José António de Sousa é gestor aposentado depois de quatro décadas na liderança de multinacionais de seguros.
Em 42 anos de vida profissional trabalhei apenas em três companhias, todas elas multinacionais, e todas elas líderes internacionais no setor segurador e ressegurador. Na primeira delas, uma empresa alemã centenária já desaparecida entretanto, deglutida por uma concorrente bem mais pequena, mas mais disciplinada e melhor gerida, havia apenas algumas poucas regras corporativas e princípios de gestão norteadores da ação nas atividades quotidianas, que se tinham cristalizado e estabelecido ao longo dos anos, emergidas da prática na gestão diária, e das lições dolorosas que se iam aprendendo ao longo dos anos, quando se cometiam erros. Não havia uma disciplina de pensamento coletivo sobre estratégia promovida pela gestão de topo, testada todos os anos no mercado, que servisse minimamente para prever as chamadas “man-made catastrophes”. Foi precisamente uma dessas (a compra irrefletida, muito mal preparada, e com uma due diligence desastrosa, de uma companhia nos EUA), que acabou por rebentar com uma companhia centenária, que chegou a estar no top 3 mundial do seu setor, comprada por um concorrente que andava há décadas a correr atrás dos nossos calcanhares, sem os conseguir sequer pisar…
Numa etapa subsequente da minha vida corporativa (tinha saído da anterior antes do desfecho triste, que já tinha antecipado, e sobre o qual tinha tratado de alertar os meus Administradores), a estrutura, prática e disciplina de gestão estratégica estava elevada a um nível absolutamente “world class”, imbatível. Foi isso que levou essa companhia aos píncaros do setor internacional no setor segurador e ressegurador. Os concorrentes andavam todos desnorteados (roídos de inveja) a tratar de entender as raízes profundas do nosso sucesso no mercado, em qualquer um deles em que estivéssemos presentes. E havia dois termos para o caracterizar. The Wheel (a Roda), e The Roadmap (o Mapa).
The Wheel, esquematizada abaixo, sublinhava a importância de uma empresa ter um esquema bem definido de gestão estratégica. Ter uma Visão criada pelo gestor de topo, que defina em poucas palavras para onde queremos caminhar coletivamente, definir uma missão (ou propósito), que alicerce inequivocamente a Visão e os Valores que devemos usar como princípios norteadores para que a nossa prática quotidiana não deixe qualquer dúvida interna ou externa sobre aquilo que nos move, e para onde vamos.
De posse deste poderosíssimo instrumento (a Santíssima Trindade da estratégia corporativa), partíamos para a análise SWOT interna e externa (Strenghts, Weaknesses, Opportunities, Threats), um poderoso exercício coletivo que deve envolver o máximo possível de colaboradores. É um passo absolutamente critico para lograr o famoso e crucial “buy-in”, para que todos sintam que o “produto” estratégico resulta do esforço e pensamento coletivo, e portanto para lograr um amplo compromisso e, idealmente, uma paixão e energia grandes pelo que é necessário fazer.
Esta primeira parte define a Direção Estratégica que a companhia deve aplicar para pôr a Roda em funcionamento nas áreas operativas que vão garantir o sucesso da companhia. O Roadmap dá definições, indicações claras, e exemplos práticos para cada uma delas. No centro da Roda, como não podia deixar de ser, o cliente sempre, a verdadeira razão de existência de qualquer companhia (mesmo pública…).
Tudo o que se faça em cada uma das áreas deve obedecer à lógica, exclusivamente, de servir o cliente da forma mais eficiente e eficaz. Posta a girar a roda harmoniosamente à volta do cliente, das suas necessidades e expectativas, cria-se uma fantástica dinâmica de mudança cultural aceite e partilhada pelo coletivo de colaboradores, que eu definiria como um círculo virtuoso estratégico (por oposição ao pesadelo estratégico que resulta de não fazer este fantástico e motivador exercício).
Quando a própria gestão de topo começou a trair os seus próprios princípios, para dizê-lo de forma suficientemente suave e ampla, sem entrar em detalhes, nem o esquema da Roda (espezinhado entretanto) ajudou a manter a dinâmica de êxito que foi apanágio desta companhia ao longo de mais de uma década. O Roadmap inicial, um documento sucinto com umas poucas dezenas de páginas, foi ampliado para mais de 300 (tamanho não é documento, diz-se ajuizadamente por cá), fizeram-se slides XPTO para apresentações na organização, mas o “mojo”, a magia e encantamento pioneiros que tinham elevado a moral das hostes aos píncaros, e as tinham motivado a adotar incondicionalmente os valores e princípios elaborados coletivamente, desapareceu irremediavelmente. A companhia fez uma travessia de deserto dura, o líder carismático que a tinha levado a ser uma das líderes mundiais de topo foi substituído, e toda a organização acabou focada única e exclusivamente em métricas operacionais para correção do descalabro herdado do líder carismático.
