Impacto da pandemia nas responsabilidades parentais

Patrícia de Jesus Monteiro, advogada e fundadora da PJM, alerta que a crise pandémica veio expor problemáticas em torno do cumprimento da regulamentação das responsabilidades parentais que, não sendo novas, fragilizaram muitas famílias e deram origem a novos litígios.

Patrícia de Jesus Monteiro é advogada e fundadora da PJM Advogados.

Patrícia de Jesus Monteiro é advogada e fundadora da PJM Advogados

 

É altura de olhar com “outros olhos” para o cumprimento do regime de responsabilidades parentais numa época de pandemia! E pensar sobre o que na verdade é mais saudável para as crianças! Esta é uma questão que preocupa, para além do legislador, os cidadãos, mas também a que mais os divide. A crise pandémica Covid-19 veio aumentar essas inquietações e expor problemáticas em torno do cumprimento da regulamentação das responsabilidades parentais que, não sendo novas, fragilizaram muitas famílias e deu origem a novos litígios.

Apesar desta situação, em tempos de pandemia e da declaração dos sucessivos Estados de Emergência, o legislador veio consagrar que a mesma não era um impedimento ao cumprimento das responsabilidades parentais, mantendo assim o direito de convívio da criança com os progenitores em termos de visitas, quer em regime de residência alternada, conforme fixado no prévio acordo dos pais, quer noutro regime que tenha por base a decisão do tribunal nos casos de falta de acordo.

O espírito do legislador teve na génese a manutenção do regime das responsabilidades parentais vigente (residência/convívios e pagamentos da pensão de alimentos), não sendo objeto de regulamentação específica, e esperou o bom senso da parte dos progenitores. À partida, estes saberiam o que era melhor para as crianças e, naturalmente, para a sua família. Mas confiar na capacidade de comunicação entre pais divorciados ou separados (há muitos progenitores que não têm qualquer tipo de comunicação) será uma esperança realista ou apenas uma ilusão?

Refiro por exemplo, em Itália, vários avós que ficaram com as crianças ficaram infectados com o Covid-19.

Realço também as seguintes situações com que as famílias se depararam: a mãe é médica e na habitação do progenitor residem os avós, não é um risco a criança ir para a residência da progenitora? O progenitor não tem meios informáticos, a criança vai perder as aulas on-line durante as semanas do pai? A mãe está a trabalhar o dia todo, quem irá dar apoio? O progenitor vive num concelho de risco extremo, vou mandar a criança para casa dele? A progenitora quer manter as aulas de música e os treinos de futebol, a criança deverá ir? O progenitor não paga a pensão de alimentos porque perdeu o emprego, devo aguardar ou apresentar queixa?

Estas novas circunstâncias geram um verdadeiro ‘vazio legal’ o qual foi aplicado como arma de conflito entre as partes.

Estas fragilidades levam-nos a perder a esperança nos princípios do bom senso e da auto-regulação da família, mostrando-nos que, em algumas famílias, nem sempre tudo correu pelo melhor. Estas novas circunstâncias geram um verdadeiro ‘vazio legal’ o qual foi aplicado como arma de conflito entre as partes. Assim, o aumento da litigância provocou incumprimentos parentais, que em alguns casos, conduziu a um dos progenitores a decidir e a impor unilateralmente um novo regime de responsabilidade parental ao outro, utilizando a pandemia como desculpa. Sucederam-se casos de não entrega das crianças, nos casos do regime de residência alternada ou de convívios com o progenitor não residente; falta de frequência nas atividades escolares e/ou extracurriculares; e, não pagamento da pensão de alimentos. Perante estas situações ocorreram um número crescente de progenitores que intentaram acções de incumprimento em Tribunal, no último ano. Na prática, os Tribunais foram incapazes de dar resposta, em tempo útil, a tanto litígio, nomeadamente nesta altura delicada, de crise, em que também eles foram afectados seja com o seu encerramento seja com a suspensão de prazos dos processos cíveis.

Na verdade, apesar da relevância da crise económica, ao nível familiar os incumprimentos não são justificados, mas os medos, por parte dos progenitores, são naturais e humanos neste contexto pandémico. Se o convívio coloca em causa a saúde pública, querer limitar as confraternizações com diferentes agregados para proteger a saúde do filho ou de familiares de risco, faz sentido!

A preocupação das famílias é compreensível. O apoio dos pais é fundamental no crescimento e desenvolvimento da criança, tanto a nível pessoal como social. E não sendo possível acautelar todas as situações e exceções que a pandemia provocou às famílias e aos respectivos acordos de regulação das responsabilidades parentais, o Estado devia ter reconhecido a fragilidade da situação e ter-se antecipado propondo alternativas atempadamente.

Não sendo as crianças um grupo de risco, stricto sensu, as consequências da pandemia vão muito além da saúde física. Assim, muitos psicólogos defendem que a saúde mental dos mais novos foi comprometida durante este ano e os processos provam que, muitas vezes, o superior interesse de algumas crianças foi posto em causa e a sua estabilidade emocional, já de si alterada pela mudança de tantas rotinas e hábitos, foi prejudicada.

