A Executiva e a Cupra promoveram mais uma Women Empowerment Talk, desta vez sobre “As mulheres da vida de Joana Leitão de Barros”. A CUPRA City Garage Lisboa encheu para assistir a uma conversa na primeira pessoa, intimista e inspiradora, sobre as mulheres que marcaram a vida de Joana Leitão de Barros, escritora, guionista e produtora de conteúdos.
Na abertura do evento, Cristina Rola, diretora de Marketing da CUPRA, deu as boas-vindas às participantes que se reuniram neste novo conceito de stand de automóveis, inaugurado há um ano, no coração de Lisboa. A irreverente marca cor de cobre, nascida em Barcelona, claramente comprometida com a eletrificação, conquistou o mercado português com vendas que triplicaram num ano, ancoradas na performance eletrizante, design e sofisticação.
Depois de anos dedicada ao jornalismo generalista e económico, Joana Leitão de Barros fez uma incursão pelo mundo da comunicação empresarial e política, até que, nos últimos anos, se dedicou à escrita de livros. Começou por lançar uma biografia do avô, José Leitão de Barros – A Biografia Roubada, escrita a quatro mãos, com a prima Ana Mantero. Em 2020, recebeu o Prémio Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, por esta obra, o que a levou a estudar a década de 1920 e a aproximar-se de um sem fim de protagonistas cujo rasto tem percorrido. Estreou-se, o ano passado, na ficção com Veva (Genoveva Lima Mayer Ulrich), uma das várias mulheres extraordinárias que descobriu quando pesquisava sobre o avô.
Para além da biografia, género que continua a trabalhar, é também guionista e produtora de conteúdos. No seu currículo, Joana Leitão de Barros tem também um guia sobre o litoral alentejano e editou a revista de uma fundação ligada ao Alentejo.
Nesta conversa, conduzida pela Executiva, ficámos a conhecer o que a fascinou nas mulheres que viveram na primeira metade do século XX.
A doce avó Helena, uma artista de exceção
“Com grande entusiasmo posso dizer que tenho vivido inspirada por mulheres. A minha vida é muito bem povoada de mulheres, faço parte de uma família de mulheres, que me são absolutamente essenciais. Ter crescido num colégio feminino também me ajudou a ganhar este sentido de irmandade.” No campo dos afetos, a figura que mais marcou Joana Leitão de Barros foi a sua avó, Helena Roque Gameiro, uma artista de exceção, “que respirava arte.” Pintora e aguarelista “que não impunha a pintura aos netos”, a filha de Alfredo Roque Gameiro continuou a expor depois do casamento com o cineasta Leitão de Barros, e aguarelou até ao fim dos seus dias. Discreta, melancólica e aparentemente frágil, foi uma mulher com um poder e autonomia invulgares para a época: “viajava sozinha, tinha conta bancária, dava aulas, foi a primeira figurinista do cinema português”, explica Joana que confessa que foi por ela que começou a escrever a biografia do avô, “passou-me muita coisa, entre silêncios e o exemplo.”
Dos vários textos que escreveu sobre a avó, destaca um excerto de um catálogo da Casa Roque Gameiro:
“Helena era uma avó doce e que fugia de exuberâncias, capaz de não desistir de arrumar as farripas de cabelo nos ganchos de uma adolescente, e de outras tarefas impossíveis, deixadas ao amor infinito. Não nos impunha o desenho ou a missa, um binómio no mesmo patamar para a família, e acho que gostava de nos ver andar descalças, correndo sobre a caruma dos pinheiros, em brincadeiras meio selvagens, a escapar para passeios de bicicleta no pinhal, submetidas apenas ao toque do sino para o jantar. (…) O processo de reconstrução imperiosa da sua realidade, depois da morte do marido e, mais tarde, depois da Revolução de 74, veio desmentir a aparente fragilidade de Helena. Havia uma tremenda determinação, orgulho e fé na bondade humana na filha de Alfredo Roque Gameiro, que a fazia não evocar glórias passadas e, decididamente, fugir de saudosismos. Enquanto a avó desconstruía ilusões e caminhava sobre ruínas, corajosamente, cabia-nos a fatia fantasiosa, inadvertidamente, esse treino precioso para a construção de ilusões férteis”.
