Patrícia de Jesus Monteiro é advogada e fundadora da PJM Advogados
No passado dia 11 de Setembro de 2021 homenageou-se os 20 anos desde a fatídica data dos atentados terroristas cometidos pela rede jihadista de Al Qaeda, a 11 de setembro de 2001. O sentimento de ameaça e insegurança atingiu o mundo inteiro. O atentado às Torres Gémeas de Nova Iorque, do World Trade Center, foi transmitido em direto pelos media, visto por milhares de pessoas, mas era como se de um “filme” se tratasse, ou seja, ninguém queria acreditar no que estava a acontecer; fomos todos apanhados de surpresa! Ninguém ficou indiferente! Iniciou-se aqui uma série de atentados terroristas, ao longo do tempo, comprometendo a segurança de todos a nível mundial. Culminou com o último episódio terrorista, no Afeganistão, em Agosto do corrente ano, recordando-nos o medo, a instabilidade e a insegurança.
O terrorismo fez com que a segurança fosse percepcionada, no séc. XXI, como uma área primordial para todos, além de ser um direito fundamental, e foi constituído como uma área do direito. O direito da segurança tem assim como princípio reestabelecer os poderes do Estado e de outras entidades jurídico-públicas (supra e infra-estaduais) na sua relação com os cidadãos, bem como conciliar as múltiplas estruturas de segurança, que se redimensionaram em função do novo conceito de segurança humana.
A Guerra do Afeganistão teve uma fase de guerra civil afegã, que opôs, inicialmente (de Outubro a Novembro de 2001), os EUA, com a contribuição militar da organização armada muçulmana Aliança do Norte e de outros países ocidentais da NATO (como Reino Unido, França, Canadá e outros), ao regime talibã. A invasão do Afeganistão, liderada pelos americanos, teve início a 7 de Outubro de 2001 à revelia das Nações Unidas, que não autorizaram uma ação militar no território afegão. O objetivo declarado da invasão era encontrar Osama Bin Laden e outros líderes da Al-Qaeda, destruir toda essa organização e remover do poder o regime talibã. Pode-se dizer que a primeira etapa da guerra foi bem-sucedida para a NATO. No entanto, ao longo dos anos, o Afeganistão teve várias ameaças à sua estabilidade, a actividade dos talibãs aumentou, o governo estava frágil e com controlo limitado fora de Cabul. Assim, vinte anos mais tarde, em 2021, o conflito terminou com a retomada dos fundamentalistas do povo talibã ao poder.
Uma vez que esta guerra teve tem implicações a nível mundial nas áreas política, económica e social, é inevitável questionar-se as responsabilidades políticas das nações/ países que lideram as iniciativas. A responsabilidade é individual?
Atualmente, revive-se a fase terrorista que tanto preocupa os líderes mundiais. Mantém-se a curiosidade em perceber a razão dos factos, no entanto, é-se invadido por uma tristeza, uma frustração e uma impotência perante aqueles seres humanos que sofrem e perdem todas as suas liberdades a uma velocidade atroz. Decorridos 20 anos de controlo do território afegão, os países da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) abandonaram, sem escrúpulos, o país que era dependente (economicamente) de subsídios e ajudas internacionais e instável nas mãos dos talibãs. Estes são um grupo terrorista radical, não totalmente unido nem homogeneizado, susceptível de gerar uma excisão mais radical no sentido de vir a liderar ou a fazer uma oposição violenta no país. Esta saída abrupta prejudica ainda mais o território, visto que o Afeganistão torna-se assim num país com um futuro social instável, por exemplo, no caso do respeito aos direitos humanos.
O início da entrada dos aliados no Afeganistão
Este país foi sempre o foco de atenção e de interesse internacional ao longo de toda a sua história devido à sua prestigiada localização (situado na Ásia Central, a qual tem fronteiras com países geoestratégicos, como a China ou a Índia, e o acesso ao Oceano Índico). Por esta razão, o Afeganistão foi invadido, em diversos momentos, por potências externas.