O foco deve estar no superior interesse da criança protegendo-a sempre nos seus direitos e deveres. E o dia de hoje, Dia da Criança, deve fazer-nos reflectir sobre a Criança em si, sobre o ser humano que é, o qual deve ser respeitado e ouvido.

Gostaria de referir também, nos casos em que se aplica, a questão da Alienação Parental. De acordo com a Associação Espanhola de Neuropsiquiatria (AEN), consultada pelo Ministério de Saúde, Política Social e Igualdade de Espanha, veio acolher que o Síndrome de Alienação Parental (SAP) é uma resposta simplista a um grave problema que preocupa e sobrecarrega os casos de família e menores nos Tribunais. São argumentos pseudo-psicológicos ou pseudo-científicos que utilizam os progenitores em litígio pela custódia dos filhos.  A AEN fundamentou que medicalizar uma luta pela custódia de um filho, supõe um abuso da utilização dos pareceres e investigações psiquiátrico/psicológico que evita, assim, considerar o papel que também tem no conflito o outro progenitor que é considerado vítima do “alienador”. A AEN conclui que o uso da Alienação Parental como argumento é perigoso, porque leva a ignorar as queixas ou acusações da criança (e do progenitor(a)) de maus tratos ou abuso. O risco de menosprezar as queixas da criança deixando-a em mãos de um progenitor eventualmente agressor, por classificá-las como um sintoma mais do SAP, é muito alta.
Relativamente a esta questão a Associação Espanhola de Neuropsiquiatria conclui que o SAP não tem qualquer fundamento científico e a sua aplicação nos processos judiciais tem graves riscos nas crianças e famílias.

Ora, referindo o art.3º da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de Novembro de 1989, cito:

I – Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.
II – Os Estados Partes comprometem-se a garantir à criança a protecção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.
III – Os Estados Partes garantem que o funcionamento de instituições, serviços e estabelecimentos que têm crianças a seu cargo e asseguram que a sua protecção seja conforme às normas fixadas pelas autoridades competentes, nomeadamente nos domínios da segurança e saúde, relativamente ao número e qualificação do seu pessoal, bem como quanto à existência de uma adequada fiscalização.

Neste sentido, o foco deve estar no superior interesse da criança protegendo-a sempre nos seus direitos e deveres. E o dia de hoje, Dia da Criança, deve fazer-nos reflectir sobre a Criança em si, sobre o ser humano que é, o qual deve ser respeitado e ouvido.

A regulamentação do exercício das responsabilidades parentais é obrigatória sempre que os progenitores não vivam como casal (indiferente se foram casados, estiveram em união de facto ou nunca tenham vivido juntos), ainda que possam residir na mesma habitação, consubstanciando-se a mesma no seguinte:

  1. A residência/guarda do filho: esta pode ser estabelecida relativamente a um dos progenitores ou a ambos (residência ou guarda alternada);
  2. O exercício das responsabilidades parentais, em regra, caberá a ambos os progenitores e refere-se a todas as questões de particular importância para a saúde, bem-estar e desenvolvimento da criança;
  3. A pensão de alimentos: a contribuição de cada um dos progenitores, para fazerem face a estas despesas, será proporcional à sua capacidade económica pelo que poderão dar lugar a contribuições diversas e adequadas aos rendimentos de cada um.

Se houver concordância em relação a todos estes aspetos, os progenitores podem apresentar por escrito o acordo, para efeitos de homologação em qualquer Conservatória do Registo Civil ou no Tribunal de Família de Menores na área de residência da criança. Caso não haja acordo entre os mesmos, deve ser proposta uma ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais junto do Tribunal de Família e Menores da área de residência. Sempre que ocorram circunstâncias supervenientes relativas a alguns dos aspetos já regulados, qualquer uma das partes, ou a pessoa a quem tenha sido confiada a criança ou ainda o Ministério Público, pode propor ao abrigo do art. 42º do RGPTC a alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais. A alteração pode ser requerida no Tribunal, com competência em matéria de família. Se um dos pais, ou a pessoa que está responsável pela criança, não cumprir com o que tiver sido acordado, o Ministério Público ou o outro progenitor deve reportar o incumprimento ao Tribunal. É este que tomará as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso.

Quando todas estas questões são polémicas e contraditórias nas famílias, conjugadas com as dificuldades económicas e financeiras agravadas pela crise, muitas são as pessoas que estão em estado de insolvência nem têm capacidade física e mental para gerir a vida familiar. Ou seja, é quase impossível dissociar e separar as questões porque a “família” abrange várias áreas: pessoal, parental, social e económico. São limites muito ténues.

Importa assim concluir que, pela necessidade da salvaguarda da saúde pública e pela necessidade de se evitar a propagação da doença, torna-se imperioso ponderar na suspensão dos convívios com um dos progenitores.

 

 

 

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