Não aceita que a tratem por “Dr.ª” porque desistiu do curso de Direito no 2.º ano, quando soube que o pai não a deixaria trabalhar concluida a licenciatura. Após o casamento, o marido preferia que se dedicasse à educação do filho, mas Rosalina tornou-se apresentadora de programas de televisão e responsável pelo primeiro suplemento feminino a cores de um jornal português: A Capital. No entanto, só saía de casa depois de o filho entrar na carrinha do colégio e à tarde fazia questão de estar em casa antes de ele regressar.
Entrou na publicidade, um mundo então dominado por homens, quase por acaso, mas deixou a sua marca. Foi a primeira mulher a presidir a um escritório da Ogilvy em todo o mundo e a uma multinacional em Portugal. Admite que isso lhe deu mais mediatismo do que merecia, mas também terá ajudado a abrir portas para outras mulheres. O seu nome ainda hoje é uma referência na publicidade.
O reinado de duas décadas chegou ao fim quando passou a chairwoman e percebeu que perdera a capacidade de influência. Vendeu a sua participação à Ogilvy, assegurou-se de que a agência portuguesa não ficaria dependente de Espanha e retirou-se da publicidade. Desde então, dedica-se aos negócios da família, que estão concentrados na holding FTM, com negócios na metalomecânica e imobiliário, e às inúmeras causas que faz questão de apoiar.
A rebeldia com o pai
Como foi a sua infância?
Nasci em Montemor-o-Novo, de onde saí aos 3 anos. O pai era secretário de Finanças e, tal como os juízes, tinha de mudar frequentemente de local para não sofrer influências. Estivemos por duas vezes em Soure, na Lousã, em Góis, em Vila do Bispo, em Lagos. Andámos à volta de Coimbra porque estudei lá e o pai queria estar perto de mim. Fui filha única até aos 8 anos.
Habituei-me a conquistar amigos que, passados três ou quatro anos, tinha de deixar para trás. Por vezes digo a brincar que sou filha de saltimbanco.
Qual o curso que fez?
Estudei Direito, mas não terminei. Sou do tempo em que a função da mulher era casar e ter filhos. Portanto, quando o pai me disse que eu poderia fazer o curso, “mas trabalhar, nunca!”, respondi: “Não vou acabar!”.
Tinha esperança de que o seu pai cedesse?
Não. O pai era muito rígido. Eu sabia que ele não mudaria.
O que a levou a escolher Direito e a ir para a faculdade, sabendo de antemão que a opinião do seu pai era essa?
O meu grupo de amigas estava todo em Letras ou Direito.
A sua mãe não trabalhava?
A mãe era de uma doçura extraordinária. Era exatamente aquilo que os livros retratam como a dona de casa submissa. O importante era o marido, os filhos e a casa, por esta ordem. Estava sempre de acordo com o pai, e essa submissão era considerada trabalho.
[Na faculdade] havia poucas mulheres, mas um ambiente muito aberto, de camaradagem. Os professores eram todos do sexo masculino, mas tratavam-nos simplesmente como pessoas – nem nos prejudicavam nem nos beneficiavam.
Nunca intercedia por si?
A verdade é que sempre fui muito rebelde. Em pequena era um pouco maria-rapaz, subia às árvores, jogava ao peão e ao mata com os amigos nas férias. No meio da minha rebeldia lia Sartre e fazia questão de que o meu pai soubesse. Era uma forma de o provocar. Nas eleições apoiei Humberto Delgado. Imagine o que foi isso para o pai, como secretário de Finanças?! Foi apenas para contestar a sua autoridade.
Como era o ambiente na faculdade em 1959?
Havia poucas mulheres – não mais de 10% –, mas um ambiente muito aberto, de camaradagem. Os professores eram todos do sexo masculino, mas tratavam-nos simplesmente como pessoas – nem nos prejudicavam nem nos beneficiavam.
O que fez quando abandonou o curso?
Fiquei em casa – o pai já estava colocado em Lisboa, continuei a estudar línguas porque isso para o pai já era admissível e para mim era a forma de sair de casa. Fiz o Britânico e a Alliance Française durante três anos.
O primeiro emprego
Como conseguiu o seu primeiro emprego?
Queria ser independente, contrariando sempre a vontade do pai, mas decidi: “Não vou ser dona de casa!”. Decidi ir à Cidla. O meu conhecimento do meio empresarial era limitado, mas ouvia o pai receber chamadas do Francisco Casal Ribeiro em casa, que era administrador todo-poderoso da empresa. Apareci sem avisar e pedi para falar com ele, anunciando-me como filha de João Miguens. O senhor não recebia quase ninguém, mas como nesta altura andava em discussões com o pai, que estava a implementar o Imposto de Transações, recebeu-me. Disse-lhe que tinha estudado Direito, que nunca tinha trabalhado, mas que queria trabalhar. Quando me perguntou se eu queria começar no dia seguinte, o que não era habitual, disse imediatamente que sim.
