Nascida na África do Sul, filha de emigrantes madeirenses, aos 8 anos Sandra Lira foi viver para a Madeira. O sonho de ser piloto desperou no 10.º ano, mas acabou por se licenciar em Matemática, em 1999, pela Universidade da Madeira, e por terminar os Estudos Avançados de Doutoramento em Ciências de Educação, pela Universidade de Sevilha, em 2006.
Foi exatamente nesse ano que percebe que o sonho de ser piloto é incontornável e inscreve-se no curso de piloto de linha aérea em horário pós-laboral, concluindo a formação em Julho de 2008. Continuou a estudar e licenciou-se em Ciência Aeronáuticas, em 2012. Os sucessivos convites para dar aulas em escolas de aviação que começou a receber ainda durante o curso de pilotagem, fizeram de Sandra Lira uma instrutora de voo e não uma piloto.
Entre 2014 e 2016, exerceu funções como instrutora de Operational Procedures na Escola de Aviação AWA. Em 2016, aceitou a proposta de ser instrutora exclusivamente na GAir, onde também foi coordenadora, em todas as bases do mundo, das disciplinas Operational Procedures, Mass and Balance, Aeroplane Performance. Também como coordenadora e instrutora acumulou funções na base do Dubai, mais especificamente na Emirates Aviation University. Em Junho de 2017, depara-se com uma das decisões mais difíceis da sua vida, quando surgem duas oportunidades de trabalho no Dubai. Na Emirates Aviation University para ensinar Matemática, e na Alpha Aviation Academy (AAA) para ser instrutora teórica de pilotos (TKI – Theoretical Knowledge Instructor). Começou a trabalhar na AAA em Setembro 2017 e em Outubro 2017 ingressou na Emirates Flight Training Academy (EFTA). Desde Novembro de 2018 que trabalha como TKI na EFTA.
Sandra Lira orgulha-se da profissão que tem hoje, especialmente do facto de dar aulas na “melhor escola de aviação do mundo”. Por isso, apesar das imensas saudades que tem de Portugal, não pensa regressar nos próximos tempos.
Quando percebeu que queria ser piloto?
Não sei se faço parte dos pilotos que sonham ser pilotos desde crianças… Apercebi-me dessa minha vontade antes do 10.º ano, na altura de escolher a área e profissão a seguir. No entanto, por questões familiares, quando terminei 12.º ano, não ganhei as asas que queria. Tive de optar por um curso na Universidade da Madeira e sendo muito boa aluna em Matemática, essa foi a opção. Em 1999 licenciei-me em Matemática para ensino.
Fiquei logo efetiva no quadro da Direção Regional de Educação e esse conforto, aparentemente “camuflou” o sonho de ser piloto. Não estava completa, em 2003 mudei-me para Lisboa para prosseguir estudos e percorri até ao doutoramento em Ciências de Educação .
Em Outubro de 2006, jantei com um casal amigo, ele comandante na TAP e ela assistente de bordo, e naturalmente se proporcionou eu falar do meu “amor escondido”. Na altura, já mais informada e incentivada, senti o sonho tão próximo e a depender exclusivamente da minha vontade e força. Após duas semanas já estava inscrita na Aerocondor.
Simultaneamente, estava a terminar a tese do doutoramento e cheguei a fazer a primeira defesa da tese em Dezembro de 2006 – dava aulas no período da manhã, voava e estudava nas tardes e as aulas teóricas do curso eram à noite. Fiz o meu exame final de piloto em final de junho de 2008.
Sinto-me um “instrutor” e todos os meus colegas e superiores me vêm como UM instrutor.
Como surgiu a oportunidade de trabalhar no Dubai?
A escola onde me formei como piloto, na altura já como Gestair, em Junho de 2008 convidou-me para ser instrutora de Matemática e Física para pilotos. Fiquei desde então ligada ao ensino na aviação e durante oito anos acumulei vários empregos com a profissão de professora – ensinei na licenciatura de Ciências Aeronáuticas no ISEC (Instituto Superior de Educação e Ciências) e na Universidade Lusófona e fui instrutora de disciplina aeronáuticas também na AWA (Aeronautical Web Academy).
Em 2016, a escola de aviação que me formou como piloto, na altura já como GAir propôs que eu fosse exclusivamente instrutora para a GAir, a tempo inteiro, e aceitei. Neste contexto, fui enviada várias vezes ao Dubai para dar aulas na Emirates Aviation University, na altura em parceria com a GAir. Desta minha participação, surgiram dois convites em Junho de 2017 e optei pela Alpha Aviation Academy (AAA) onde comecei a dar instrução em Setembro de 2017. Umas das decisões mais difíceis da minha vida.
Desde que vim para Emirados Árabes Unidos, o meu propósito era trabalhar para a Emirates Flight Training Academy (EFTA), concorri e estou cá desde Novembro de 2018.
É a única mulher a dar formação na aviação civil no Dubai. Quais os principais desafios de trabalhar num mundo ainda predominantemente masculino?
Atualmente, já não sou a única instrutora teórica de Aviação Civil nos Emirados Arábes Unidos, fui a primeira na AAA e fui a primeira na EFTA.
Sinto-me um “instrutor” e todos os meus colegas e superiores me vêm como UM instrutor. O maior desafio deste momento, é o padrão de exigência de conhecimentos e qualidade de instrução, naturalmente estabelecido pela Emirates. Sei que estou ao nível, senão não me contratavam, mas há que mantê-lo, estudar e melhorar continuamente porque estamos sempre a ser avaliados.
O que mais gosta no seu trabalho?