Desiludido com o caminho, aceitei um desafio que me veio permitir aos 48 anos de idade vir trabalhar para Portugal, pela primeira vez na minha vida. Até então toda a minha carreira tinha sido internacional. O que me cativou de imediato, e me levou a aceitar o desafio, foi a entrevista com o presidente mundial do grupo de então. O presidente de uma das maiores corporações de seguros do mundo, top 5 no mercado americano, recebeu-me descalço e perfeitamente casual à porta do seu gigantesco gabinete. Sentámo-nos, e ao fim de uns instantes pergunta-me se quero um cafezinho. Agradeci, e ele disse para o seguir. Foi a uma copa num extremo do seu gabinete e fez-me ele próprio o café. Ao fim de quase duas horas de amena cavaqueira o homem tinha conquistado a minha mente completamente. Simplicidade, humildade, transparência, visão cristalina, aceitei de imediato fazer parte do projeto. Antes de sair, o homem entregou-me um cartão minúsculo (6,5 por 8,5 cm), que ainda hoje anda comigo na carteira, que no fundo era o Roadmap dessa companhia na qual eu iria entrar dentro de poucos dias, após sair da companhia do Roadmap das 300 e tal páginas.
Vou partilhar no original o que está nessa minúscula “cábula”, porque vale mesmo a pena para entender como uma companhia pode ter êxito, desde que saiba exatamente o que quer, como lá chegar, e “walk the talk”, ou seja, quando os líderes dão o exemplo e vivem e praticam o que pedem aos outros para fazer.
Anverso
MISSION
-Helping people live safer and more secure lives
PRINCIPLES
-We will behave with integrity
-We will treat people with dignity and respect
-We will provide superior products and services at a fair price
OPERATING MEASURES
-We will grow our chosen businesses over time, at a faster than market rate
-We will earn a competitive return on capital deployed
Reverso
MANAGEMENT PRINCIPLES AND BELIEFS
-Keep your promises
-Achieve objectives
-Treat one another with dignity and respect, be fair
-Be honest and forthright with all
-Be performance-oriented, and act on it. Make responsibility and accountability clear.
-Communicate early and often. Listen
-Invite participation. Unleash the power of those on the front line.
-Enforce rules/break rules (use common sense)
-Between managerial and functional roles, managerial role is more important. Be available
-Be willing to take personal risk
-When something is wrong, feel obligated to see that it’s fixed
-Budgets are paramount, but not absolute
Um pequeno gigante em termos de filosofia de gestão, este cartãozinho que anda no bolso comigo há mais de 20 anos. Fiquei de tal maneira fascinado que, ao chegar a Portugal, acabei por desenhar com a minha equipa uma estratégia que cabia numa página (anverso apenas) A4, e que toda a gente na companhia conhecia, sabia, entendia e partilhava. Conheço não uma, mas várias companhias no meu antigo setor de atividade, cujos colaboradores não fazem a mínima ideia onde estão, o que são e para onde vão…
Por outro lado, e isso não é só válido no setor de atividade onde trabalhei mais de 40 anos, recomendo sempre, quando me pedem opinião de consultoria, que façam uma “auditoria” aos MANAGEMENT PRINCIPLES AND BELIEFS nas companhias privadas e públicas portuguesas (e multinacionais a operar em Portugal, sob gestão portuguesa) que conhecem, ou porque já passaram por lá, ou porque conhecem alguém que lá trabalha.
Um desastre total e absoluto, acredito que não há um só princípio da lista acima que faça parte do receituário de gestão à portuguesa, no público ou no privado. Nem os “masters of the Universe” que sairam das consultoras, e hoje fazem parte da gestão de alguma companhia em Portugal, conseguem demonstrar serviço nessa lista, talvez com uma única exceção: “Achieve objectives”. Fazem-no durante algum espaço de tempo (curto por via de regra), sabe Deus à custa de que metodologias para espremer o tuga. E por isso o ambiente nas empresas está de cortar à faca, e as taxas de burnout em Portugal são as mais altas na Europa. Para bom entendedor…
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