Foi necessário enfrentar o seu pai?
O pai nem sonhava o que eu tinha feito! Eu tinha faltado a uma aula do Britânico para fazer este contacto. Quando cheguei a casa e anunciei: “Vou trabalhar para a Cidla”, o meu pai disse imediatamente: “Se esses indivíduos julgam que por te darem trabalho me compram, estão completamente enganados!”. Durante três meses só me disse “bom dia” e “boa noite”, mais nada!
Nem mesmo esse silêncio durante três meses a fez hesitar?
Não.
Qual era a sua função na Cidla?
Era relações-públicas. Atendia reclamações. Só quando comecei a trabalhar é que me apercebi da grande dificuldade que havia em entrar naquela empresa. E tenho de admitir que foi a única vez que usei o nome do pai e ele nunca soube. Estive lá três anos.
Que empresas eram consideradas escola nessa altura?
A Sacor, da qual a Cidla fazia parte, os bancos, a Sociedade Nacional de Sabões – da qual, anos mais tarde, fui presidente da Assembleia Geral.
O casamento
Como conheceu o seu marido?
Conheci o Francisco [Machado] no Britânico. Quando começámos a namorar os pais não gostavam muito, porque o Francisco tinha vindo de Inglaterra, era muito playboy [risos]. A verdade é que parece que isto aconteceu há 200 anos, pois nunca fui ao cinema, a um baile, a uma saída com o Francisco. Uma coisa que não parece admissível, sobretudo em mim. Questiono como é que nessa altura não dei o chamado grito do Ipiranga!
Quando lhe disse [ao marido] que me convidaram para fazer o programa de televisão na RTP, e que até ganharia dinheiro, respondeu-me imediatamente: “Se é para ganhar dinheiro por que é que não vende amendoins aqui à porta nos dias de futebol?”.
Já trabalhava nessa altura.
Por isso mesmo me surpreendo.
Quando casou?
Casámos em junho de 1966 e então terminou a interferência paterna. Mas não a vontade de intervir. Quatro ou cinco meses após o casamento, o Francisco trouxe-me da Suécia três vestidos. Era a altura da minissaia. Quando os mostrei ao meu pai, disse-me: “Agora já não sou eu que mando em si. É o seu marido. Porque comigo não os vestia”.
No meio dessa rebeldia, como ficava a sua amizade com as mulheres?
Surpreendia-as! Mas sempre tive mais amigos rapazes.
Essa ideia contrasta com a sua imagem muito feminina.
O mais importante é ser uma pessoa que adora a vida, aquilo que faz, seja em que área for. Nunca pensei: “Não posso fazer isto porque sou jovem ou porque sou mulher”. Mas sempre adorei ser mulher!
Continuou a trabalhar após o casamento?
Casei e fiquei de esperanças. Quando o meu filho tinha dois anos, numa conversa aberta, o Francisco disse-me que era melhor eu deixar de trabalhar até o João Pedro ir para o colégio. Depois disso, logo decidiria se voltava.
Entretanto, a Maria Emília Cancella de Abreu, que tinha a revista Banquete, convidou-me para fazer um programa de televisão. Disse-lhe que não percebia nada de receitas, mas ela insistiu e aceitei.
Como surgiu esse convite?
Quando nos casámos, a Luísa Salazar de Sousa, que também tinha um programa de televisão, Nós as Mulheres, convidou-me para fazer a análise do papel da mulher na política, no desporto. Cheguei a casa muito entusiasmada para partilhar a notícia com o Francisco. Na altura morávamos no Campo Grande, junto ao estádio do Sporting e aos estúdios da RTP. Quando lhe disse que ela me convidara para fazer o programa de televisão na RTP, e que até ganharia dinheiro, respondeu-me imediatamente: “Se é para ganhar dinheiro por que é que não vende amendoins aqui à porta nos dias de futebol?”. Respondi-lhe: “Casámos há pouco tempo e estamos a construir uma vida, por isso ou respeitamos a personalidade de cada um, ou o casamento acaba agora”. Não me disse nada e acabei por fazer o programa.
Era a questão da independência financeira, porque quem ganhasse dinheiro também tinha uma voz?
Sim, era a questão da independência. Eu era uma rebelde, mas com regras e com respeito por mim. Ele tinha de me dizer se aceitava ou não. Esta era a única maneira de ser autêntica com aquilo que queria.