Desde Ciro o Grande aos britânicos, aos gregos, aos árabes e aos mongóis, todos tiveram sempre como objetivo o controlo da região. Em várias ocasiões, os ingleses e os russos tentaram apoderar-se do país; por um lado, a Rússia queria controlar o Oceano Índico e, por outro, a Inglaterra queria evitar a expansão do país soviético para a Índia. Em 1921, a Rússia finalmente conseguiu o seu objetivo o que, obviamente, desagradou a Inglaterra pois esta queria proteger uma fonte muito importante de riqueza nacional, como é o caso da Índia.
Durante a vigilância soviética do país árabe, o rei Amanulah tentou modernizar o país a partir do exemplo da Revolução Russa, de 1917, e da turca encabeçada por Mustafá Kemal Atatürk. Nesse sentido, a sua política ocidentalizada implantou direitos nunca antes conquistados: o ensino misto e a supressão da obrigatoriedade do uso do véu nas mulheres.
No entanto, em 1929, Londres promoveu um golpe de estado que destronou o monarca, numa atitude vingativa e de resposta ao controlo do país pelos russos. A partir desta data o quotidiano tornou-se verdadeiramente difícil:
- Os sucessores de Amanulah opuseram-se fortemente a qualquer tentativa de reforma, económica ou social.
- No início dos anos 70, o rei Zahir foi deposto pelo seu primo, o príncipe Mohamed Daud: proclamou a república e tornou-se o novo presidente, mas em vez de fazer mudanças, despertou o descontentamento popular com a sua arbitrariedade.
- Com o homicídio de Mohamed Daud, em 1978, os comunistas afegãos aproveitaram a oportunidade para tomar o poder. Durante este período, as mulheres recuperam os seus direitos, perdidos há mais de 50 anos, foram alfabetizadas e os professores/técnicos (que o país tanto precisava) receberam a formação necessária. Graças a este investimento, houve uma redução considerável do analfabetismo, tanto masculino como feminino. Porém, a nível espiritual, “o Governo falhou” ao impor uma ideologia ateísta, sem ter em consideração as origens religiosas da sua população. Além do profundo desastre que foi a reforma agrária, a qual colidiu com as estruturas feudais, o desgosto social foi confrontado com a perseguição política dos comunistas à oposição provocando uma escalada de violência, insustentável, entre o Governo comunista e os vários grupos rebeldes.
A génese dos talibãs
Perante a situação que o país vivia (perda e queda do seu “grande tesouro geoestratégico”), no início dos anos 80, a União Soviética enviou as suas tropas para evitar o colapso do regime ocupando, assim, as principais cidades do Afeganistão em poucas horas.
Ao assistir ao controlo rígido e incessante da grande potência russa, o presidente americano Ronald Reagan decidiu iniciar as negociações com os grupos anticomunistas afegãos, os chamados muyahidines (atualmente denominados Talibãs), para lhes dar assistência na sua guerra contra a invasão soviética. Foi um momento determinante, em que russos e americanos combateram pelo controlo do poder, no mesmo espaço. Após a saída da Rússia do país em meados dos anos 90, os muyahidines iniciaram uma guerra civil que culminou com o surgimento do grupo talibã; este tinha como principal objetivo governar de acordo com a lei da Sharia (princípios governativos interpretados a partir de uma visão muito conservadora do Corão) e conseguir que o país abandonasse o cenário de guerra e caos em que se encontrava.
Após a aliança e sob a atenção das principais potências mundiais e do governo talibã, já instaurado na última década do século XX, grupos terroristas como Al-Qaeda prepararam e realizaram vários atentados terroristas, contra a embaixada e os militares americanos, sem nenhum tipo de represálias pelo governo afegão. Em 1996, os EUA, já incomodados pelas consequências das alianças feitas para expulsar os soviéticos da região e, em conjunto com os aliados, afastam os talibãs do poder. Estes fogem para outras regiões do sul do país, nomeadamente, o Paquistão (país que apoiou os talibãs durante a guerra contra os EUA) e o Irão.
