Cristina de Almeida nasceu em Moçambique, foi tenista da seleção nacional, viveu no Luxemburgo e Paris, desenvolveu vários projetos em África, viajou pelos 5 continentes e desempenhou várias funções de direção em empresas nacionais e multinacionais. Licenciada em Gestão pela Universidade Católica e com uma pós graduação, certificou-se em Coaching, Programação Neuro-linguística e Mentoring. Hoje dedica-se à dinamização da Diversidade e Inclusão, nas empresas e na sociedade.
“Hélia Silva é contabilista em Lisboa, numa relação, com dois filhos. A rotina era vivida em equilíbrio, até à chegada do COVID-19. A sua realidade ficou virada do avesso e a conciliação entre a vida pessoal e profissional tem sido testada diariamente até ao limite.
“A minha rotina diária mudou completamente! Tive que parar e repensar tudo. Tive que criar uma nova rotina para mim e para todos cá em casa que permitisse conciliar o trabalho, a partir do pequeno escritório que montei no sótão, com a gestão da casa, o acompanhamento escolar dos meus dois filhos de 12 e 7 anos e a preparação de todas as refeições. Uso os fins de semana para tratar da roupa porque a empregada deixou de vir. O meu marido às vezes ajuda com as compras. É difícil, mas possível com muita disciplina porque as horas do dia não chegam para tudo.”
O relato da Hélia espelha a realidade da maioria das mulheres neste período de quarentena com escolas fechadas, sem ajuda externa (empregada doméstica ou serviços de estética), acesso difícil a bens alimentares, uma nova logística de desinfeção de tudo e cuidados adicionais com os idosos na proteção individual, alimentação e saúde.
Já sabemos que o vírus ataca mais mulheres que homens, embora com uma taxa de mortalidade inferior, e a “contaminação” na vida das mulheres é mais abrangente como consequência do agravamento da desigualdade de género que se propaga tão rapidamente como um vírus.
A quarentena piora uma realidade que já era grave
Vivemos momentos excepcionais que exigem das mulheres um esforço também excepcional para garantirem a estabilidade das famílias e a continuidade das empresas.
- Aumento significativo do trabalho não pago
O estudo publicado em 2019 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) – “Mulheres em Portugal, hoje”, revelou a sobrecarga de trabalho não pago das 2,7 milhões de mulheres portuguesas (81% do total), sendo quem acumula mais tarefas em casa e na educação dos filhos:
- 71% Tem trabalho pago e apenas 1/5 tem flexibilidade horário
- 53% Tem filhos (metade com mais de 2)
- 74% Do trabalho não pago é executado por elas (3x mais horas que o parceiro)
- 80% Das tarefas com a educação dos filhos é assegurada por elas
Estas tarefas são per si desgastantes, mesmo sem considerarmos o exigente contexto atual ou as tarefas de âmbito profissional, razão pela qual são as mulheres as maiores consumidoras de medicamentos para a depressão e ansiedade. A quarentena veio, assim, penalizar ainda mais esta situação, evidenciando a desigualdade de direitos na vida familiar, social e profissional.
- Maior risco de contaminação
As mulheres estão mais expostas em crises pandémicas por serem 70% da força de trabalho no sector da saúde e assistência social e a linha da frente com maior contato com doentes e idosos. São a maioria das enfermeiras, das assistentes sociais e das cuidadoras nos lares, contribuindo para mitigar a situação precária de uma fatia significativa da população, em especial em países com uma estrutura demográfica envelhecida como Portugal. São quem cuida de todos, mas muitas vezes negligenciadas.
- Maior instabilidade financeira e menor poder de decisão
As mulheres são a maioria no mercado de trabalho informal e temporário e por isso mais expostas a layoff ou impedidas de exercer a atividade que lhes garanta o rendimento para pagarem grande parte das despesas da família, como refere o estudo da FFMS. O rendimento, por norma inferior ao dos homens, fica agora em risco de erosão gradual, deixando-as fragilizadas, dependentes e com perda de poder de decisão pelo fato de contribuírem pouco ou nada para a estabilidade financeira da família.