E na sociedade, como era encarada essa sua decisão?
No fundo, as pessoas também não sabiam destas atitudes de rebeldia. Como eu não tinha criado amigas de raiz aqui, as pessoas não eram tão íntimas que soubessem os pormenores da minha vida. Mesmo os próprios pais não souberam da reação que eu tive com o Francisco, exceto a minha sogra, que dizia sempre que eu estava certa. E porquê? Porque ela foi sempre submissa ao marido.
Depois desse programa houve outras experiências profissionais.
Entretanto, um primo direito da minha sogra, a pedido de Salazar, fez o jornal A Capital e convidou a Luísa Salazar de Sousa para fa- zer o suplemento feminino. Como a Luísa viajava muito sugeriu que fosse eu a fazer a atualidade, e acabei por também me envolver bastante na criação do suplemento. Foi a primeira vez que eu entrei numa tipografia. Criei assim o primeiro suplemento feminino a cores, que tinha a mesma linha de análise e noticiário sobre a mulher no mundo que já fizera no programa de televisão. Escrevia uma crónica sobre a atualidade e ajudava na preparação do suplemento.
A publicidade
Quando surge a publicidade?
Para o lançamento deste suplemento precisávamos de uma agência de publicidade porque senti que era importante dar a conhecer o suplemento além dos leitores do jornal. Foi nessa altura que se começou a publicitar a imprensa e a ideia foi minha. Convidámos várias empresas e ganhou uma local, a Agência Luís Lagrifa. Mais tarde, já com o suplemento lançado e com os objetivos cumpridos, essa agência convidou-me para ajudar no seu desenvolvimento como relações-públicas. O Francisco não disse nada, porque já estava conformado, e eu pensei: “Por que não?”. Fiquei até ao 25 de Abril, porque a agência entretanto faliu. Foi então que um grande amigo, o António Dias da Cunha, e o presidente da Varig, desafiaram-me a criar uma agência de publicidade, assegurando que se tornariam meus clientes – estamos a falar do Grupo Entreposto e da Varig. Respondi-lhes que não era publicitária, mas comecei a estudar o tema e aceitei. Em pleno verão quente, em que ninguém ousava abrir uma empresa, nasceu a DC3, com mais três sócios que vinham da Lagrifa.
A primeira vez que Kenneth Roman veio a Portugal trouxe-me uns botões de punho! A secretária ainda não se tinha apercebido de que o presidente em Portugal era uma mulher.
Como viveu o período da revolução?
Com muita expetativa e alguma desilusão. Expetativa pela liberdade como rebelde que era e que sou. Foi uma janela que se abriu para a possibilidade de podermos ser e dizer aquilo que éramos. E que sentíamos. Por outro lado, achei que muito rapidamente o poder foi tomado de uma forma pouco preparada e sem estratégia. Não havia um projeto para o sucesso do 25 de Abril. Tudo aquilo foi uma aventura que correu bem mas que não estava pensada para o dia seguinte. Foi um projeto válido só para acabar com a guerra em África. Acolhemos meio milhão de retornados e fizémo-lo de forma exemplar; e hoje são uma mais-valia.
Na empresa houve algum episódio que fizesse perigar a sua situação?
Não, e curiosamente havia um criativo que era sindicalista e todos tínhamos algum receio. Não houve choque entre pessoas. Houve choque de ideias para contrariar ou para perceber as ideias dos outros. Houve tentativas de medir forças, de provocar.
Como geriu a situação?
Há uma vantagem feminina, que é a sensibilidade e a intuição, que quando bem usada joga a nosso favor. Temos uma linguagem mais próxima das pessoas.
A primeira presidente da Ogilvy
Como surge a oportunidade da Ogilvy?