A feminista convicta que abominava o snobismo
Teresa Leitão de Barros era o oposto da cunhada, Helena. “A avô era coquete, gostava de se arranjar, enquanto a minha tia-avó Teresa era uma sufragista e abominava as toilettes.” A temida professora de Português do Liceu Maria Amália, que “era um bicho-de-mato e nada dada a convites sociais”, foi uma feminista convicta que defendia o papel da educação para a emancipação da mulher. Escritora e crítica literária, formada em Filologia, pela Faculdade de Letras, fez parte do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, a principal associação de mulheres da primeira metade do século XX, e dirigiu a revista Mundo Feminino. Sobre esta mulher que a fascina, e que aos 60 anos viveu um romance homossexual, Joana Leitão de Barros, afirma que a sua vida merece ser investigada a fundo, “mas queria que fosse outra pessoa, e não eu, a fazê-lo.”
Num excerto de um texto seu, publicado na revista Águia, pode ler-se:
“Teresa é solteira, vive do seu ordenado de professora, tem 31 anos e luta pela igualdade de direitos das mulheres. Abomina as horas de lavores, a vida doméstica e as toilettes. Percorre Lisboa a passos firmes, poupando no elétrico. Em 1929, dá ao Diário de Lisboa uma corajosa entrevista. O jornal titula-a assim: ‘A Mulher só deve renunciar à luta quando tiver possibilidades de defender a sua causa com armas iguais às de que o homem dispõe, diz Teresa Leitão de Barros’. Na entrevista, e em defesa do voto feminino, Teresa aponta a falta de cultura e o snobismo como estando a afastar as portuguesas da causa feminista”.
Pioneira do cinema português, divorciada e homossexual
Neste leque de mulheres fortes, disruptivas, mas cheias de contradições, Virgínia de Castro e Almeida protagonizou aquele que se julga ser o primeiro divórcio português e, com a inglesa Pamela Boden, formou o primeiro casal lésbico retratado na história da arte portuguesa. Virginia teve uma vida oposta à que se esperava dela.
Como Joana escreveu numa crónica do Observador: “A filha do conde de Nova Goa e de Virgínia Folque recebeu uma educação cuidada, e muito cedo começa a escrever. Aos 20 anos, e em julho de 1895, casa com o agrónomo João Coelho Prego Meira Vasconcelos, o que não a impede de continuar a publicar. Na queda da Monarquia dirige a coleção “Biblioteca para os Meus Filhos”, da Livraria Clássica Editora. Mas o ano de 1913 anuncia outro tipo de cataclismo, com a publicação que faz do livro A Mulher. A autora põe em causa o que está estabelecido, debate-se entre contradições e os direitos da mulher. ‘A pouco e pouco, por uma evolução lenta e segura, o aspecto de todas as coisas foi mudando à minha vista. […] habituei-me a julgar o que se me apresentava, não através do que os outros pensavam, mas sim através do meu próprio raciocínio que se ia libertando gradualmente dos preconceitos’.
Virgínia tinha pela frente uma vida de privilégio, mas depois do divórcio violento, espoletado pela sua homossexualidade, a família, como represália, corta-lhe o acesso aos bens. Fugindo do escândalo, que fará com que lhe seja retirada a guarda dos três filhos, segue-os até à Suiça, onde estavam em colégios internos, corria o ano de 1918. Para assegurar a sua subsistência tem de trabalhar muito e vira-se para a escrita e tradução.
Vai sobressair na literatura infanto-juvenil, mas também no romance, impressões de viagem e narrativas históricas nacionalistas. Sempre ao lado dos filhos, que aceitam a sua homossexualidade, muda-se para Paris, “onde vai conhecer a boémia artística francesa e aventurar-se cinema”, revela Joana Leitão de Barros.
