A misoginia, a incivilidade e o protocolo

João Micael, especialista e consultor em protocolo, escreve sobre as falhas de protocolo de que Ursula von der Leyen tem sido vítima.

oão Micael é especialista e consultor em protocolo e diretor da Academia de Protocolo.

João Micael é especialista e consultor em protocolo e diretor da Academia de Protocolo

 

Pela segunda vez Ursula Von der Leyen foi alvo de um ultraje pessoal e institucional em pleno desempenho das suas altas funções de Presidente da Comissão Europeia.

Recordemos o lamentável “Sofagate” – incidente ocorrido aquando da visita oficial à Turquia, no dia 6 de Abril de 2021, do Presidente do Concelho Europeu, Charles Michel e da Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen.

Aquela visita foi enodoada, perante os olhos atónitos do Mundo, por uma grave falha protocolar – a Presidente da Comissão Europeia não foi dignificada no seu alto cargo, ao ter sido relegada para um lugar secundário, não tendo sido provido um assento ao nível do anfitrião e do Presidente do Concelho Europeu. A sua posição hierárquica havia sido ignorada à luz das precedências oficiais.

 

sofagate na Turquia

Não obstante, o Ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Cavusoglu, tenha apresentado como defesa em causa própria que a disposição dos lugares dos visitantes havia acatado as sugestões provenientes de Bruxelas durante a reunião dos serviços protocolares das entidades envolvidas; a verdade é que a equipa da União Europeia (não se sabe se do Conselho Europeu, da Comissão Europeia ou de ambos) declarou não ter tido acesso à sala onde decorreria o encontro, e por tal razão não poderia ter tido conhecimento da disposição, tipo e número de assentos disponíveis para ordenar convenientemente os convidados e o anfitrião, Recep Tayyip Erdoğan.

Em norma, a disposição dos lugares estaria correcta não fora a falta de tacto e a inobservância do facto da Presidente da Comissão Europeia ter sido excluída dos lugares principais, enquadrados pela bandeira nacional turca e pela bandeira oficial da União Europeia. De facto, Ursula von der Leyen foi relegada a um lugar inferior, geralmente reservado aos elementos da comitiva que acompanha a Alta Individualidade visitante. Perante a disposição apresentada esta foi rebaixada hierarquicamente ao nível do Ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Cavusoglu, sentado à sua frente e ao lado esquerdo do Presidente Turco.

O Presidente do Conselho Europeu e a Presidente da Comissão Europeia presidem a instituições autónomas, sendo a Comissão Europeia institucional e politicamente independente; ambas possuem estatutos próprios, não existindo nenhuma subalternidade entre si. Portanto, Charles Michel e Ursula von der Leyen ocupam ambos altos cargos de igual nível oficial, enquanto visitantes oficiais em qualquer parte do mundo. Simplesmente, detêm posições distintas na hierarquia do aparelho oficial da União Europeia; por tal, o Presidente do Conselho Europeu precede hierarquicamente a Presidente da Comissão Europeia, mas não inferioriza a sua categoria ou importância.

Assim, o gabinete do protocolo do Estado turco, em sintonia com a equipa europeia, deveriam ter antecipado um potencial constrangimento protocolar e diplomático, montando uma “mise en scène” com uma disposição adequada dos lugares: um único cadeirão central, ladeado pelas bandeiras da Turquia e da União Europeia, que seria ocupado pelo Presidente Turco. Esta colocação do lugar principal, ao assumir plenamente a presidência do encontro teria eliminado o factor diferenciador e subalternizante entre os convidados, mantendo-os ao mesmo nível e em correcta ordem de precedência no sofá à sua direita. À sua esquerda estaria, então, o Ministro dos Negócios Estrangeiros turco.

Este seria um cenário perfeitamente adequado, porquanto os visitantes não sendo chefes de Estado ocupariam os lugares de honra concedidos pelo Chefe de Estado anfitrião e não haveria uma única partilha de presidência.

Por não ter sido previsto este cenário foi provocado um indesculpável embaraço protocolar e diplomático a Ursula von der Leyen e à própria instituição à qual preside e cujo estatuto foi diminuído; tendo tido como resultado uma cadeia de reacções negativas por parte dos principais responsáveis da União Europeia perante este episódio de indelicadeza oficial e acusação de misoginia à Turquia e às suas instituições. Principalmente, por ter sucedido pouco tempo depois de a Turquia ter abandonado a convenção global de prevenção da violência contra mulheres e crianças.

 

O incidente de protocolo na Cimeira União Europeia/União Africana

Em 2022, Ursula Von der Leyen é novamente desrespeitada protocolarmente, desta vez com contornos mais acintosos – a Presidente da Comissão Europeia é ostensivamente ignorada pelo General Jeje Odongo, ministro dos Negócios Estrangeiros do Uganda.

