A causa de Maria da Conceição

Maria da Conceição tem um sonho: ver as “suas” crianças do Bangladesh chegarem à universidade. Há 10 anos quase todos lhe diziam que era impossível, hoje o sonho começa a concretizar-se. Para o tornar possível, trocou uma vida confortável de assistente de bordo por maratonas para angariar fundos.

Maria da Conceição rendeu-se às famílias pobres de Daca há dez anos

Uma visita a Daca, no Bangladesh, mudou-lhe a vida. Decorria o ano 2005 e Maria da Conceição era assistente de bordo na Emirates Airline. Voou até Daca e visitou um bairro degradado e um hospital. O que viu de desespero no rosto de crianças e adultos que diariamente lutavam para sobreviver fê-la regressar. Cancelou as férias que já tinha marcado e passou duas semanas nos bairros degradados a lançar as primeiras sementes do que viria a tornar-se a Maria Cristina Foundation.

Faltava-lhe dinheiro, contactos e tempo, mas nada a deteve. Pediu ajuda a familiares, amigos e colegas para contribuírem com o que pudessem, mesmo que fossem amenities dos hotéis. A palavra espalhou-se e, segundo afirmou numa conferência TED no Dubai, em 2011, a sua casa transformou-se num verdadeiro armazém. Dois meses depois da primeira visita a Daca, inaugurou uma escola com 39 alunos. Hoje, são 600 as crianças que vão à escola, recebem livros e outro material, e que têm acesso a vacinas e a cuidados de saúde.

Na base do seu projeto não está a simples entrega de bens de primeira necessidade. Para Maria da Conceição essa era uma solução de muito curto prazo. A essência do seu trabalho está na quebra do ciclo geracional de pobreza através da educação, que dá esperança a famílias que há muito a tinham perdido.

Tinha uma vida confortável mas a viagem fez-me perceber que seria muito feliz a ajudar quem não tem nada.

O que sentiu na primeira vez que visitou Daca?
Foi algo que “bateu forte”. Não conseguia perceber como é que as pessoas conseguiam sequer sobreviver naquelas condições. Claro que muitas delas não sobreviviam muito tempo devido a doenças, à malnutrição e à falta de cuidados médicos, vacinas, etc. Fui adotada com dois anos e criada por uma família muito pobre. Porém, criaram-me bem e senti-me sempre apoiada. Quando viajei até Daca tinha uma vida razoavelmente boa a trabalhar na Emirates e a viver no Dubai, mas a viagem fez-me perceber que não precisava de luxos, nem de coisas materiais. Eu seria muito mais feliz a ajudar quem não tem nada. Decidi então que, no futuro, em vez de ir de férias para locais exóticos, iria para Daca ajudar quem precisasse de mim. Foi assim que tudo começou.

Hoje, quando visita Daca, o que sente depois de tanto trabalho feito?
Quando vejo as crianças (muitas delas já crescidas) e o quanto progrediram através da educação, fico muito orgulhosa. As vidas das famílias também melhoraram consideravelmente: demos formação a adultos e encontrámos empregos para eles nos Emiratos Árabes Unidos e em Oman. Hoje são capazes de sustentar as famílias. Quando os vejo agora e me lembro de quão desesperados estavam quando os conheci, sinto um enorme orgulho e satisfação.

Temos de garantir que os adultos se mantêm saudáveis para que, em desespero, não tenham a necessidade de pôr os filhos a trabalhar.

Quais os projetos que tem atualmente em curso?
Na realidade, o meu projeto principal é só um: ajudar as crianças da comunidade dos bairros degradados de Daca a terminarem os estudos. Tem havido muitos projetos associados, como a formação de adultos (para os ajudar a encontrarem empregos melhores), programas de limpeza das ruas, de melhoria do fornecimento de água e da rede de esgotos, de recolha de lixo, de melhoria das habitações, programas de apoio médico e alimentares, etc. Mas o objetivo máximo é manter as crianças na escola. Temos de evitar que elas fiquem doentes e de garantir que os adultos se mantêm saudáveis para que possam ir trabalhar e não tenham a necessidade de, em desespero, pôr os filhos a trabalhar, ou casar as filhas para terem proveitos financeiros.

