Na vida de todos nós há sempre datas-chave, que nos marcam pela positiva ou pela negativa. O dia 11 de março de 1999 marca um antes e um depois na vida de Marta Guimarães Canário, 40 anos, assessora de imprensa da Novabase, e não pelas melhores razões. Nesse dia, Marta entrou no polibã pelas suas pernas, mas saiu em braços e desde então desloca-se numa cadeira de rodas. Como diz na contra capa de Ser Feliz é uma Escolha “este é o início da sua história, mas não o fim”.
Este é um livro sobre a capacidade de enfrentar as adversidades sem baixar os braços e de ser feliz apesar das partidas do destino. Deixamos um excerto do testemunho inspirador desta mulher que ficou paraplégica aos 15 anos, mas a quem a cadeira de rodas nunca roubou a vontade de viver.
“Há notícias que nos abanam por dentro. Em que sentimos uma mão a sufocar-nos as entranhas. E que nos levam a pensar: “Mas porque é que tem de ser assim?”. Custam a aceitar. O coração estremece. O lado emocional do cérebro começa a fazer contas ao que aí vem. Por vezes, o lado racional atrapalha-se, tropeça e cai. Chega a precisar de ajuda para se levantar novamente. Mas, digerido o impacto inicial, o corpo reergue-se. Larga o Word, simples e dado às emoções, e mune-se do Excel, frio, distante, que calcula e analisa. É nesta altura que o lado matemático do cérebro começa a ganhar espaço e obriga o corpo a manter-se à tona.
Aprendi a distinguir o essencial do acessório. O que interessa do que não interessa.Traço o caminho para chegar onde quero.
Comigo tem sido assim. Na minha vida, em que o lado emocional foi sempre tão predominante, foram muitas as vezes em que tive de deixar o lado oposto tomar as rédeas. Assumir o controlo da situação. Tanto na vida pessoal como profissionalmente. Nem sempre foi fácil. Houve grandes batalhas entre os dois. E umas vezes ganhou um, outras o outro.
Aos 15 anos, quando acordei do coma sem sentir as pernas, o meu lado lógico entrou em ação. Em pouco tempo constatei que se tratava da parte menos importante do meu corpo. Afinal, o coração, a cabeça, aquilo que me tornava eu e me ligava ao mundo, mantinha-se intacto. Funcional.
Anos mais tarde, durante a septicemia, foi a vez de o lado esquerdo dominar a situação. As minhas próprias emoções viraram-se contra mim. E por pouco não sucumbi. Mas era cedo. Por isso, o lado matemático deu um murro na mesa. Começou a fazer contas, a somar força com força e dividiu-a pelas partes do meu corpo debilitadas pela infeção. O resultado foi uma grande vitória contra a septicemia.
Somadas as células no Excel da vida, o que fica de tudo isto? As cicatrizes e as lições para o futuro, sem dúvida. Tudo aquilo por que já passei deixou marcas visíveis no meu corpo, mas também me mudou por dentro. E isso vê-se na minha alma. Aprendi a distinguir o essencial do acessório. O que interessa do que não interessa.Traço o caminho para chegar onde quero. Onde é necessário chegar para ser feliz. E, quando o percurso se prevê longo, dou um passo de cada vez. Vivo um dia atrás do outro. Sempre focada no que defini, à partida, como ponto de chegada. Por fim, tento encontrar um lado positivo em tudo. Porque, acreditem, há sempre. Mesmo nas coisas mais duras. Mesmo naquelas que nos parecem incompreensíveis e injustas. E é desta forma, pedra a pedra, que se constroem castelos. Inabaláveis.
Já dei muitas vezes por mim a acordar só porque sim. Tomar o pequeno-almoço porque sim. Depois um duche porque sim. Sair para o trabalho porque sim. Dias em que chego a casa à noite e só me lembro daquilo que correu mal. Que quero mudar de vida. Quero menos stress. Menos caos à minha volta. E vejo tanta gente a viver assim. A viver a vida toda assim! Quando este filme merece ser visto ao contrário. De outra perspetiva.
Agradecer, valorizar
Devíamos levantar o rabo da cama, ir à janela e respirar o ar daquele dia. De mais um dia. E agradecer por isso. Acordar quinze minutos mais cedo que o habitual para pôr a mesa do pequeno-almoço e comer com calma, saboreando e lendo mais umas páginas daquele livro que nos tem feito sonhar. E agradecer por isso.
Tomar um duche, sim, mas sentindo a água a escorrer pelo corpo, milímetro por milímetro. Cara, pescoço, ombros, peito, barriga, pernas e pés. Tocar com as mãos na água. Sentir a água nas mãos. E agradecer por isso.
Há dias-filhos-da-mãe. Há momentos em que focarmo-nos no essencial é uma luta de bravos. Mas eu já estive perto de não acordar.
Escolher a roupa que melhor nos fica. Dar um jeito no cabelo. Ou pôr um bocadinho de rímel e um brilho nos lábios. E agradecer por isso.
Chegar ao emprego e espalhar “bons dias” com um sorriso no rosto. Por muito que se adivinhe um dia complicado e cheio de trombas de elefante, cobras venenosas, sapos para engolir, caras de osga e olhos de carneiro mal morto. E, claro, agradecer por isso.
Depois, chegar a casa, desligar o botão “trabalho”, ligar o “chegaste a casa, relaxa”. E agradecer por isso.
Há dias-filhos-da-mãe. Há momentos em que focarmo-nos no essencial é uma luta de bravos. Mas eu já estive perto de não acordar. Já estive mais de um ano sem fome e a emagrecer. Já estive quase dois sem poder tomar duche. Já estive muitos meses sem poder trabalhar. E hoje só posso agradecer por ter voltado a conseguir fazer tudo isto…
Claro que continuo a ter dias-filhos-da-mãe. Mas, nesses, obrigo-me a parar. A respirar fundo. E a seguir em frente.”