A Gestão Segundo Fernando Pessoa

A estabilidade financeira era uma das preocupações de Fernando Pessoa, como revelam os vários planos de vida que foi elaborando. Algumas anotações existentes do seu espólio mostram que terá passado, entre 1909 e 1912, de herdeiro desafogado a poeta endividado. Esta nova edição dos textos económicos e empresariais de Fernando Pessoa pela editora Alma dos Livros é realizada por Filipe S. Fernandes.

A Gestão Segundo Fernando Pessoa, por Filipe S. Fernandes

A redação de cartas comerciais em inglês e francês foi a principal fonte de rendimento de Fernando Pessoa, tendo passado por mais de vinte firmas que, além dos proventos financeiros, propiciavam “papel e máquinas de escrever para a redação das suas composições literárias.

Fernando Pessoa foi um sonhador de empresas. No seu espólio encontra‑se ainda uma brevíssima descrição de uma Companhia Geral de Empreitadas, a ideia de a criação de uma Empresa Portuguesa de Vinhos e Águas Minerais sobretudo para exportação, auditora ou empresa de serviços de contabilidade, minas e outros delírios.

Os 76 textos  do livro A Gestão Segundo Fernando Pessoa encontram‑se repartidos em seis grandes capítulos: Gestão e Organização; Ideias Económicas; Indústria; Técnicas Comerciais; Publicidade; e Desenvolvimento e Gestão Pessoal. No sétimo capítulo encontram‑se devaneios mais ou menos literários que têm como ponto de partida as reflexões sobre milionários. Grande parte dos textos de economia, negócios, organização empresarial, comércio foi escrita para publicação nos seis números da Revista do Comércio e Contabilidade, publicada durante o ano de 1926 e dirigida pelo seu cunhado, Francisco Caetano Dias, num total de 192 páginas.

O primeiro capítulo é sobre Gestão e Organização, em que se incluem textos já conhecidos, como “Como organizar Portugal”, “Organizar”, “Processo de organização”, “Os preceitos práticos em geral e os de Henry Ford em particular”, com outros existentes no espólio, como “Bases para a organização de uma empresa exportadora portuguesa”, “Da indústria à exportação”, “Escritório internacional de comércio” ou “Organização de um escritório de comissões”. Estes textos têm a particularidade de serem tanto projectos de organização empresarial, em que muitas vezes chegam à minúcia da organização por departamentos, como reflexões sobre o serviço a prestar aos clientes, a organização do que hoje se chama marketing e do próprio packing. O seu projeto de modernização para Portugal, em que a industrialização ocupava um lugar destacado, como vimos, tinha tanto uma dimensão micro ‑económica, com a sua insistência na organização e na estrutura empresariais, como uma componente macro em que pressupunha a existência de uma política industrial.

Mas a sua admiração por Ford não se fica por aqui e um texto sobre as lições deste empresário norte ‑americano é uma introdução ao branding e de como uma empresa deve ter e aproveitar a sua identidade corporativa. E Pessoa não deixa de refletir, aliás fá ‑lo com alguma minúcia, sobre os preceitos práticos da boa gestão e da excelência empresarial. De facto, por exemplo, “A essência do comércio” é quase uma aula moderna de marketing com a sua insistência do “foco no cliente”, o estudo do mercado, o mercado-alvo e a segmentação de mercado e a influência dos aspetos culturais no consumo, enquanto no texto “Organizar”, como assinala Gustavo Franco, parece um texto de pós‑fordismo, próximo da escola de regulação.

Em “Quando a lei estimula a corrupção”, podemos verificar a constante atualidade dos sistemas de governo e supervisão das empresas e que é inspirada por vários escândalos nas administrações de empresas como o Banco de Portugal, o Banco Angola e Metrópole. Em “Como os outros nos veem” Fernando Pessoa revela a preocupação pela promoção dos países, das atividades e dos produtos.

No segundo capítulo, intitulado Ideias Económicas, a partir do texto, “Régie, monopólio, liberdade” é possível ver, a partir da sua discussão do monopólio dos tabacos que então se transformara em duopólio com a Companhia Portuguesa de Tabacos, incumbente, a ser desafiada pela Tabaqueira de Alfredo da Silva, os argumentos para privatização e a defesa da concorrência para salvaguarda de consumidores e contribuintes. Em “As algemas” vislumbra-se a sua aversão ao protecionismo e a preferência pela desregulamentação. Em “Quando a lei estimula a corrupção”, podemos verificar a constante atualidade dos sistemas de governo e supervisão das empresas e que é inspirada por vários escândalos nas administrações de empresas como o Banco de Portugal, o Banco Angola e Metrópole. Em “Como os outros nos veem” Fernando Pessoa revela a preocupação pela promoção dos países, das atividades e dos produtos.

No capítulo III, Indústria, revelam‑se os projectos industriais, editoriais e comerciais imaginados — e, no caso da Olisipo, realizado — por Fernando Pessoa. Há em alguns dos seus textos uma ideia de política industrial, como é o caso de “Bases para dois projectos de concentração industrial”, que parece uma elaboração do conceito de cluster de Michael Porter, avant la lettre, ou “Bases para a formação de uma empresa de produtos portugueses”, que funcionasse como um agrupamento de várias empresas com o objetivo de ter capacidade de exportação e de implantação nos mercados internacionais: “se estabeleceriam gradualmente no estrangeiro, e começando pelas principais cidades, lojas para a venda direta ao público de produtos portugueses”.