A DC3 correu muito bem, até que um dia uma prima, que estava no Brasil e era casada com o presidente da Shell, disse-me que tinha um amigo, o presidente da América Latina da agência Ogilvy, que andava a estudar o mercado português e precisava de informações sobre algumas agências. Recebi o presidente da Ogilvy para a América Latina, o Flávio Corrêa, e o presidente europeu, que queriam a minha opinião sobre diversas agências com quem já tinham contactado no intuito de comprarem uma para se instalarem diretamente. Dei-lhes as informações que pretendiam e convidei-os para almoçar no Grémio Literário. Acho que foi aqui que tudo começou. Não só consegui mesa, apesar de o Grémio estar cheio, como durante o almoço pessoas de todas as mesas me vieram cumprimentar. Acredito que isso foi extremamente importante para me fazerem uma proposta. Tive uma estrelinha, pois o mérito não foi meu. É importante para um grupo de comunicação ter alguém que todos parecem conhecer. Quando o Flávio me perguntou se eu nunca tinha pensado vender a DC3, respondi que não. E expliquei que para isso teria de escolher o melhor parceiro, como fizera para casar. Ele perguntou-me: “E por que não nós?!”. Era a última coisa que eu esperava. Esta pergunta chegou já no regresso ao escritório. Pediram-me para lhes mostrar o que já tínhamos feito na parte criativa. Mostrei-lhes o que havia, que era pouco. Agradeceram imenso a ajuda, e, uns dias mais tarde, o Flávio escreveu-me a dizer que viria novamente a Portugal com o presidente europeu e que precisava urgentemente de falar comigo. A proposta final era para comprar a agência, mas queriam ficar apenas comigo. Aceitei. Com o 25 de Abril algumas agências multinacionais tinham saído de Portugal. Esta era a primeira que entrava depois da revolução. Compraram 75% da empresa.
Foi um casamento de sucesso.
Durante vários anos Portugal foi considerado a joia da coroa. O David Ogilvy, que odiava andar de avião, veio de comboio a Portugal três vezes! Numa reunião internacional em Paris, numa altura em que a Ogilvy já estava em 87 países, eu continuava a ser a única mulher presidente do Grupo, o Kenneth Roman (presidente mundial), e o Alexander Brody perguntaram-me qual era o país em que eu queria ser presidente. Só não podia escolher Inglaterra e Espanha. Respondi: “Não quero sair de Portugal. Portugal tem a dimensão que eu quero”.
Mesmo com 87 escritórios, continuava a ser a única mulher?
Demorou tempo a habituarem-se à ideia de que havia mulheres presidentes. A primeira vez que Kenneth Roman veio a Portugal trouxe-me uns botões de punho! A secretária ainda não se tinha apercebido de que o presidente em Portugal era uma mulher. Ele ficou muito atrapalhado, mas eu disse-lhe que não havia problema, pois eu usava muito camisas e poria os botões.
Nas reuniões internacionais e nos jantares, quando era a única mulher, tinha dificuldade em fazer conversa com outros homens?
Não. Futebol e política poderíamos falar de igual para igual. A primeira reunião que tive foi em Milão e, quando eu entrava, abriam-me a porta e só se sentavam depois de eu me sentar. Inicialmente aquilo massajou-me o ego, mas depois pensei que se lutava pela igualdade, aquilo não fazia sentido. Na segunda reunião, em Paris, já ninguém se levantou, ninguém veio abrir a porta. Tive pena, mas afinal era aquilo que eu queria. Ser tratada como um deles.
Nós temos as mesmas ferramentas que os homens têm e, ao mesmo tempo, também a sensibilidade e a intuição.
Porque acha que há poucas mulheres a chegar ao topo?
Muitas vezes, a culpa é da mulher. Se está numa profissão que escolheu, tem de a fazer tão bem quanto o lugar exige (já não falo melhor do que o homem). Nós temos as mesmas ferramentas que os homens têm e, ao mesmo tempo, também a sensibilidade e a intuição. Numa fábrica, sabemos os nomes dos operários, sabemos se têm família, se têm uma criança que acabou de nascer, sabemos transmitir aos outros que eles fazem parte de uma equipa. E isso ajuda a fazer uma equipa.
Por exemplo, nos primeiros meses na Ogilvy, quando entrava no escritório ouvia um barulho de gavetas a fecharem. Ouvi isso várias vezes, até que um dia tentei perceber a razão. Como todas as pessoas que me conhecem sabem que tenho o hábito de tocar três vezes, um dia toquei apenas uma. Quando me abriram a porta descobri que, quando eu tocava à porta todos os que estavam a ler livros ou jornais, os metiam na gaveta à pressa. Disse-lhes: “Acho que devem estar atualizados, o que não quer dizer que não continuem a trabalhar depois da hora de saída, quando for preciso”. O ambiente tornou-se muito mais leve depois deste episódio.
O estilo de liderança
Como era o mercado da publicidade em Portugal nessa altura?
Era uma atividade muito feita de medos. As pessoas não comunicavam. Os presidentes das agências não se falavam, não se conheciam. Os diretores criativos usavam esse afastamento em seu benefício, dizendo que ganhavam quantias estrambólicas, inflacionando o mercado. Perante essa situação, decidi chamar as dez maiores agências do país para esclarecer esta questão. Propus que se falasse não de pessoas, mas de funções, e que déssemos a garantia de que durante dois anos e meio ninguém iria buscar publicitários a nenhuma das agências ali representadas. Só não compareceu uma agência. Quando começámos a falar de quanto ganhava um diretor criativo, um diretor de contas, um diretor geral, percebemos que o que constava no mercado não tinha nada que ver com os salários que efetivamente se pagavam. Curiosamente, só houve uma agência que no dia seguinte convidou cinco diretores nossos. Só um é que foi.