Intervenção internacional justificações e discursos políticos
Com a catástrofe do 11, de Setembro de 2001 o cenário internacional deu uma volta de 180º. Um mês após o atentado, onde faleceram 2.983 vítimas, o Presidente Jorge Bush, anuncia uma ofensiva militar americana, perante a recusa dos talibãs em entregar o Osama Bin Laden. Neste sentido, os EUA iniciaram a missão militar no Afeganistão, com uma operação antiterrorista e de segurança nacional.
Um ano após o início da missão antiterrorista no país árabe, o presidente George Bush apresentou uma posição que alterou completamente a motivação da última invasão militar, isto é, passou de uma operação antiterrorista para capturar Osama Bin Laden para o que os americanos apelidaram de “nation building” (construção de nações/ democracias). Os objetivos dos americanos passaram a ser: ajudar o governo afegão a conquistar a estabilidade, construir forças armadas fortes e com grande capacidade de resposta e promover a educação das crianças e jovens.
Ou será que o presidente George Bush queria apenas manter o controlo do território perante a ameaça do controlo soviético e dos terroristas talibãs ou Al-Qaeda?
Durante este período de ocupação ocidental verificaram-se algumas alterações, que são: as raparigas passaram a frequentar as escolas para além dos 10 anos de idade; as taxas de educação aumentaram, tanto no ensino primário (7-12 anos) cerca de 80% como no secundário cerca de 30%; as mulheres passaram a sair à rua sem acompanhamento de um homem da família e exercerem a sua profissão; os meios de comunicação foram recuperados; a economia melhorou (apesar de estar completamente dependente de ajudas externas); e, muitas células terroristas antiocidentais foram desactivadas.
A crónica de um desastre anunciado — a saída das tropas do Afeganistão
Após o último mandato do presidente Bush, importa lembrar que, na verdade, foram três os presidentes que apoiaram a saída dos EUA do Afeganistão, ou seja, não se tratou de um ato isolado. O primeiro foi Barack Obama, aconselhado pelo vice-presidente Biden e estabelecendo como data limite o ano de 2011, ordenou o maior envio de tropas para o Afeganistão; no entanto, alterou o discurso, afirmando que a estratégia era cessar as responsabilidades assumidas em benefício do governo e das tropas afegãs.
Inicia-se assim a saída do país. Será que havia condições?
Quando Osama Bin Laden morreu em 2011, no Paquistão, o presidente Obama reduz o número de tropas no território afegão e adia a data limite de saída de 2011 para 2014, sugerindo negociar com os talibãs, isto é, realizar acordos económicos com o governo afegão e fornecer apoio às suas forças armadas.
Já em 2011 a NATO cedeu segurança e protecção do território árabe ao governo focando-se exclusivamente na formação militar e no combate ao terrorismo, permitindo o avanço talibã e o de outras organizações terroristas. Perante o avanço das mesmas, a data de saída é de novo adiada para 2016 e o presidente Obama saí da Casa Branca deixando 10 mil efectivos no terreno para se encarregarem da formação das forças armadas nacionais, de modo a controlarem o lugar estratégico do Afeganistão e coordenar as operações antiterroristas no norte de África.
Donald Trump, o segundo presidente a apoiar a saída do Afeganistão, reconheceu que era uma decisão difícil e que uma saída célere poderia ter consequências inaceitáveis após os compromissos adoptados com o governo afegão. A saída deveria ocorrer sem uma data específica e ter sempre em conta as condições do terreno. Este presidente iniciou negociações de paz com o governo afegão, mas sem qualquer sucesso. Pelo contrário, com os talibãs, obteve acordo relativamente à sua não colaboração com grupos terroristas e a permissão para retirar as tropas até 2020. Após ter perdido as eleições, o presidente Donald Trump retira 2500 militares do terreno e estabelece, perante os talibãs, o mês de maio de 2021, como data limite para a saída dos EUA. A retirada destas tropas aumentou e os talibãs avançaram no terreno; o governo afegão foi incapaz e, na verdade não estava preparado, para enfrentar esta ameaça sozinho.