O capítulo IV refere algumas das Técnicas Comerciais ditadas e aconselhadas pelo poeta, que muitas vezes as terá utilizado na sua vida prática de correspondente comercial. O seu texto “Arquivo de correspondência” pode ser lido como um manual para arrumar os e‑mails. Muitos dos conselhos são marcados pelo bom senso e de utilização proveitosa ainda hoje. Só um exemplo a propósito da comunicação empresarial: “antes mais explicado do que mais breve; antes muitos parágrafos do que poucos; antes responder depressa, embora dizendo só arte, que demorar para dizer tudo”.

Um dado curioso é a atenção dada por Fernando Pessoa às questões de Desenvolvimento e Gestão Pessoal, no capítulo VI, ou, como hoje se designam, as soft competencies e que mostra que os livros de autoajuda têm uma longa genealogia.

O capítulo V é a vez da Publicidade, campo onde Fernando Pessoa, desenvolveu actividade, tendo provavelmente sido pioneiro do product‑placement na literatura. Nestes textos, como “Planeamento de uma campanha de publicidade” ou “Notas para uma campanha de propaganda”, há a teorização de temáticas como a propaganda ou publicidade ou a emergência do turismo como negócio, que então se começavam a espalhar pelo mundo, sempre com exemplos ao alcance da mão, como a então emergente Costa do Sol, a costa do Estoril, ou o facto de a propaganda inglesa ser menos “eficientemente organizada do que a alemã ou a americana”. Faz também alusão às diferentes formas de comunicação do cliente

Um dado curioso é a atenção dada por Fernando Pessoa às questões de Desenvolvimento e Gestão Pessoal, no capítulo VI, ou, como hoje se designam, as soft competencies e que mostra que os livros de autoajuda têm uma longa genealogia. No texto “Elementos de vitória”, Fernando Pessoa refere ‑se aos livros “que ensinam a vencer”, acrescentando que “muitos deles contêm indicações interessantes, por vezes aproveitáveis. Quase todos se reportam particularmente ao êxito material, o que é explicável, pois é esse o que supremamente interessa à grande maioria dos homens. A ciência de vencer é, contudo, facílima de expor; em aplicá‑la, ou não, é que está o segredo do êxito ou a explicação de falta dele. Para vencer — material ou imaterialmente — três coisas definíveis são precisas: saber trabalhar, aproveitar oportunidades, e criar relações”.

O poeta preocupa‑se com o que hoje se chama networking, a base de relacionamento profissional e pessoal de cada gestor, e com a capacidade de executar e de estar atento às oportunidades. Um consultor de carreiras não faria melhor. Por outro lado, não deixa por vezes de se transformar numa espécie de mental coach, como quando refere que se temos “a liberdade de escolha, por que não escolher a atitude mental que nos é mais favorável, em vez daquela que nos é menos?”.

Uma outra área de interesse e que, às vezes, é de uma atualidade acutilante, é o conjunto de aforismos e preceitos práticos que Fernando Pessoa escreveu e que preferimos associá‑los a cada um dos seis capítulos. Como refere Fernando Cabral Martins, relevam, “por vezes de grande minúcia, sobre aspetos concretos da vida comercial, que enquanto empregado de escritório conhece por dentro. Não parece haver aqui um fiapo de ficção, antes a secura de um livro de instruções, efeito que parece até retirar a esses textos, em simultâneo, a qualidade de textos de ‘crítica’ — a não ser em certos artigos de carácter geral sobre o comércio”.

Sinal dessa admiração do génio individual capitalista, o que aliás se evidenciava no rascunho de uma carta com um pedido de auxílio financeiro a Andrew Carnegie e o que escreveu: “o facto é que as grandes fortunas, quando não sejam hereditárias são quase sempre efeito, em sua origem, de um poderoso exercício da vontade ou da inteligência. (…) Mais tarde, sim, no desenvolvimento da fortuna, podem entrar outros elementos, mas a vontade ou inteligência original constantemente resguarda e defende o que originalmente criou”.

O capítulo VII é sobre os Milionários e mostra a sua ambivalência em relação à acumulação de capital, que vai da admiração e do fascínio, conforme as suas convicções liberais, pela criação individual da riqueza. Sinal dessa admiração do génio individual capitalista, o que aliás se evidenciava no rascunho de uma carta com um pedido de auxílio financeiro a Andrew Carnegie e o que escreveu: “o facto é que as grandes fortunas, quando não sejam hereditárias são quase sempre efeito, em sua origem, de um poderoso exercício da vontade ou da inteligência. (…) Mais tarde, sim, no desenvolvimento da fortuna, podem entrar outros elementos, mas a vontade ou inteligência original constantemente resguarda e defende o que originalmente criou”.

Por outro lado, mostra uma rejeição de meritocracia do capital, quando escreveu que “Nunca nenhum homem se tornou milionário pelo trabalho árduo ou inteligência. No pior caso, ele tornou-se nisso por uma imensa e imaginativa falta de escrúpulos; na melhor hipótese pela feliz intuição em circunstâncias especulativas”.

Todos estes textos mostram a intensidade e o fascínio de Fernando Pessoa pela emergência dos fenómenos da gestão, do marketing e da publicidade, e a sua leitura hoje é de uma refrescante atualidade até porque o seu único projeto de vida era escrever, escrever sempre.

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