Esta aberrante cena ocorreu na VI Cimeira União Europeia/União Africana, realizada em Bruxelas nos dias 17 e 18 de Fevereiro, foi presidida pelo Presidente do Concelho Europeu e pelo Presidente do Senegal e da União Africana, Macky Sall.

A Cimeira teve como agenda o investimento financeiro comum a longo prazo em África de 150 mil milhões de euros. Este investimento ajudará a construir economias mais diversificadas, inclusivas, sustentáveis e resilientes. O pacote de investimento visa dinamizar o investimento público e privado em diversas áreas: energia, transportes e infra-estrutura digital, transição de energia verde, transformação digital, crescimento sustentável e criação de emprego decente, transportes, saúde e educação.

À chegada os representantes dos diversos países participantes na Cimeira receberam cumprimentos protocolares de boas-vindas pelo anfitrião, Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu, antecedido na fila por Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia, seguido por Emmanuel Macron, Presidente de França, posando de seguida para os órgãos de comunicação social.

Quando chegou a sua vez, o ministro Jeje Odongo ignorou a Presidente da Comissão Europeia – a primeira na fila de cumprimentos – dirigindo-se em primeiro lugar a Charles Michel e a Emmanuel Macron. Só se dignando a cumprimentar Ursula von der Leyen após ter sido discreta e elegantemente advertido pelo Presidente Francês para a presença da Presidente da Comissão Europeia; e mesmo assim apenas a cumprimentou com um breve aceno de cabeça sem a cumprimentar com um aperto de mão, tal como havia feito com os dois homens presentes. Aliás, após este lamentável episódio, Jeje Odongo na sua publicação no Twitter somente usou as imagens de Charles Michel e Emmanuel Macron.

O actual Ministro dos Negócios Estrangeiros do Uganda foi Ministro de Estado da Defesa (2009 a 2016) e da Administração Interna (2016 a 2022), Master of Arts em Relações Internacionais e Diplomacia da Universidade privada de Nkumba, professa o credo muçulmano que, entre outras coisas, não reconhece um papel igualitário às mulheres. Não obstante este pormenor, Jeje Odongo deveria estar consciente da extraordinária importância desta Cimeira que irá investir grandemente no continente africano, optando por uma postura mais cordial e respeitadora para com os seus anfitriões, não hostilizando tão flagrantemente as mulheres dispensando-lhes um tratamento considerado cultural e socialmente ofensivo pelas pessoas e instituições que o recebem; e, sendo formado em Relações Internacionais e Diplomacia e com tão longa experiência governativa, não deve optar por malquistar, devido às suas convicções religiosas ou outras, as individualidades que poderão condicionar negativamente as relações com o seu país.

Mas, o que realmente se realça nestas inqualificáveis ocorrências foi a indiferença demonstrada por Charles Michel – quiçá por não possuir sentido de Estado e aptidão social para o alto cargo que ocupa -, jamais esboçou, nas duas situações, qualquer gesto de claro e inequívoco desagrado perante tão impróprias condutas, chegando mesmo a ser amesquinhado pelo contrastante exemplo do charme gaulês do presidente francês que amenizou o ambiente ao indicar discretamente ao incivil político Ugandês a sua falha e que deveria cumprimentar a Presidente da Comissão Europeia.

Esta atitude de claro desconhecimento e óbvia falta de tato e desconhecimento das normas protocolares e sociais verifica-se, infelizmente, em muitas personalidades que ocupam cargos de relevância oficial e institucional.

 

A falha protocolar em Portugal

Em Portugal ocorreu um episódio que é bem o exemplo desta realidade, e curiosamente, envolveu, também, Ursula von der Leyen, aquando da sua visita a Lisboa em Setembro de 2020.

O Presidente da República Portuguesa convidou a Presidente da Comissão Europeia a co-presidir o Conselho de Estado, no Palácio da Cidadela de Cascais. À entrada de Marcelo Rebelo de Sousa e de Ursula von der Leyen, na sala onde estavam já sentados à mesa do Conselho, nenhum dos Conselheiros de Estado prestou a devida deferência pelo estatuto das Altas Individualidades que aí entravam, levantando-se em sinal de respeito; exceptuando Leonor Beleza, que ainda esboçou um tímido gesto para se levantar, mas olhando em seu redor e verificando que todos permaneciam imóveis, manteve-se sentada… “À tout seigneur tout honneur”.

Adverte-se os gabinetes de protocolo das várias instituições da União Europeia que de futuro, prevejam semelhantes situações, acautelando todos os interlocutores e respectivos gabinetes sobre os procedimentos protocolares a observar.

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