérebro e contribui para a nossa felicidade. Sem dúvida que tem desde aí um impacto gigante na minha saúde mental. Atenção: eu admito que não sou boa a fazer todos os dias; às vezes passo dias sem escrever, mas vou sempre para trás e escrevo sobre cada dia, porque isso obriga a um momento de reflexão e de paragem no nosso dia, que às vezes pode ser a única coisa que nos faz respirar fundo. E como eu tenho imenso medo de perder memórias, ao menos fica nalgum lado um pequeno resumo do que se passou!
Cuidar dos outros
Ainda tem o projecto Um pequeno Gesto. Que grande ajuda sente que prestou a Moçambique?
A Um Pequeno Gesto Uma Grande Ajuda é uma ONGD que todos os dias toca vidas de crianças no Sul de Moçambique. Fundei a Um Pequeno Gesto em 2004, depois de uma experiência de voluntariado. Hoje somos uma equipa apaixonada que todos os dias alimenta mais de 2500 crianças, que apadrinha 1000 afilhados, que constrói casas e que até já tem bolseiros universitários. O meu orgulho é enorme quando olhamos para as estatísticas de falta de acesso à educação no país, mas também nos leva sempre a querer fazer mais. Apostamos muito na educação como base para quebrar o ciclo da pobreza, desde muito cedo nas pré-escolas, passando pela alimentação na escola, e apoio ao estudo e às bolsas mas também formação técnica para dar ferramentas que efetivamente permitam a cada criança, família e comunidade terem escolhas e saírem do ciclo da pobreza.
Enquanto role model para a sua filha de 10 anos, quais os principais ensinamentos que se preocupa em transmitir, relacionados com a sua futura vida profissional?
Ser mãe de uma filha é uma pressão enorme. Ser mãe no geral, aliás. Eu acho que entrei em modo auto-julgamento permanente desde esse dia: se bem que esse modo me era já bastante familiar!
Num bigger picture, as desigualdades de oportunidade são algo muito presente para mim, porque tive a sorte de passar ao lado de muitas delas, pelo que, como mãe que dá aos filhos um ambiente que reconheço como privilegiado, sinto a responsabilidade de eles entenderem que a vida não é igual para todos e a importância de aproveitar oportunidade e estar grato pelo que temos. Tento demonstrar-lhes felicidade nas pequenas coisas da vida; e mais nos momentos que nas coisas.
Na parte adicional de ela ser filha e futura mulher é engraçado, porque, na verdade, ela não tem uma ideia bem formada sobre se sou importante ou não no trabalho e achava que isso não lhe importava muito. Às vezes, ela queixava-se de eu não estar e não percebia aquele monstro do escritório, até que um dia a levei lá. Desde então, tudo lhe pareceu mais normal. Por isso eu não falava muito sobre o meu trabalho. Mas quando fui promovida na quarentena e foi o único dia em que tive de ir ao escritório (legalmente!!), ela questionou o porquê e o meu marido explicou como era um dia tão especial. Foi preciso ele dizer isso para eu pensar: é mesmo especial e a partir de hoje tenho a responsabilidade de lhe mostrar — a ela e outras mulheres — que é possível. Desde então, que lhe falo muito mais do trabalho, expliquei-lhe a percentagem baixa de mulheres em cargos como o meu. Também deixei de falar tanto no que “tinha” para fazer e mais no que “gostava” de fazer, para ela perceber o valor de encontrar uma profissão de que se gosta.
Fico sempre preocupada de dar demasiado importância a esta questão, porque não quero esta pressão sobre ela. Só quero que ela saiba que pode escolher e que vai ter de lutar por isso.
Cuidar de si
Há alguma coisa sobre si que as leitoras da Executiva devam saber e eu não perguntei? 🙂
Uma parte grande da minha partilha no blogue tem que ver com saúde mental. É um assunto ainda pouco falado, finalmente um pouco mais, desde a pandemia, mas que é prevalente, especialmente para mães que tentam dar o seu melhor em tudo — o standard de perfeição torna tudo mas difícil. É, para mim, essencial dar uma perspectiva autêntica, e não estaria a sê-lo se não o partilhasse: há quase 10 anos sofri de depressão e recorri a terapia. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida: não só porque me curou; na verdade tornou-me francamente melhor e mais confortável em admitir falhas, dizer que não, e claro, pedir ajuda. Não sou óptima ainda em qualquer destas características, mas estou mais alerta, e mais intencional com o que me rodeia.
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