A publicidade na altura era um grupo muito fechado e masculino e acho que contribuí para mudar algumas coisas. Sem vaidade, digo que a Ogilvy criou uma nova mentalidade e foi uma escola. Por exemplo, sempre tive estagiários, mas não era para irem buscar o café ou fazer recados. Era para aprender, faziam parte da equipa. Essa foi uma mais-valia para a atividade. A outra foi a de que o tal indivíduo que aceitou o convite para mudar de agência depois daquela reunião, pôde sempre voltar à agência para visitar os amigos, o que em publicidade era impensável. Era tudo secreto, ninguém entrava na porta do vizinho. Na nossa agência havia uma maneira diferente de estar. Eu dizia a brincar que antes de o Dr. Mário Soares fazer a presidência aberta já a Ogilvy fazia isso. Hoje não sei como está este mercado, mas tenho a certeza de que a cultura da Ogilvy marcou de forma muito positiva todos aqueles que lá trabalharam.
A cultura da Ogilvy ou a sua?
Misturaram-se. Estas coisas nunca são só de uma pessoa.
Como definiria o seu estilo de liderança?
O corredor do meu gabinete era a “Rua do Passadiço” porque todos entravam quando queriam. Eu estava sempre disponível. Era mais uma do grupo, uma espécie de retaguarda. Fossem eles criativos ou da área de contactos, aos quais eu estava naturalmente muito ligada. E durante dois anos a agência portuguesa, apesar da dimensão do país, foi a segunda com maior rentabilidade no grupo. Por isso o David Ogilvy nos visitava. Isto era importante para ele. Ele próprio sonhava que um dia o grupo teria uma mulher como presidente mundial.
No palácio de Touffou, onde vivia, o David tinha na sala uma fotografia comigo. Era a única, pois não havia mais nenhuma fotografia com presidentes de outros países. Dizia-me: “Rosalina, tu tens de estar mais ao pé do Alexander Brody, porque tu é que tens de ser a continuadora”. Sempre que estávamos em Paris, ia jantar connosco e depois regressava de comboio para Touffou, que ficava a cerca de 350 km.
Era um homem brilhante! Durante a minha segunda reunião no grupo, em Amesterdão, eu estava sozinha numa mesa ao pequeno-almoço e, de repente, o David (que na altura eu conhecia apenas de fotografia) levanta-se, vem ter comigo e diz-me: “Sabe quem eu sou? Eu sou o David que trabalha na Ogilvy”. [risos]
Manteve a sua ligação à Ogilvy até 2009, quando vendeu a participação de 12,5%?
Fui presidente executiva e depois chairwoman – quando vendi 12,5% da minha participação. Precisava de tempo para ajudar nos negócios do nosso grupo familiar [Grupo FTM]. Fiquei apenas quatro anos como não executiva. Acho que se deve sair naturalmente e não esperar para ser corrida. Muitas pessoas deixam-se levar pelo poder, porque é afrodisíaco, e não querem sair. Não tive esse problema. Não sendo executiva via tomar decisões que eu não tomaria e as coisas a acontecerem de uma forma que eu não faria. Decidi que estava na altura de sair e fui a Londres escolher o meu sucessor. Tive de enfrentar o meu colega espanhol, que nunca aceitou que Portugal não dependesse de Espanha. Quando escolhi o Tim Solomon para me suceder ele veio a Portugal defender que não deveria ser o Tim o meu sucessor, mas uma pessoa que ele tinha escolhido. Mesmo assim perdeu. Quando sai da reunião, achei engraçadíssimo porque me ofereceram um grande ramo de flores. Mais uma vez Portugal não tinha sido dominado pela Espanha!
O poder é difícil de exercer em qualquer dos sexos. Nunca senti que me receassem pelo poder que tinha. Sentia, isso sim, respeito.
Quais foram as decisões mais difíceis que tomou?
Foram sempre ter de despedir pessoas.
O poder feminino
Acha que é uma decisão mais difícil de tomar para as mulheres?
Indiscutivelmente que sim. Mas tive algumas surpresas, apesar de isso não aliviar o que me custou na altura. Algumas das pessoas que despedi continuaram a respeitar-me imenso. No Natal e no aniversário, mesmo sem precisarem de mim, enviavam-me um ramo de flores ou uma mensagem.