O presidente Biden, o terceiro, iniciou o seu mandato em novembro de 2020, com a promessa eleitoral da retirada das tropas do Afeganistão, após 20 anos de ocupação, consciente de que não seria fácil. Acorda assim a prorrogação da data de saída até setembro de 2021. Manteve, publicamente, a convicção de que tudo ia correr bem, uma vez que o exército afegão, altamente treinado e equipado pelos países ocidentais, era composto por 300 mil militares e o exército talibã apenas tinha 75 mil.
Falta de previsão ou pura estratégia
Os serviços de informação reiteraram os avisos de perigo e tentaram responsabilizar os líderes da NATO; informaram que as forças militares afegãs estavam exaustas de lutar numa guerra sem fim (que matava 57 afegãos por dia) e que a guerra visava apenas manter um governo corrupto. Estas circunstâncias prejudicaram a moral dos militares, reduziram o número de efetivos fiéis à causa, perante a cobardia e a falta de honestidade dos seus líderes. Os ataques de drones militares da NATO provocaram vítimas colaterais civis (segundo os estudos, 9 em cada 10 ataques provocou mortes inocentes). A título de exemplo, no dia 29 de agosto de 2021, morreu uma família inteira de 10 membros inocentes, sem vínculos terroristas, dos quais 7 eram crianças. Estes factos servem de escudo ao discurso do presidente americano, onde afirma que os americanos não iriam participar numa guerra que nem os próprios afegãos estão dispostos a lutar. Além de que em 20 anos os americanos não souberam criar condições e soluções para o Afeganistão de modo a evitar a sua total dependência (mesmo após o investimento de 2 bilhões de dólares e colocado 800 mil efetivos).
Os talibãs nunca estiveram sozinhos — financiamento, recursos e apoios internacionais
Importa esclarecer que, durante mais de vinte anos, o grupo talibã foi financiado pelos americanos e aproveitou os “restos” de material bélico russo. Mais recentemente, a maior parte dos recursos de que dispõem são oriundos do contrabando de ópio e da extorsão da população (exigem dinheiro em troca de proteção). Possuem também apoio de outros países, como é o caso do Paquistão, que enviou o seu exército para ajudar os talibãs na conquista de Panjshir e Qatar (onde se refugiou o líder talibã até à constituição do governo).
Cumprindo-se o profetizado pelos serviços de informação, os talibãs conquistaram Cabul no dia 15 de Agosto do corrente ano e o presidente Ashraf Ghani abandonou o país no mesmo dia que os talibãs entraram no palácio presidencial. Deixando como último resquício de liberdade a região de Panjshir (apesar de reconhecer que sem o apoio da NATO não podiam ganhar a guerra), o território afegão suportou ainda três semanas após a conquista de Cabul.
Esta última fase vingou não só para os talibãs como também para grandes potências mundiais, devido aos interesses geoestratégicos e ao conflito que a China tem com os uigures (comunidade muçulmana na China). Os talibãs sempre possuíram interesse em controlar o território ou, pelo menos, fazer frente aos países ocidentais. Interesses que foram previstos por Bin Laden pois preconizou que os talibãs iriam conquistar o Afeganistão e que o maior aliado seria a China e, assim foi: recentemente o líder talibã reconheceu a maior potência asiática como o seu maior aliado. O apoio dos países contíguos, inclusive o das grandes potências como a China foi deveras decisivo, tanto que os próprios talibãs convidaram os representantes de países como a China, a Rússia, o Paquistão, a Turquia, o Irão, o Qatar, entre outros, a assistirem à cerimónia de tonada de posse do novo governo, “The Islamic Emirate of Afghanistan”. Este novo contexto da Ásia Central causou nos países contíguos a “talibanização do Paquistão” (denominado pelos historiadores), por exemplo, em Islamabad foi içada a bandeira do Emirato e foi reclamada a implementação da lei Sharia. Outra das consequências para o Irão foi a entrada de 5000 afegãos por dia, durante as últimas semanas, ponderando-se a possibilidade do encerramento das fronteiras.
Quais as consequências do Ocidente abandonar os afegãos?
