Trabalha há 52 anos na Casa Diana, a espingardaria da rua Pascoal de Melo, em Lisboa, fundada pelo padrinho João Corte-Real Trigoso, e foi com ele que ganhou uma profunda paixão pela caça e aprendeu a manejar uma arma como ninguém. Ilda Almeida monta e desmonta uma arma com perícia e sabedoria e diz, quase de uma forma desconcertante, que tem mais medo de mexer num canivete do que numa pistola ou numa espingarda. “O conhecimento das coisas é que nos dá segurança”, conclui com simplicidade.
Foi a primeira mulher armeira em Portugal. Deixou de caçar desde que o padrinho morreu, mas a partir daí assumiu ela os destinos da espingardaria. Tinha 35 anos, mas desde os 20 que ali trabalhava. Foi então que se deparou com um mundo masculino disposto a dificultar-lhe a vida. “Espalharam logo o boato de que a casa estava falida e à venda. Os colegas armeiros começaram por não me ajudar nada e os funcionários da loja também não me aceitaram bem. Tive de lutar muito, até mesmo junto dos organismos onde tinha de pedir autorizações para importar material”.
“Vale sempre a pena lutar quando estamos certas do que queremos.”
A madrinha ainda lhe sugeriu que vendesse o negócio mas Ilda Almeida respondeu-lhe com determinação: “Eles ainda hão-de vir tirar-me o chapéu e beijar-me a mão. E passados três ou quatro anos vieram e eu tenho um orgulho muito grande de dizer que ainda hoje a minha espingardaria é uma das boas de Lisboa”. E insiste num conselho: “Vale sempre a pena lutar quando estamos certas do que queremos. Para as mulheres isto ainda é muito mais importante porque não devem nunca desistir de ser economicamente independentes”.
Mulheres há poucas
Mas Ilda Almeida sempre soube que esta era essa a vida profissional que lhe estava talhada. Ainda foi convidada para trabalhar num banco mas recusou. Os padrinhos João e Maria Beatriz Corte-Real Trigoso, que fundaram a Casa Diana em 1948, souberam transmitir-lhe bem o interesse e a paixão pela caça. “Sempre soube que era este o meu destino”.
A vivência diária na loja, os fins de semana passados à caça da perdiz ou do colin da Virginia (uma espécie de codorniz que o padrinho introduziu em Portugal), na propriedade das Vendas Novas e em Sagres, deram-lhe um invejável conhecimento da área, a par da formação que fez visitando fábricas de armamento em Itália e dos livros sobre o assunto que devorava avidamente. Hoje é uma sumidade na matéria, a quem os colegas armeiros recorrem em caso de grandes dúvidas. E continua a ser das poucas mulheres portuguesas dedicadas a este mundo. Que tenha conhecimento só existem mais três.
“Na minha loja só entram senhoras quando querem comprar presentes para os maridos.”
Também na área desportiva são poucas as mulheres que se dedicam à caça (veja caixa Autodefesa), apesar de esta ser uma modalidade apreciada em Portugal. “Na minha loja só entram senhoras quando querem comprar presentes para os maridos”.
“Não quero falar com a senhora”
Ilda Almeida tem muitas de histórias que provam bem como a mulher não era aceite neste mundo tão masculino. E relembra um episódio passado na espingardaria quando um oficial do exército entrou porque precisou de ajuda para montar uma arma. Só que não contava deparar-se com uma senhora do lado de lá do balcão e assim que percebeu que iria ser atendido por ela “disparou” a frase: “Não quero falar com uma senhora, quero falar com um homem”. E mesmo depois de lhe explicarem que a dona da loja percebia muito mais do assunto do que o funcionário ou o marido, que de vez em quando também dava uma ajuda, o oficial disse: “A sua mulher? A sua mulher é para estar em casa a tratar dos filhos!”. E saiu sem resolver o problema.
“Há 40 anos não se reconhecia a uma mulher competência para nada, muito menos para montar e desmontar uma arma.”
Porém, no dia seguinte regressou. “Pediu desculpa e explicou que não quis mostrar à frente de uma mulher que não conseguia montar uma arma. Eu lá o ajudei e ele foi embora com a arma montada. Esta história passou-se há quase 40 anos! Não se reconhecia a uma mulher qualquer competência para nada, muito menos para montar e desmontar uma arma. Mas eu sempre fui muito lutadora e a minha espingardaria é agora a minha coroa de glória de mais de 50 anos de trabalho à frente deste negócio”, remata.
Um negócio de gerações
O dia é passado na loja a atender e a informar um público quase sempre masculino e é com muito orgulho que Ilda Almeida diz que tem clientes de três gerações: pais, filhos e netos. “Ainda ontem esteve aqui o Manuel Alegre, um cliente muito antigo da casa, com um dos filhos. E eu costumo brincar dizendo-lhe que também sou cliente dele porque sou uma amante de poesia e tenho os livros todos que publicou”.
Mas a Casa Diana também recebe outras famílias cujos descendentes permanecem clientes, como são os casos Champalimaud, Carvalho Martins (Cervejaria Portugália), família Mello, entre outras.
“Estar num lugar destes dá-me também a responsabilidade de informar os mais novos.”
A armeira nunca perde a oportunidade de falar com os mais jovens sempre que um grupo, vindo dos liceus das redondezas, entra para fazer perguntas sobre os produtos da loja. “Gosto muito de os informar porque defendo que a população deve estar informada dos perigos de ter uma arma. Estar num lugar destes também me dá esta responsabilidade”.
E o negócio tem mudado muito? “Muito mesmo. Nos últimos só na baixa de Lisboa fecharam quatro espingardarias. A crise que se vive, a falta de investimento do Estado na caça, a evolução da agricultura e da maneira de trabalhar a terra, abalaram muito esta área”, explica. A verdade é que a quantidade de caça baixou bastante nos últimos 40 anos. “Já não há rolas em Portugal, que era uma ave de emigração”, exemplifica Ilda Almeida.
“Deviam entrar mais mulheres para esta área, porque têm outra sensibilidade e atualmente muita formação também.”
De olhos no futuro
Uma das suas grandes preocupações foi a de honrar sempre a memória dos fundadores da Casa Diana e o trabalho e o investimento que o padrinho João Trigoso fez. “Até importava os ovos de França para as perdizes serem depois criadas bravas e darem mais luta e fuga ao caçador, e terem também mais possibilidades de sobrevivência”, recorda. Mas agora Ilda Almeida pensa na sucessão. “Vou ter de vender o negócio, já são muitos anos de trabalho. Gostava que a loja ficasse nas mãos de alguém apaixonado pela área e que seja honesto. Já tive propostas para vender, mas não vendi. O dinheiro não é o mais importante”. Gostaria de o passar a uma mulher? “Gostaria de o passar a quem continuasse um percurso semelhante e acho que deviam entrar mais mulheres para esta área, porque têm outra sensibilidade e atualmente muita formação também. Por isso, procurem o conhecimento, preparem-se bem, porque a área é muito complexa”.
AUTODEFESA
Ao abrigo da nova legislação é possível ter-se acesso a uma arma de defesa de grande utilidade às mulheres: o spray de defesa ou o spray pimenta, esclarece Ilda Almeida. Não mata mas imobiliza o atacante e permite ganhar tempo para a fuga. Obriga a uma licença de porte mas para isso basta tratar de alguma documentação (atestado médico, registo criminal, fotografia), entregar no Comando Metropolitano de Lisboa e pedir a licença da classe E. Uma licença mais simples de se conseguir do que a de porte de arma e que dá acesso à compra deste produto.