Pedro Lains é investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e professor convidado da Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica Portuguesa e da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Licenciado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e doutorado em História pelo Instituto Universitário Europeu, neste momento debruça-se sobre o crescimento económico no longo prazo e a história do Banco de Portugal. Neste texto, faz uma viagem pela história da situação da mulher e desvenda o retrato daquelas que mais marcaram a sua existência.
“Em meio século, olhando para uma das linhagens, do lado materno e a mais visível, aquelas de que se falava, as que conheci e as que conheço mudaram com o mundo. A primeira referência de todas ia e vinha em viagens brasileiras, a partir de um Porto mítico, algo distante e afamadamente liberal, comandava dez filhos, elas sempre bonitas e bondosas e deles quase nunca se falava. Como curiosidade, “estroina” era uma palavra que saltava a propósito deles, de vez em quando, acho, sendo um epíteto a evitar (embora tarde fosse sempre melhor do que nunca). A segunda, de quem quase me lembro, era “a grande mulher por trás do grande homem”, traduzindo em linguagem actual, seguramente não a então usada. Era muito amada, pela sua natureza, sem qualificativos; e muito falada, por ser determinante do sucesso de uma carreira rica, uma carreira de que tanto gostei e que tentei seguir. A terceira, teve a coragem de tirar um curso, quando poucas o faziam, de ir para a África, que não era a dela, por lhe ser terra cruel, e da qual fez todos voltarem, mas só pôde trabalhar naquilo de que verdadeiramente gostava depois de saber por onde iam os filhos. Por escolha clara e explícita, incluiu na nossa educação o mundo para além das estreitas fronteiras nacionais de então, ponto em que eram dois em absoluto acordo, ela por causa da herança liberal, ele porque o futuro não podia ser de outro modo. E foi a grande mulher quase ao lado do grande homem, mas o quase fez a diferença. Inteligente e subtil, bonita e bondosa (claro), e com muito mais para dar ao mundo do que aquilo que os tempos permitiram. E era imperativa nos valores, sempre ditados silenciosamente, como só todas as mães sabem fazer.
Elas dominavam a sala e determinavam o modo de fazer as coisas. Mas não dominavam na vida fora de casa
Tudo isto se passava numa casa em que elas dominavam a sala, com os seus retratos, as suas conversas, e determinavam o modo de fazer as coisas. Mas não dominavam na vida fora de casa, no trabalho, na realização profissional. Algumas porventura nem o quereriam, quem sabe.
Depois, veio a geração para a qual a revolução de costumes foi o mais importante, trilhando os caminhos da primeira vaga de libertação de tudo e todos. Foram seguramente as mais próximas, aquelas (a quem se junta um irmão) com quem aprendi a falar só quando tinha alguma coisa para dizer. Foram pioneiras, uma segunda ou terceira vez, ainda com mais luta do que as anteriores. Apesar do peso da herança recebida, o progresso traduz-se numa frase: não seria o que sou sem elas (e ele).
A seguir, veio a primeira geração totalmente emancipada, embora ainda com muita distância relativamente às sociedades mais à frente. A geração em que se está mesmo ao lado ou não vale a pena estar. A geração que faz o que quer, quando quer, mas ainda conquistando terrenos, coisa que lhes é ainda imposta, mas não devia.
Agora, vejo aquelas que saberão o que será o futuro. Esperamos que naturalmente, sem necessidade de conquistas, e com todas as opções pela frente. O que farão só elas saberão e um dia o mostrarão. Nelas impera a determinação, para além de tudo mais. E ou as acompanhamos em tudo ou ficamos a ver a história a passar, para trás. Mas, atenção aos idealismos: ou as leis ajudam ou voltamos ao que era. Leis no trabalho, na maternidade, nas carreiras de topo. É a vida.
Curiosamente, ao longo de todo este percurso, de toda esta linhagem, mudou a relação delas com o mundo mas, por coincidência ou nem tanto, não mudou a importância das coisas ditas, feitas ou imaginadas. É uma cultura, portanto. E um património único, pessoal e, claro, transmissível.”