Sociedade
Decorridos 20 anos no Afeganistão, os países ocidentais acabaram por ficar cercados num aeroporto que dependia da segurança exterior dos talibãs, nomeadamente do grupo do Haqqani. Perante esta situação, previsível para a CIA e para o Pentágono, mas não para os governos ocidentais, muitos aliados acabaram por ficar no país (segundo o Secretário de Estado Americano, entre 100 a 200 pessoas aliadas ficaram no país, mas a estatística é duvidosa). Verificou-se também que 600 estudantes, familiares, trabalhadores da American University of Afganistan esperavam ser evacuados no dia 29 de agosto de 2021; no entanto, o exército americano informou que já não iam descolar mais voos civis. Enquanto que, os talibãs já sabiam que os mesmos estavam na “lista negra” de colaboradores com o ocidente. Os aliados durante cerca de 20 anos, ficam assim ao ”Deus dará” mesmo tendo arriscado a sua vida, por uns valores de prosperidade e de democracia, promovidos pelos países da NATO, e principalmente, pelos EUA.
Atualmente, apesar da conversação dos líderes talibãs com o governo afegão ou com os governos da NATO, assiste-se à perseguição de juízes, procuradores, jornalistas, estudantes ou qualquer cooperante e respetivas famílias e, como em todas as guerras, as consequências não são iguais para homens e para mulheres. Os homens são executados e as mulheres ou são lapidadas ou são obrigadas a exercer funções de escravas sexuais ao serviço dos talibãs. Além das nefastas consequências para os aliados da NATO, os homens são obrigados a usar barba comprida e proibidos de usarem roupa ocidental (por exemplo, jeans). Há que ressalvar a posição atual das mulheres no país, ou seja:
- impedidas de aceder à formação superior, inclusivamente sendo obrigadas a queimar os seus diplomas;
- impedidas de trabalhar;
- impedidas de sair à rua sem acompanhamento de um familiar direto masculino, por exemplo, o marido, irmão ou progenitor;
- forçadas ao uso obrigatório da “burka”, como forma de limitar a liberdade individual que há muito tinha sido, tão dificilmente, conquistada;
- forçadas a estar casadas antes de terem a primeira menstruação.
Economia
Ao longo de 20 anos o Afeganistão dependeu das ajudas económicas internacionais, oriundas dos países da NATO e do Banco Mundial. Estas ajudas terminaram subitamente, deixando os cidadãos afegãos órfãos (39,5 milhões de pessoas), principalmente na ajuda humanitária. A dramática situação económica adveio de os bancos estarem paralisados. Segundo os cálculos do Banco Central, 9 mil milhões de dólares estavam em reservas no exterior e não em dinheiro nos bancos do Afeganistão. A maioria desta riqueza (7 mil milhões de dólares) são títulos activos e ouro da Reserva Federal dos Estados Unidos, país que tal como o resto dos países da NATO cortaram todo o tipo de operações financeiras para o Afeganistão (apesar da insistência da Rússia para descongelarem o dinheiro). Assim, mesmo que os cidadãos queiram retirar as suas poupanças dos bancos do Afeganistão, a inexistência de dinheiro vivo impede-os.
Os cortes nas subvenções provocaram o encerramento das escolas construídas e mantidas através das ajudas internacionais, antes mesmo que os talibãs o fizessem. A mentalidade que prevalece está visível nos seguintes argumentos: os líderes alegam um governo inclusivo, mas sem mulheres; os possíveis direitos das mulheres existem sobre o regime da lei Sharia; e o direito ao sufrágio, ativo e passivo, das mulheres é ridicularizado. Este é o futuro cenário dos cidadãos afegãos, cada vez com menos direitos e liberdades, com menos progressão, impossibilitados de entrar nos países vizinhos.
Chegada dos talibãs ao poder. Quem assume as consequências políticas?
Por último, importa realçar o papel da União Europeia e dos Estados Unidos no caos causado no Afeganistão, após 20 anos de ocupação, em que o objetivo primordial era “levar a democracia ao Médio Oriente”, tendo em conta que até agora mais de 44 mil afegãos pediram asilo na Europa.