Diz-se que o poder é afrodisíaco, mas numa mulher pode levar a que os homens a receiam, se afastem?
O poder é difícil de exercer em qualquer dos sexos. Nunca senti que me receassem pelo poder que tinha. Sentia, isso sim, respeito.
Sentiu alguma vez o seu lugar ameaçado por outra mulher?
Nunca, também não tinham espaço [risos].
Considera que para um mulher fazer carreira é preciso ter um marido que a apoie?
No meu caso, e penso que talvez por termos trabalhado sempre em áreas completamente diferentes, isso não aconteceu.
Como é que encarou isso?
Naturalmente.
No passado também falavam de trabalho em casa ou separavam completamente as águas?
Falámos sempre. Curiosamente, eu nunca falei com o Francisco sobre o meu trabalho. Em contrapartida, o Francisco partilha comigo alguns problemas de trabalho.
Porque fazia isso?
Eu tinha menos problemas. Era mais fácil dominar a minha área do que a dele, que é mais complexa. E achava que eram problemas meus. Nem na negociação com a Ogilvy falei com o Francisco.
Há certamente muitos homens que fizeram o que eu fiz e não tiveram a notoriedade que eu tive. Tive-a porque fui a primeira mulher presidente da Ogilvy, que estava diretamente em 87 países.
A conciliação entre carreira e vida familiar é uma das principais dificuldades apontadas pelas mulheres para conseguirem progredir profissionalmente. Não sentiu esse problema?
As mulheres conseguem organizar melhor a vida do que os homens. Acho que com equilíbrio conseguimos tudo, mas também é verdade que tive sempre empregadas de confiança em casa. Por exemplo, o programa de televisão era gravado quase em frente de minha casa e ocupou-me pouco tempo. Além disso, sempre tive a preocupação de só sair de casa depois de o João Pedro entrar na carrinha para o colégio e conseguia chegar a casa antes dele. Ele nem se apercebia de que a mãe trabalhava.
Mas nesse equilíbrio, provavelmente, saiu prejudicada.
É evidente que sim. Não podemos fazer tudo aquilo que queremos. Não há supermulheres. Nunca fiz ginástica. Havia semanas que não ia ao cabeleireiro porque não tinha tempo. Não perdia tempo a maquilhar-me. Tinha de roubar-me coisas que são importantes, muito femininas. O tempo não dá para tudo e temos de optar por aquilo que é mais importante na altura; hoje não estou arrependida
O facto de ser mulher beneficiou-a ou prejudicou-a?
Há certamente muitos homens que fizeram o que eu fiz e não tiveram a notoriedade que eu tive. Tive-a porque fui a primeira mulher presidente da Ogilvy, que estava diretamente em 87 países.
Nunca tive dificuldade em impor-me. Se tive mais dificuldade foi porque assumi a responsabilidade de fazer um bom trabalho e isso exige esforço. Mas surpreendia muita gente. Uma vez tive uma re- união com a Shell, às nove da manhã, para discutir a estratégia e o budget para aquele ano. O presidente disse à secretária que podia marcar outra reunião para as 10h00m porque, como eu era mulher, a reunião seria rápida. Ao meio-dia e meia hora disse: “A presidente da Ogilvy só é mulher por fora!”. A minha equipa ficou furiosa, mas expliquei que aquilo dito por um alemão era um elogio.
Houve alguma situação em que se sentisse discriminada?
Não. Fui das primeiras mulheres a convidar os clientes para almoçar e nunca houve constrangimentos. Depende imenso da nossa atitude.
Qual a sua posição em relação às quotas?
Sou totalmente contra. As mulheres devem ser promovidas apenas pela sua capacidade. Se não é por isso, podem pôr em risco o que outras mulheres fizeram.
Numa entrevista à Exame, o Rui de Brito, presidente da Publinter/BDDP Publicidade, dizia: “a Rosalina é suave como um Rolls e forte como um Caterpillar”.
Porque não houve mais mulheres a ascender a cargos de responsabilidade na sua área?
Houve uma, a Vera Nobre da Costa.
Como era a vossa relação? Havia cumplicidade ou concorrência?
Eu comecei como presidente. O facto de ter sido a primeira deu-me mais mediatismo e talvez tenha facilitado a minha aproximação às pessoas do lado das empresas e às pessoas dentro da nossa área. Por exemplo, eu nunca disse “os nossos clientes”, mas sim “os nossos parceiros”. Se eles cresciam, nós também crescíamos.
Que conselho daria a uma jovem que acaba de sair da faculdade?
A paixão pelo que escolheu é fundamental, o ser perseverante e continuar a acreditar, nunca desistir dos seus sonhos.