Funda a produtora Fortuna Films e filma A Sereia de Pedra, em 1922, e Os Olhos da Alma, no ano seguinte, ambos escritos por si. Já com 50 anos, e no final da década de 1920, encontra a escultora inglesa Pamela Boden, 31 anos mais nova, com quem partilhará o resto dos seus dias. “Virgínia gosta de sentir a sua energia jovial e e tempestiva por perto, mas incentiva-a a viajar e a ser independente”, conta a escritora.
Com os filhos a viver em Portugal, e a sua ligação ao Estado Novo consolidada como delegada do governo na Sociedade das Nações, regressa ao país com Pamela, em 1938. “Por essa altura, foram já editadas as suas primeiras narrativas publicadas na coleção “Pátria”, do SPN, ilustradas por Pamela, que se configuram como instrumento de propaganda ideológica”, explica.
A cumplicidade de Virgínia com os filhos continua forte. Um deles, Luís Manuel, economista e administrador da Casa Bensaúde, tornou-se uma figura marcante em Milfontes, depois de ter regressado de África, e comprado o Forte, em 1935, onde organiza tertúlias e festas. Mas nunca esqueceu o repúdio familiar: “quando herdou uma carruagem com as armas dos Nova Goa, substituiu os vidros por redes e transformou-a no galinheiro do Forte”, sublinha Joana Leitão de Barros. Vírgínia e Pamela moviam-se no círculo dos pintores surrealistas e cubistas e António Dacosta pintou-as, naquele que terá sido o primeiro retrato de um casal lésbico na história da arte portuguesa, hoje exposto no Museu de Angra do Heroísmo.
Memórias da professora de História que marcou gerações de raparigas
Joana Leitão de Barros guarda as melhores memórias de Luisa Bouza Serrano, a sua eterna professora de História, que se deslocou à Cupra City Garage para a ouvir. “Era a primeira professora de que falavam as alunas. Acaba por ser uma mulher especial na minha vida pelo que representou para várias gerações de raparigas, simbolizando o lugar das professoras.”
Com raízes nortenhas, nascida depois da Segunda Guerra, começou o seu internato no Instituto de Odivelas, em 1954, e veio a ser, durante quatro décadas, docente no Colégio Sagrado Coração de Maria, em Lisboa.
Hoje, quase com 80 anos, atreveu-se a escrever as suas memórias, “num país em que não há tradição memoralista”, no livro autobiográfico Nascida em 1944, prefaciado por Joana Leitão de Barros. “Sinto-me honrada, por entre tantas alunas de História, a Luísa me ter convidado a mim.” E acrescenta: “Continuo a achar que a literatura e a história são o que há de melhor para entender o mundo, este salto ao passado ainda recente é muito rico, não há inteligência artificial que nos valha.”
Sobre a vida e o testemunho desta mulher desassombrada, Joana Leitão de Barros escreve no prefácio da obra: “Esta narrativa autobiográfica despretensiosa, num país de tão escassa tradição memorialista no feminino, entra tranquilamente na História silenciada das mulheres. Teremos de ver nela a raridade de uma mulher portuguesa que constrói a sua própria história e, consequentemente, a história de tantas outras mulheres, cujo lugar e expressão tanto se foi transformando, filhas e mulheres de oficiais, professoras que marcaram gerações sucessivas.” […] “nesse período da pós-revolução foi Professora de História nesse colégio católico – onde anos mais tarde seria sua aluna – ensinando uma disciplina estruturante e essencial na forma de compreender o mundo e a sociedade. Bem-disposta e cordial, as suas aulas cinemascópicas’ […] eram um momento alto no quotidiano das estudantes de Letras, de 16 e 17 anos, muitas de nós vindas de famílias comprometidas com o regime, a quem explicava, seguindo o programa e esforçando-se por redobrar a objectividade e facultar integralmente os textos de apoio, o papel da luta de classes desde épocas remotas. De tal maneira que ainda recordo as suas aulas brilhantes sobre a Crise Dinástica de 1383/1385, que ganhavam contornos realmente cinematográficos.”