Adoro poder transmitir conhecimento! O conhecimento é uma riqueza pessoal que todo o ser humano tem, uns mais do que outros, e cada um nas suas aéreas, mas no meu entender tem validade se for transmitido.
Eu sou muito mais rica, quando transmito aquilo que sei e mais ainda se for sobre aviões. Adoro ver a cara dos meus alunos quando estão a aprender. Adoro a sensação de que estou a “criar” pilotos. Adoro encontrá-los já pilotos e sentir a gratidão e admiração deles, a mesma que senti e sinto por todos os professores e instrutores que tive, nas várias formações que recebi.
A aviação tem uma particularidade: a de que não basta ter a formação e chegar lá. É obrigatório manter o conhecimento atualizado e a proficiência no voo. Um piloto estuda para toda a vida e é continuamente avaliado
Tem role models no mundo da aviação?
Refiro sempre a Amelia Mary Earhart, a primeira mulher a fazer um voo sobre oceano, ainda no anos 30. Mas sou admiradora de qualquer pessoa que seja lutadora e que consiga as coisas por si. E quanto maior a luta, mais admiração tenho. Os que mais me inspiraram e continuam a inspirar, são aqueles que assisti, senti e sinto que têm o amor e a “luta” pela aviação.
A aviação tem uma particularidade: a de que não basta ter a formação e chegar lá. É obrigatório manter o conhecimento atualizado e a proficiência no voo. Um piloto estuda para toda a vida e é continuamente avaliado. Há vários nomes que me vêm a cabeça, todos eles que cruzei algures na minha carreira. Desde Instrutores, colegas e amigos… Alguns nomes, surgem muito naturalmente na minha mente, se mencionasse apenas um não estaria a ser justa. Admiro muitos e muitas.
Quais as prinicpais diferenças que nota entre o Dubai e Portugal?
A diversidade cultural e a naturalidade com que se vive nela. Em Portugal nota-se mais as diferenças culturais. Antes de sair de Portugal, a GAir tinha alunos de todo o mundo, e lá eu já ensinava em inglês e a diversas culturas. Foi sem dúvida uma ajuda enorme para a adaptação aqui nos Emirados Árabes Unidos.
Já ensinei alunos de mais de 20 nacionalidades e o sentimento é o mesmo; o de não querer desrespeitar nenhuma das culturas. No entanto, aqui vive-se a diferença cultural com maior naturalidade. Quero respeitar todas as culturas, assim como sinto que respeitam a minha cultura portuguesa, e confesso que tenho algum medo de algum dia falhar nisso. Se acontecer, certamente será inconsciente, na falta de vocabulário ideal para me exprimir como se fosse na minha língua materna.
Os meus alunos atuais, são na maioria Emiratis mas os meus colegas são de outras nacionalidades, as relações fluem naturalmente com respeito e consideração entre todos.
Há várias profissões técnicas neste mundo da aeronáutica e em todas há mulheres a trabalhar. Somos sempre em menor número, mas unicamente por nossa culpa.
Que rotinas criou no Dubai?
Em dias de trabalho, chego a casa por volta das 17h. Este horário permite-me estar na piscina, ir ao ginásio. Por ser tão seguro, posso esperar pela noite, quando está menos quente e correr ao ar livre sozinha.
Tenho o grande privilégio de ter muitos amigos e maior privilégio ainda por serem portugueses, juntamo-nos varias vezes para jantar nas nossas casas, e desde que tenhamos os condimentos, são pratos da gastronomia portuguesa. Aos fins de semana juntamo-nos, saímos para jantar, para fazer praia, para ir ao cinema e outros lazeres. Há muita oferta cá. Tenho ainda muito por visitar e conhecer.
Tem saudades de Portugal?
Claro que sinto saudades de Portugal. Saudades do meu irmão e da minha mãe, da família e dos amigos de uma vida. Saudades dos lugares que fazem parte das histórias da minha vida, saudades da comida, dos ares, do mar e dos cheiros. Imensas!
Sair do nosso país é um ato de coragem.
Planeia voltar a dar instrução em Portugal?
Do ponto de vista profissional e de carreira, considero que estou na melhor escola do mundo, dificilmente vou para outra escola de aviação portuguesa.
A possibilidade existe sempre, nunca na minha vida neguei um desafio profissional. Mas não é o meu plano. Penso que isso poderá acontecer, se for movida pelo coração. Realço, que estou a dizer isto, com muito respeito pelas escolas aviação do meu país, porque as conheço como instrutora e como aluna, obviamente as respeito e considero.
Que conselho deixaria a uma jovem que deseje fazer carreira na aviação?
Sou abordada nesse sentido várias vezes e digo sempre que a carreira aeronáutica vale a pena, É um mundo apaixonante! Há varias profissões técnicas neste mundo da aeronáutica e em todas há mulheres a trabalhar. Somos sempre em menor número, mas unicamente por nossa culpa. Devido à natureza da mulher, pode ser mais difícil, mas não é impossível. Se é a profissão que desejam, o medo não pode ser mais forte do que a vontade. Serão felizes se estiverem a trabalhar naquilo que gostam, seja qual for a profissão
As várias companhias aéreas do mundo têm dados estatísticos sobre as mulheres na aviação, nas diversas profissões que a aviação dispõe, e estão entre os 3% e os 15%, com tendência a crescer. Aqui nos EAU, também está a crescer o número de mulheres na aviação. São bem vindas, só é preciso que se proponham a isso.
Independentemente da profissão, sou apologista que escolher outra, que não a que queremos mesmo, é adiar o inadiável. Sou a prova disso.