O segredo do sucesso
Arranjava tempo para receber os estudantes?
Sempre. Na altura tinha sempre cinco a seis estagiários e cheguei a pensar criar uma bolsa em nome da Ogilvy para premiar o melhor criativo de todas as faculdades. Mas perdeu-se a oportunidade. Há tanta coisa que não fiz…
O que mais lamenta não ter feito?
Gostava de ter criado uma escola de publicidade. Queria ter criado o prémio David Ogilvy.
Qual o feito profissional de que mais se orgulha?
A carreira que fiz na Ogilvy foi uma forma diferente de estar no mundo da publicidade. Foi um fresh air dentro da gestão e no mundo da publicidade. Aliás, numa entrevista à Exame, o Rui de Brito, presidente da Publinter/BDDP Publicidade, dizia: “a Rosalina é suave como um Rolls e forte como um Caterpillar”. Talvez tenha sido um pouco o abrir a porta para que as mulheres fossem para a frente sem medos.
O Ken Roman um dia perguntou-me quantas mulheres e quantos homens tinha na empresa. Respondi-lhe: “Não sei. Tenho pessoas muito boas e outras menos boas”. Não tem que ver com o facto de ser homem ou mulher.
Ter role models é muito importante…
Foi abrir uma portinha para que as jovens percebam que podem ser aquilo que quiserem ser.
Nas suas empresas tanto recrutava homens como mulheres?
O Ken Roman um dia perguntou-me quantas mulheres e quantos homens tinha na empresa. Respondi-lhe: “Não sei. Tenho pessoas muito boas e outras menos boas”. Não tem que ver com o facto de ser homem ou mulher.
Como vê o futuro das mulheres na gestão das empresas?
Vejo com imensas possibilidades, se elas assumirem que, com a preparação que têm, o lugar tanto pode ser delas como de um homem, desde que elas tenham a mesma atitude. Têm de ter uma atitude firme, têm de ser líderes, o que não depende só delas. Ou se nasce líder ou não se nasce.
A liderança não se aprende?
Claro que se vai aprendendo alguma coisa. Mas há uma liderança natural, tal como há o carisma. A mulher terá de abdicar de algumas coisas, mas, em contrapartida, também tem de retirar satisfação daquilo que faz. Pode não ter tempo para muitas coisas, mas sabe que está no meio de um grupo de pessoas interessantíssimas, onde pode discutir o mundo. Um líder não pode estar convencido de que é líder e sentar-se comodamente nessa cadeira. Ele tem de aprender. Ele tem de perceber quais são os melhores em cada uma das áreas para os poder premiar. O líder não é líder se não souber escolher as pessoas.
Alguma vez lhe chamaram “chefa”, “durona”?
“Chefe”, sim, mas por graça.
Chorou no local de trabalho?
Sempre que despedia pessoas, chorava. Sempre que alguém estava muito doente, chorava. Mal das pessoas que não sabem rir e chorar.
Não receava que isso fosse interpretado como uma fraqueza?
Não. Até porque a maior parte das vezes chorava sozinha.
Muitas mulheres sentem que não merecem aquilo que lhes estão a dar. Duvidam das suas capacidades, sentem que não estão preparadas, têm medo de abraçar novos desafios. Sentiu isso?
Não, até porque tive a tal estrelinha por ter sido a primeira naquele lugar. Não tive medo, senão não aceitava. Conhecia suficientemente bem a área. Já tinha trabalhado nela, apesar de numa dimensão mais pequena. A mulher que tem a possibilidade de ter novas responsabilidades tem de focar-se nessas responsabilidades. Ou então dizer: “Tenho muita pena, não me sinto capaz e continuo onde estou”.
Aconteceu-lhe tentar promover uma mulher que lhe tenha dado essa resposta?
Não. Até porque eu tinha de entender primeiro a capacidade da pessoa que estava a promover. Acho que se a mulher tiver dúvidas e as assumir para com quem a está a contratar é uma prova de confiança para a outra parte. Para mim, seria.
Tem uma atuação cívica muito frequente.
Quem é a pessoa que acorda de manhã, tem saúde, tem a vida de que gosta e que escolheu e não ajuda os outros? Isso é de um egoísmo extraordinário! Não pode ser feliz. Para mim, ajudar é fazer sem dizer.
Nunca teve ambições políticas?