O objetivo é cuidar das crianças e também das suas famílias

O objetivo é garantir que as crianças têm condições de ir à escola e as família têm emprego

Segundo afirmou na conferência TED no Dubai, em 2011, oferecer bens era apenas uma solução de curto prazo. As soluções de longo prazo passam por que medidas?
Quando se está a tentar reduzir o nível de pobreza, um ou dois anos é “curto prazo” porque nunca irá fazer uma diferença sustentável em menos tempo. No limite, o nosso principal enfoque é a próxima geração. A maioria das famílias está nesta situação porque chegou a Daca vinda de pequenas aldeias com educação zero. Este facto, aliado a um estatuto social baixo, significa que nunca encontrarão emprego que os ajude a sair da pobreza. Limitam-se a sobreviver, se tiverem sorte. Se nada for feito, as crianças não irão à escola e o ciclo repetir-se-á ao longo de gerações. Estamos a proporcionar educação completa a uma geração, para iniciar um novo ciclo no qual todas as gerações futuras terão uma boa educação e viverão acima do limiar de pobreza.

Deixei o projeto e optei por reunir apoios para colocar as crianças a estudar em boas escolas privadas.

Começou por criar os projetos Dhaka Project e Catalyst, ambos ligados à educação e, mais recentemente, a Maria Cristina Foundation. Ainda lidera todos os projetos?
Ainda sou a líder da fundação (na verdade, a fundação sou apenas eu e alguns voluntários e parceiros). Alguns dos nossos projetos iniciais passaram para o controlo de organizações locais para cumprir regulamentos, etc. Assim que concluímos a escola, com pessoal docente e de gestão, bem como 600 crianças, uma organização local começou a ter um controlo crescente e começámos a ter algumas diferenças de opinião. Não partilhavam a minha visão e não acreditavam que estas crianças pudessem tornar-se algo mais para além do seu baixo estatuto social. Deixei o projeto e optei por reunir apoios para colocar as crianças a estudar em boas escolas privadas. Assim, em vez de termos a nossa própria escola, criámos bolsas em parceira com outras escolas. Agora, as crianças estão a começar a brilhar, a serem os melhores alunos, a ganharem prémios, bolsas universitárias, etc.

As maratonas tornaram-se parte da vida de Maria da Conceição

As maratonas tornaram-se parte da vida de Maria da Conceição

Começou a participar em maratonas e ultramaratonas como forma de sensibilização e para angariação de fundos para uma causa. Continua a fazê-lo?
Ainda estou a tentar aceitar mais desafios para angariar fundos e sensibilizar as pessoas. Cheguei ao Pólo Norte, subi ao Evereste, conquistei três recordes mundiais do Guinness pelas ultramaratonas (e aguardo a confirmação de outros pelas maratonas realizadas). Nunca o teria feito se não fosse por uma causa, por isso, tenho de agradecer às crianças por me terem impulsionado para estas conquistas. Estou a planear alguns desafios novos, mas é realmente difícil. A primeira dificuldade é conseguir patrocinadores. Preciso deles, normalmente empresas, para pagar os custos associados aos treinos e às provas. Em contrapartida, eles conseguem fazer publicidade por estarem associados a uma boa causa. No passado, os fundos que angariámos chegaram a ultrapassar 10 vezes o custo, por isso, é um bom investimento, desde que tenhamos um patrocinador.

Falta só um ano para as nossas crianças mais velhas começarem a completar o ensino secundário.