- Maior vulnerabilidade à violência doméstica
A UN Women comunicou em março que é expectável um aumento significativo da violência e assédio físico e digital (cyberviolence), e lançou um alerta para que sejam tomadas medidas que protejam as mulheres, evitando o aumento do número diário de vítimas (137) mortas por membros da própria família.
A China, consciente desta realidade, criou um hastag #AntiDomesticViolenceDuringEpidemic, com o objetivo de expor a violência doméstica durante o período de lockdown. Uma medida exemplar que os países vítimas da pandemia devem implementar para mitigar o aumento do número de vítimas. A “cyberviolence” é uma prática corrente na internet e tem tendência a aumentar em períodos de quarentena, sendo necessário criar mecanismos de proteção, em especial das mais jovens por serem heavy users.
As organizações podem ajudar estando mais atentas a possíveis vítimas “dentro de casa”, em especial as que têm equipas grandes e/ou com maior peso de mulheres, criando mecanismos de apoio e aconselhamento.
O teletrabalho como cura para a doença crónica da desigualdade de género
O trabalho remoto, que no contexto atual se tornou visível e obrigatório, há muito tempo que vem sendo estudado e considerado como uma das ferramentas de contribuição para o acesso de mulheres ao mercado de trabalho.
- O teletrabalho como a norma no futuro.
A McKinsey Global Institute, no relatório “The Power of Paraty”, estima que “no cenário em que todos os países igualassem o melhor da região na igualdade de direitos, a economia mundial cresceria US$12 triliões em 2025”, destacando que as mulheres são metade da população ativa, mas geram apenas 37% do PIB mundial. Esta informação coloca em perspetiva o papel das mulheres no mercado de trabalho e, segundo esta fonte, “não é possível alcançar igualdade de género na sociedade sem igualdade de género no trabalho”.
As mulheres em teletrabalho estão a viver uma revolução silenciosa que as organizações não podem negligenciar, devendo aproveitar para repensar a forma de trabalhar e a gestão remota de equipas.
Aproveitei a conversa com a Hélia para perguntar qual tem sido a maior aprendizagem nas duas últimas semanas e que mudança espera no futuro? A resposta foi clara e num tom de esperança: “com o COVID-19 todos percebemos que o teletrabalho é possível. Em condições normais e com os filhos na escola, o teletrabalho seria a solução ideal para o tipo de profissão que tenho, uma vez que poderia planear e executar o trabalho em função dos prazos a cumprir, sendo a relação com os clientes feita por telefone ou mail, disponíveis a partir de qualquer localização”.
Com esta mudança, as mulheres poderiam usar o tempo gasto nas deslocações (pelo menos 2 horas) para dedicar à empresa, a si próprias e à família, criando mais espaço para atividades com impacto positivo na sua saúde física e mental.
Medidas de diversidade e inclusão ganham protagonismo
Há muito que se fala na diversidade e inclusão para mitigar a desigualdade de género, mas ainda com poucos resultados práticos, sendo o contexto atual uma oportunidade para as organizações implementarem medidas com impacto direto na sua sustentabilidade e na das mulheres em geral.
As executivas reconhecem a necessidade de mudança e estão conscientes quanto ao seu papel na criação de estratégias e medidas de combate à desigualdade, tais como:
- Incluir a diversidade e inclusão na visão e missão corporativa e na cultura organizacional.
- Fomentar a inclusão de mulheres através de programas de Mentoring/ Coaching e Sponshorship que lhes dê mais visibilidade e confiança.
- Criação de equipas com mais diversidade e coesão, mesmo que mais distantes fisicamente.
- Criar condições para melhor conciliação entre trabalho e família.
- Implementação de critérios de diversidade e inclusão nas políticas de recrutamento e promoção das mulheres nas diferentes fases da carreira.
- Dinamizar fóruns de partilha de experiências catalisadoras no crescimento profissional.
- Promover Role Models como forma de inspirar mulheres a aceitar novos desafios na carreira.
As crises são agentes da mudança
As crises individuais promovem autodesenvolvimento, as crises económicas promovem mudanças de paradigma. O trágico rasto deixado pela passagem do COVID-19 abre um caminho e cria oportunidades para implementação de iniciativas disruptivas com o passado, com correção de desigualdades de género, através de estratégias solidárias e urgentes que vão conceber as organizações do futuro com mais resiliência, agilidade e igualdade de direitos.