Não. E posso dizer que a primeira pessoa que a Maria José Nogueira Pinto – de quem era muito amiga – convidou para trabalhar na campanha dela para a Câmara Municipal de Lisboa, e que fez primeiro o blogue, fui eu! Ela era uma amiga extraordinária! Também fui candidata a deputada europeia, nas listas do PS mas como independente. Avisei logo que se fosse eleita não iria para Bruxelas, porque era presidente de uma multinacional. Foi no ano em o Dr. Mário Soares, convencido de que ganhava, perdeu. Também fui mandatária dele por amizade. Foi tudo por amizade e não pela cor política.
E se tivesse sido eleita?
Não assumiria. Nunca seria política. Tem de se mentir sempre.
Se tivesse de eleger o melhor negócio que fez ao longo da sua carreira, qual seria?
É difícil… Se me perguntasse por campanhas dizia-lhe duas que acho que marcaram o mercado. O lançamento da Nova Rede. Foi a primeira vez que a banca publicitou a cores. E a campanha da Água do Luso, que dizia que 70% do nosso corpo é água. De tantas que fizemos acho que estas duas foram uma marca importante no mercado.
Tem alguma máxima de vida, de gestão, que repita habitualmente aos colaboradores?
Quando recrutava alguém, dizia-lhe sempre: “A primeira coisa que faz quando acorda de manhã é pensar ‘que bom que é trabalhar na Ogilvy!’, a segunda é ‘que bom é viver!’”. Um dia comentei isto numa reunião com o Luís Barbosa, presidente da Cruz Vermelha, e ele achou imensa graça. No dia seguinte, ligou-me para me dizer que o dia lhe estava a correr muito bem porque ao chegar tinha dito “Que bom é trabalhar na Cruz Vermelha” e “que bom é viver”. São coisas pequenas, mas que fazem a diferença.
Uma coisa que geralmente acontece e que também esperei que acontecesse comigo é ser esquecida depois de sair da agência. Mas isso não aconteceu. As pessoas que trabalharam comigo atravessam a rua, lembram-se de mim no Natal. O que, francamente, me massaja o ego. Eu era estimada pelo que era e não pelo poder que tinha. Ainda hoje me sinto estimada. Ajuda-me a pensar que não fiz muitas coisas erradas. Algumas fiz mal, mas mal das pessoas que não erram.
E o que aprendeu?
Cometi muitos erros, é humano. Há que saber admitir que errámos. Não me recordo de nenhum erro grave, mas errei várias vezes. E obviamente aprendi com esses erros.
Quais são os seus hobbies?
Gosto imenso de ler e ouvir música.
CURRÍCULO ABREVIADO
1941 Nasce em Montemor-o-Novo.
1962 Abandona o curso de Direito, em Coimbra, no 3.º ano da Faculdade.
1968 Coordena e apresenta programas de televisão dirigidos a mulheres. 1971 Coordena o primeiro suplemento a cores do jornal A Capital.
1973 É responsável de Relações Públicas na Agência L. Lagrifa.
1975 Assume a responsabilidade pelo Departamento de Publicidade do semanário O País e administra a Exterior Publicidade.
1976 Funda a DC3 – Agência de Publicidade, de que é administradora.
1986 Preside à Ogilvy & Mather Portugal, cargo que ocupou até 2002.
1988 É administradora da Forter. Edita o livro Gente em Portugal.
1990 Administra a Audior – Empresa Industrial de Audio S.A.
1991 Assume funções como administradora da TMP – The Media PartnershipPortugal e funda a Fundação Mário Soares.
1993 Integra a Comissão Executiva “Congresso Portugal que Futuro”.
1994 É presidente honorária da APME.
1995 Distinguida com o Prémio “Antónia Ferreirinha”; administradora da Setilgeste, da Empresa RTM e presidente da FTM – Holding.
1997 Administradora da Mindshare. Distinguida com o Prémio “Mulher Carreira” pela revista Máxima e fundadora do Movimento Portugal Único.
1998 Candidata a deputada Europeia pelo PS, como independente.
2000 Distinguida no Brasil com o Prémio Personalidade Feminina de 2000.
2002 Chairman do Grupo Ogilvy Portugal e administradora da Copelmada Internacional e da Fonsecas & Fabião.
2004 Administradora da Setilgest Engenharia e Ambiente e membro doConselho Consultivo da Universidade Lusófona.
2005 Agraciada com a Comenda de Mérito Comercial, Industrial e Agrícola.
2006 Recebe o Prémio Pessoa Prestígio do INV.
2008 Recebe o Prémio Carreira – Festival de Publicidade Sinos 2008 e é membro do Conselho Consultivo da EWMD Portugal.
Esta entrevista consta do livro “Memórias de Executivas”, publicado em 2015, onde encontra outras histórias de pioneiras que deixaram a sua marca no mundo dos negócios. Saiba mais aqui.