Maria João Oliveira: O Meu Maior Desafio

Maria João Oliveira, diretora dos Recursos Humanos da Abaco Consulting, partilha a maior prova de superação da sua vida: subir o Monte Branco, que tem quase cinco mil metros de altura.

Maria João Oliveira é diretora dos Recursos Humanos da Abaco Consulting.

Maria João Oliveira assumiu a liderança dos Recursos Humanos da Abaco Consulting em março deste ano. Para trás tem uma carreira de mais  de  20  de  anos  na gestão de pessoas na indústria  hoteleira, nas  tecnologias  de  informação e nos bens de consumo. Maria  João Oliveira iniciou o seu percurso profissional na área dos Recursos Humanos, tendo passado primeiro  pela  Procter  &  Gamble, seguindo-se  a  Alert  Life  Sciences Computing e a Grapes Hospitality, sendo nesta última responsável pelos recursos humanos de várias marcas, como The Yeatman Hotel, The Vintage House Hotel, Hotel Infante de Sagres, entre outros. Maria  João  Oliveira licenciou-se em Direito,  pela  Universidade  do Porto, depois fez uma pós-graduação em Medicina Legal, no Instituto de Medicina Legal do Porto  e, mais tarde, frequentou uma pós-graduação em Gestão de Pessoas, pela então Escola de Gestão do Porto (atual  Porto  Business  School). Em 2017, quando trabalhava na Grapes Hospitality, foi reconhecida com o prémio “Melhor  Gestor  de Potencial Humano 2017”, atribuído pela ADHP — Associação dos Diretores Hoteleiros de Portugal.

 

 

“Estávamos em Outubro de 2015. Fazia uma caminhada com amigos na serra da Freita, quando um grande amigo e mestre nas lides da montanha me desafiou a subir uma. O Monte Branco, que tem quase 4810 metros. “Estás doido!! Isso não é para mim…”, disse-lhe eu, do alto dos meus 37 anos de inexperiente sabedoria, com a desculpa de não ser uma expert na matéria. “Se não quiseres subir a montanha, podes vir fazer só os treinos connosco, sem esse objetivo. Vamos treinar durante cerca de 9 meses — um fim de semana por mês faremos uma atividade. Vem connosco, vai fazer-te bem”, disse ele. A sua companheira, minha grande amiga também, incentivava-me igualmente a embarcar na aventura. Pensei melhor e percebi que não perdia nada: dava para espairecer, ia fazer-me bem, gosto de atividades na Natureza e não tinha a pressão do objetivo, ia descontraída, sem medo. “Ok, vamos a isso!”, disse-lhes eu, já mais confortavelmente posicionada (pensava eu…).

Éramos sete pessoas — apenas duas mulheres —, entre os 30 e os 48 anos. A aventura, ainda que o meu único objetivo fosse acompanhar as atividades de treino, era por si só desafiante para mim, pois sabia que com aquelas pessoas a coisa era a sério — grau elevado de exigência física e psicológica, muita aprendizagem técnica, elevado sentido de responsabilidade e de máxima segurança e, sobretudo, muito respeito quer pela montanha, quer pelos elementos do grupo — mas também não faltaria uma pitadinha de diversão, boa disposição e sentido de humor, cruciais à convivência humana.