O nome da fundação, Maria Cristina Foundation, é em honra à sua mãe adotiva. Quais as principais lições que retirou dos tempos que passou com ela?
Claro que estarei eternamente agradecida pelo apoio que a Maria Cristina me deu, por isso, há sempre aquela vontade de querer retribuir a alguém e ajudar os outros de formas semelhantes, mas é muito mais do que isso. Quando visito Avanca [Estarreja, Aveiro], onde cresci, oiço tantas histórias bonitas… ela era uma mulher viúva, muito pobre e com seis filhos biológicos. Mas estava sempre disposta a ajudar as outras pessoas da aldeia. É hoje recordada como a senhora africana que ajudava sempre os outros. Aprendi muito com ela. Aparentemente, eu estava sempre ao seu lado para onde quer que fosse. Sempre tentei ajudar as pessoas, mesmo antes de criar a fundação, e fico muito feliz por ter aprendido isto com a Maria Cristina, apesar de eu ainda ser muito nova na altura para o compreender.

Ainda trabalha como assistente de bordo na Emirates?
Não, apresentei a demissão em 2012. O esforço para conciliar ambas as coisas tornou-se excessivo e a minha saúde estava a ser afetada. Falta só um ano para as nossas crianças mais velhas começarem a completar o ensino secundário. Algumas irão para a universidade, outras irão trabalhar. De qualquer forma, o trabalho da minha fundação ficará mais leve. Talvez a Emirates Airlines me aceite de volta…

O desafio constante é sempre o financiamento. Estamos sempre com falta de fundos.

Qual considera a sua maior conquista até hoje?
As maiores conquistas estão todas relacionadas com o trabalho na fundação, com as “batalhas” que tivemos de travar e as barreiras que tivemos de superar. Provavelmente, a maior conquista foi a mudança da mentalidade da comunidade face à educação. Levou anos. Os adultos têm uma mentalidade de sobrevivência, a curto prazo, e não conseguem ver os benefícios de colocar os seus filhos a estudar. Agora, estão desesperados para que os seus filhos tenham formação, estão a começar a ver que podem ser alguma coisa na vida e que têm boas perspetivas. Mas o desafio constante é sempre o financiamento; estamos sempre com falta de fundos. A educação é processo longo e é extremamente difícil gerar um rendimento constante para cobrir as despesas.

Qual o seu maior sonho?
Sonho, por vezes, em ver algumas das “minhas” crianças a formarem-se na universidade. Esta foi a minha visão inicial quando as conheci, há onze anos. As pessoas costumavam dizer-me que era louca por imaginar que as crianças dos bairros degradados de Bangladesh poderiam chegar à universidade. Mas agora tornou-se uma realidade. Dentro de poucos anos, é provável que tenhamos jovens em universidades na Europa, Estados Unidos e talvez na Austrália.

UMA FORÇA DE MOVE MONTANHAS

capaPara angariar dinheiro para as bolsas de estudo das crianças que se propôs apoiar, Maria da Conceição decidiu entrar em provas que desafiam os seus limites, conseguindo obter patrocínios e sensibilizar o mundo para a causa. Mesmo sem ter, à partida, uma grande propensão para o desporto, a força de vontade venceu: em 2010, subiu ao Kilimanjaro, fez uma expedição ao Pólo Norte e correu uma maratona em cada um dos sete emiratos em sete dias. Em 2013, tornou-se a primeira portuguesa a chegar ao topo do Evereste. Desde então, já fez sete ultramaratonas em sete continentes em seis semanas e sete maratonas em sete continentes em 11 dias, entre outras. É detentora de três Guinness World Records.

Uma Mulher no Topo do Mundo é um livro autobiográfico, no qual Maria fala do seu trabalho de 10 anos nas favelas de Daca e da sua grande aventura de escalada às montanhas dos Himalaias, a 8848 metros de altitude, para sensibilizar o mundo e angariar fundos para levar por diante o seu projeto. “Foi a coisa mais difícil que fiz em termos físicos, mas o cume do mundo é ainda mais bonito do que eu alguma vez poderia ter imaginado”, revelou Maria da Conceição horas depois da descida.

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