Se olharmos numa perspetiva historicista, podemos observar que a esperança na União Europeia em fazer cumprir os seus valores humanitários foi bastante questionável. Já em 2015-2017, perante a crise dos refugiados, a UE decidiu pagar a um país que não respeitou os direitos humanos, saindo da Convenção de Istambul: como é o caso da Turquia, que serviu de barreira de contenção ao enorme e profundo desespero dos cidadãos sírios que fugiam de uma guerra sanguinária e que até hoje destroçou o país e continua a assassinar o seu povo. Em paralelo, a UE destinou quantidades incessantes de recursos humanos, económicos e tecnológicos para a FRONTEX (Agência Europeia de Controlo de Fronteiras), a qual se desresponsabilizou quando foi questionada pelas 2 mil mortes de emigrantes africanos e do Médio Oriente no Mediterrâneo, no último ano, sobre os quais tinha a responsabilidade (legal e moral) de salvar e ajudar. Recentemente, seis estados-membros da UE dirigiram-se à Comissão Europeia no sentido de exigir que as deportações de refugiados afegãos continuem, apesar do avanço dos talibãs. Os países da Europa do Este, governados pela extrema-direita, e o Luxemburgo, bloqueiam qualquer tipo de acordo humanitário de redistribuição de imigrantes; no entanto, a Espanha, a França, a Alemanha e Portugal estão a favor da concessão do asilo e da redistribuição.
É essencial ainda acrescentar a esta análise, que em 2015, não havia um contexto eleitoral tão decisivo na Europa, como o existente atualmente. Na altura, a chanceler Ângela Merkel confrontou todos os seus colegas do partido por forma a poder ter uma postura mais humanitária perante a crise dos refugiados sírios. Presentemente, duas das potências europeias mais importantes, França e Alemanha, convocaram eleições onde a extrema-direita se tornou um risco materializável que poderá desestabilizar a União Europeia.
Pode-se concluir que a situação política e económica na Europa está muito fragilizada e, que nos próximos meses, tende ainda a piorar. À instabilidade provocada pelo período de eleições coadjuva-se “os factos” assumidos pela extrema-direita referente à emigração conquistando assim cada vez mais votantes. Os argumentos da extrema-direita baseiam-se no seguinte: os custos que os refugiados implicam para as economias; os postos de trabalho e os subsídios que usufruem poderiam ser canalizados para os cidadãos nacionais. Discursos extremamente simplificados, demagógicos e populistas, que são inverdades, na maioria dos casos, e que carecem de profunda humanidade. Resta acrescentar que importa lembrar toda a ajuda humanitária prestada aos europeus que foram recebidos pelos países da América-Latina quando tentavam escapar das ditaduras e da Segunda Guerra Mundial.
Somos da opinião que os conflitos político-sociais devem ser evitados. É de todo engrandecedor gerar políticas coordenadas, humanitárias e de integração real de qualquer cidadão que seja forçado a abandonar a sua família, a sua profissão, os seus amigos, o seu lar, ou seja, tudo, para no fim ter uma vida muito precária nos países ocidentais, apenas com a vantagem de se sentirem seguros.
Destacamos ainda os seguintes números que espelham toda esta preocupação:
De acordo com um estudo da Universidade Brown, até abril de 2021 cerca de 174 mil pessoas morreram na guerra no Afeganistão; entre elas, cerca de 47 245 eram civis, entre 66 mil e 69 mil eram membros das forças de segurança afegãs e pelo menos 51 mil eram rebeldes islamitas, a maioria ligados aos talibãs. No entanto, o número de mortos pode ser possivelmente maior devido a mortes não contabilizadas por “doenças, perda de acesso a alimentos, água, infra-estruturas e/ou outras consequências colaterais da guerra.”
Perante os dados acima referidos, apelamos assim a uma profunda reflexão, tanto dos cidadãos como dos respectivos líderes políticos, para esta temática e, que desta vez se coloque em prática, o conhecimento adquirido da crise de 2015, de modo a obter novas estratégias que evitem a falta de humanidade e a desorganização, perante a emergência das necessidades sociais e políticas.