Intercalando com pequenas atividades de escalada indoor e outdoor, corridas pela marginal de Matosinhos/ Foz e caminhadas, saíamos a cada fim de semana, para locais como a Serra da Estrela, Peña Ubiña, Serra de Gredos, Bejar. Quantas sextas-feiras desci o elevador de minha casa de manhã cedo, vestida com roupa de trabalho e com uma mochila de montanha às costas, para surpresa e confusão dos vizinhos que comigo se cruzavam. Saíamos à sexta à noite e regressávamos no domingo à noite. Nessas alturas, o meu “chip” mudava: substituía a palavra projeto por aventura; os instrumentos de trabalho passavam a ferramentas e equipamentos de proteção, como luvas, frontais, arneses, mosquetões, bastões e piolets; o calçado confortável de trabalho passava a botas rijas de montanha e crampons; os métodos e técnicas de trabalho transformavam-se em trekking, scrambling, rappel e escalada; a equipa passava de sentada a uma mesa de reuniões a uma equipa encordoada; as refeições quentes saboreadas confortavelmente à mesa da sala, eram substituídas por sandes preparadas na véspera do fim-de-semana, sentada num qualquer penedo no meio da montanha; o telemóvel servia apenas para tirar fotos das magníficas paisagens, pois a rede era inexistente em 90% do tempo; o capacete, pelo qual eu não morria de amores, era talvez um dos equipamentos de segurança mais importantes nestas atividades; a mochila grande e compacta substituía a carteira do dia a dia; e a roupa, por sua vez, era exclusivamente técnica e reduzida ao estritamente necessário para os 2 dias e 2 noites de atividade, em que dormíamos em refúgios e casas de montanha e caminhávamos, trepávamos e escalávamos horas a fio com a mochila de 15 kg às costas, alegres ou exaustos, ao sabor dos sons da Natureza, de conversas variadas entre nós ou do nosso próprio silêncio, por vezes tão bom de se ouvir. Efetivamente, os bens reduziam-se ao estritamente necessário: alimentação, higiene básica, mínimo de roupa técnica, kit de primeiros socorros, equipamentos e instrumentos, individuais e coletivos (estes repartidos pelos vários elementos do grupo), necessários à atividade — tudo isto numa única mochila!

 

Sair da zona de conforto

Lembro-me que num dos momentos de treino, na Serra da Estrela, chorei — a passagem era tecnicamente exigente. O mestre sabia. Conhecia bem aquele terreno. E sabia que éramos capazes. Que tínhamos de ser capazes. A equipa foi passando, com alguma dificuldade, até que passou toda à minha frente e eu, após várias tentativas, não conseguia superar aquele obstáculo, que requeria uma destreza física elevada. Acreditei que não era capaz, esgotara-se-me a força nos braços e pernas, a cabeça estava exausta, mas desistir não era uma opção, simplesmente porque tinha de sair sozinha daquele buraco, literalmente. Acabei por conseguir, com a precisa e assertiva orientação do mestre, as vozes de apoio dos meus colegas e com a ajuda do braço forte da minha amiga. Limpei as lágrimas, respirei fundo e segui em frente.

Na montanha, podem aparecer a qualquer momento obstáculos do mais variado nível de dificuldade — nestas alturas, a calma, o auto controlo, o discernimento e até alguma criatividade são fundamentais para gerir o stress da situação e conseguir ultrapassá-la. E se houver toda uma equipa a passar pelo mesmo, bem liderada, melhor ainda. Mais cabeças a pensar, mais entreajuda, mais confiança a passar dos mais fortes e seguros para os menos fortes e mais inseguros.

Um destes obstáculos é também o tempo, meteorológico. Na montanha, em poucos minutos, o bom tempo pode mudar para nevoeiro, vento, chuva ou tempestade! Máxima responsabilidade e foco são exigidos nestes momentos, pois a segurança fica reduzida ao pouco controlo que passamos a ter nestas condições adversas — inesperada e rapidamente, temos de tomar decisões:  ou paramos ou seguimos, assumindo um maior ou menor risco, com toda a atenção requerida naquelas circunstâncias. E ninguém fica para trás.

A Natureza posiciona-nos. Reduz-nos ao que somos: meros seres humanos. Ela é quem manda. Para ela todos somos iguais, despidos de qualquer estatuto — social, económico, profissional, académico —, materialismo e superficialidade. Nela revela-se a faceta mais básica e autêntica do ser humano, cujos instintos são constantemente ativados e postos à prova. A máscara é muito ténue, por vezes desaparece até. E isso é do mais enriquecedor que há, sobretudo para nós próprios.