A história de uma mulher que teve um leopardo no jardim
A intenção de resgatar mulheres perdidas na História levou Joana Leitão de Barros a entrar na vida singular da aristocrata Genoveva de Lima Mayer Ulrich, que nos anos 20 do século passado se passeava por Lisboa com um leopardo pela trela. Uma mulher absolutamente contraditória, que viveu como lhe dava nas ganas, que a fascinou e lhe dedicou a biografia romanceada Veva, a sua estreia no romance histórico. “Parti de um espólio desconhecido, grande parte correspondência, e comecei a aproximar-me, a relacionar-me com o que ali estava. Foi preciso juntar as peças porque eram muitos os documentos não datados e sem destinatário.”
Veva levava sempre a melhor. Quebrou padrões e tabus. “Estava constantemente a cavar um fosso de autonomia, desafiou Salazar e os costumes da época, tem opinião política e é massacrada pela critica e conservadorismo.” Casada com Ruy Ulrich, por duas vezes embaixador em Londres, Veva é também novelista e dramaturga, uma intelectual que publica opinião e discorre sobre sociologia e política internacional, assumindo publicamente a sua oposição ao nazismo e ao fascismo italiano.
Ninguém ficava indiferente à personalidade fascinante de Veva, que tinha uma corte de amigos com quem se correspondia, especialmente com Alfredo Pimenta, a quem escreveu durante o período em que foi embaixatriz em Londres: “Eu hoje sou um instrumento articulado, com um cérebro simples, magistralmente imbecilizado. Eu Sou? = uma parva. Estou embrutecida, idiota, não tenho espírito, não tenho critério, posso sorrir seis quatros de hora a fio sem dizer nada ou dizer imbecilidades, seis quartos de hora a fio sem pensar um segundo. Autómato perfeito, manequim de gala, boneca de cartão pintada três vezes ao dia, instrumento dócil do fútil, do pueril, nula no encéfalo e na fala, possuidora de toda a banalidade civilizada que é a educação suprema, fantoche macabro e amável, sacerdotisa dos snobíssimos rituais, cretineta “em série” com diadema na testa, tornei-me estúpida integralmente. Sou avatar? Sobrevivente? Reincarnada? Morta? Morta!»
Outras mulheres inspiradoras
Fascinada pelas mulheres do passado, Joana Leitão de Barros confessa que é o eterno século XIX que a inspira, lançando o repto para a plateia: “Quem neste grupo já ouviu falar de Mercedes Blasco, a escritora e atriz escandalosa que durante a I Grande Guerra foi enfermeira voluntária em Bruxelas e morreu na miséria? Ou quem foi Ema Romero, música e mecenas, casada com Câmara Reis, fundador da Seara Nova?”
Considera que esse século é tão rico que, diz, “as mulheres da atualidade posso deixá-las para serem pesquisadas por outras jornalistas.” Ainda assim, dá conta de uma série de mulheres intrigantes e contraditórias, mais contemporâneas, sobre as quais lhe interessa uma escrita mais intimista, como a advogada de Mamadou Ba, Isabel Duarte, ou Maria Cristina da Silva José de Mello, e ainda Leonor Beleza e Teresa Patrício Gouveia. Também não põe de lado a possibilidade de escrever sobre um outro tema que a seduz. “Gostava de revisitar o caso de cinco mulheres da classe alta que nunca tinham trabalhado e que, no pós 25 de abril, arregaçaram mangas, criando negócios prósperos que ainda estão vivos.” Todas estas mulheres extraordinárias que resgatou do esquecimento “ajudam a perceber-me melhor. Daí a importância das memórias para empoderar as mulheres.”
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