 

Os reflexos do treino no local de trabalho

Estas atividades faziam-me efetivamente muito bem! O mestre tinha razão. Apesar da dureza do fim de semana, a verdade é que eu começava a semana de trabalho de cabeça limpa e leve, reenergizada, preparada para os desafios do dia a dia. Afinal, tantas barreiras conseguia ultrapassar no meio da montanha, com a autonomia que o mestre fazia questão de nos incutir com a sua firmeza e confiança, e sempre vigilante, que conseguiria com certeza ultrapassar as dificuldades da semana de trabalho! E sim, na verdade, tudo fluía com mais leveza e simplicidade durante a semana, não só no trabalho, como na vida pessoal. Confirmava-se o efeito terapêutico da Natureza!

Apesar dos bloqueios e frustrações momentâneas, a minha auto confiança, segurança e crença nas minhas capacidades físicas e psicológicas foi aumentando à medida que os treinos avançavam e a ideia de subir uma montanha começou a ser altamente tentadora. “Será que sou capaz?” O desafio era muito ambicioso, mas muito aliciante ao mesmo tempo e eu começava a gostar da ideia, da missão, da beleza da montanha e a convencer-me que se conseguia acompanhar bem os meus companheiros, talvez conseguisse mesmo subir a montanha.

Decidi que sim. Iria acompanhá-los nesta aventura, neste projeto, agora na sua totalidade. Sentia-me cada vez mais preparada e apoiada pela equipa, que me incentivou sempre a fazer parte do projeto. Estava otimista. Amadoramente otimista. Não sabia bem no que estava a meter-me, na realidade.

 

A escalada em direção ao topo

Maria João Oliveira e o grupo a celebrarem a chegada ao cume do Monte Branco.

Maria João Oliveira (de blusão rosa) e o grupo a celebrarem a chegada ao cume do Monte Branco.

 

Até que chegou o momento. Julho de 2016. 10 dias em Chamonix, em que três seriam dedicados a subir o famoso Mont Blanc!! Os dias anteriores foram dedicados à preparação, nomeadamente aclimatização ao terreno e altitude. Mais treino, mais atividades, agora já muito perto do nosso alvo,  que conseguíamos vislumbrar ao longe, de vários locais por onde passávamos e onde ficávamos — Aiguille du Midi (3842 m), Aresta do Cosmiques (3613 m), entre outros. Paisagens lindas, majestosas, imponentes, reveladoras da nossa “pequenez”, invadiam o nosso fôlego a todo o momento.

E o Dia 1 começou, bem cedo. Os dias na montanha começam sempre muito cedo, ainda de madrugada. Lá fomos de comboio até à estação “gare du Nid d’Aigle”, já a 2380 m – era o patamar do início da aventura.  Neste dia demorámos 7 horas a chegar ao destino: o Refúgio do Gouter, a 3815 m. A 3340 m atravessámos o Grand Couloir, uma (talvez a mais) das mais temidas passagens a caminho do cume do Monte Branco: atravessar uma descida, em que continuamente e sem aviso caem pedregulhos pela montanha. Risco elevado. Estatísticas trágicas. Concentração, máxima responsabilidade e muita adrenalina. Fizemo-lo com sucesso, sabendo que teríamos de repetir a proeza também no regresso.

O Dia 1 foi, para mim, o dia mais difícil — a altitude afetou-me bastante e as dores de cabeça eram fortíssimas. Uma das regras definidas pelo mestre era que quem quisesse desistir, deveria fazê-lo num dos dois momentos de paragem, nomeadamente no refúgio, onde passaríamos as 2 noites. Durante esta subida, só pensava na minha desistência, pois receava não aguentar e não queria prejudicar o grupo. Chegados ao refúgio, o cansaço e a alegria misturavam-se nas nossas caras. A 1ª etapa já está! Aliviados, não sem antes registarmos fotograficamente o momento da chegada, fomos instalar-nos e gozar o nosso merecido descanso, acompanhado de uma bela refeição – isto por volta das 16h00!

A minha postura na chegada, de alegria e alívio, mas de derrotada e desistente, foi-se alterando à medida que a minha energia foi sendo reposta pelo descanso. A minha intenção de desistir transformou-se numa determinação forte em continuar: “andei nove meses a treinar para isto e agora vou desistir?! Nem pensar!! Eu sou capaz, foi só uma pequena quebra de auto-confiança!”

O Dia 2 começou às 2h da manhã. Ensonados, mas reenergizados, depois do pequeno-almoço e de nos equiparmos a rigor, começámos a subida — a partir dali o terreno era todo coberto de neve. Como nós, havia dezenas de outros aventureiros em fila, a subir, destacados pelas respetivas lanternas frontais. Vi o melhor nascer do sol de toda a minha vida! Depois de 5 horas chegámos ao cume! Êxtase total, gritos de vitória, abraços emocionados, telemóveis congelados (ainda conseguimos tirar 2 fotos para registar o momento: quase 4810 metros!), bandeira de Portugal fora da mochila e uma garrafa de champanhe para celebrar! Fazendo fronteira de França com Itália, vislumbrava-se ainda a Suíça do alto deste cume. Tivemos a sorte que qualquer montanheiro deseja, céu limpo no ponto mais alto da montanha! Após alguns minutos, já com as emoções mais repostas, começámos a próxima etapa: a descida. Chegámos em 3 horas ao refúgio, felizes.

Faltava ainda o Dia 3, do regresso ao ponto de partida. Foi o dia mais “curto” – 5 horas a descer, com a satisfação de missão cumprida, a contemplar ainda mais leve e avidamente as magníficas paisagens. Mas faltava ainda passar pelo Grand Couloir novamente… O stress e inquietação voltaram nesse momento. Um dos colegas viu passar à frente dos seus olhos um pedregulho. Poderia ter sido mau, mas não foi. Os anjos da guarda estavam connosco. Depois desta última passagem, fizemos um autêntico passeio pelo monte, cantando, rindo, descomprimindo, até chegarmos. E, nessa noite, num ótimo jantar com toda a equipa, brindámos ao nosso sucesso, orgulhosos!

 

As lições aprendidas

Aquilo que desde o início e ao longo do caminho pensei não ser capaz de alcançar, por medo, insegurança, necessidade de conforto e controlo, tornou-se num dos marcos de superação na minha vida.

A Natureza, para além de ser a minha melhor terapeuta, ensina-me coisas que não aprendi na escola nem em casa. Ensina-me a respirar melhor e mais controladamente. Ensina-me a desconectar da civilização e a apreciar a sua beleza e magnitude sem interferências tecnológicas. Ensina-me a relacionar-me com os outros em igualdade de circunstâncias, de forma mais genuína. Ensina-me que os obstáculos evidenciam muito daquilo que realmente somos e muitas vezes desconhecemos, promovendo o nosso auto-conhecimento e desvendando o nosso Eu mais puro e autêntico . Estes obstáculos ativam o desenvolvimento de capacidades que, na nossa zona de conforto, poderão nunca ser sequer despertadas, e muito menos desenvolvidas — o cair, magoar e levantar, seguindo em frente porque não temos outra escolha, sem tempo nem “espaço” para nos auto-vitimizarmos; a capacidade de reconhecer a necessidade de ajuda e aceitar humildemente o apoio dos outros; a inevitabilidade de procurar e encontrar outros caminhos porque aquele não é viável; a capacidade de tomar decisões, certas ou erradas; a capacidade de avançar, ainda que com medo; de nos adaptarmos rapidamente a novas e adversas condições; de gerir, física e psicologicamente, essa adversidade; de gerir a nossa frustração e a dos que nos acompanham; de renovar forças no limite do nosso cansaço; de valorizar o nosso normal dia a dia, rotineiro, o nosso porto seguro, cheio de pequenos “luxos”; de relativizar as dificuldades; de desconstruir algumas teorias sólida e ilusoriamente formadas em contextos de conforto.

O caminho, muitas vezes não é fácil, mas é o sumo da vida, que nos alimenta e fortalece. A determinação, o respeito, a consistência dos nossos comportamentos em função de um objetivo, desafio, projeto ou aventura, ditarão o nosso sucesso. É assim na Natureza. Nas organizações. Nas equipas. Na família. Na vida.

E afinal, subir uma Montanha… é para qualquer um!”

 

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