Paula Rios: homenagem a um homem sábio

No Dia Internacional da Mulher, Paula Rios fala-nos com o coração de um homem extraordinário que à filha e à neta dava o conselho: “Estuda, minha filha, para nunca dependeres de homem nenhum”.

Paula Rios é jurista e profissional de seguros.

Texto de Paula Rios, jurista e profissional de seguros

 

Todos os anos, no dia 8 de Março, penso que seria ideal que o Dia da Mulher não existisse; apenas porque já não faria falta. Mas, infelizmente, ainda é, e cabe-nos a todas, e todos, dar o nosso contributo para que, cada ano, seja um pouco menos necessário.

Este ano, no Dia da Mulher, quero homenagear um homem.

Um homem que, nascido no início do século XX, teve a visão clara de que as mulheres tinham de conquistar a sua independência financeira, para poderem ter uma vida plena, enfim, serem livres. Esse homem cresceu numa família maioritariamente feminina — mãe e três irmãs. Muito cedo, a adversidade bateu-lhe à porta. O pai, ganha-pão da família como mandava a época, morreu duma pneumonia, deixando a viúva sem modo de vida, e com quatro filhos a cargo, tendo ele, o mais velho, apenas nove anos.

Imagino que as dificuldades por que a família passou, o tenham marcado para sempre. Ver a mãe, que não tinha qualquer arma para enfrentar a vida que se lhe deparava, deixar de comer para alimentar os filhos, deitar mão da única coisa que sabia fazer — bordar — para tentar sustentar a família, certamente lhe deixou a profunda convicção de que uma mulher, uma família, não podiam depender apenas de um marido e pai, que, ao faltar, as deixasse totalmente desamparadas.

Inteligente e ambicioso, teve de começar a trabalhar aos catorze anos, estudando à noite, o que podia e como podia, e lendo, lendo muito, viajando pelo tempo e pelo espaço, e apreendendo avidamente as lições que outros, mais sábios, partilhavam.

Muito jovem, casou com o amor da sua vida, uma jovem lindíssima e inteligente que sonhava ser médica, mas que nascera na época errada para tal. E que, forçada pelas circunstâncias, trocou uma carreira que teria certamente sido brilhante, pela vida de esposa, mãe e dona de casa, que desempenhou na perfeição, ainda que sem a paixão pela Medicina, o sonho desfeito.

Além da sua mulher, da mãe e das irmãs que ainda viviam com ele em casa, e dele dependentes, teve uma filha, e tenho para mim que foi então que jurou a si mesmo que o destino dela seria diferente.

Apesar de a vida lhe ter corrido de feição, e de, com muito trabalho, integridade, e quiçá alguma sorte, ter construído um império, nunca deixou que a filha crescesse sem exigência; pelo contrário, dizia-lhe que tinha de se esforçar, de estudar, para ser independente. E foi. Anos mais tarde, a neta que também educou ouvia-lhe sempre o mesmo, e melhor conselho de todos: “Estuda, minha filha, para nunca dependeres de homem nenhum”. E assim foi que este homem, produto da sua época e retrógrado em muitos aspectos da vida, teve o rasgo de entender que as coisas tinham de mudar e as mulheres tinham de assegurar a sua própria sobrevivência, enquanto seres humanos.

Este homem sábio que hoje homenageio, porque relativamente à independência financeira das mulheres foi um verdadeiro feminista (se bem que o tivesse negado categoricamente se eu tal tivesse ousado chamar-lhe!), deu o melhor conselho de todos, porque uma mulher, um ser humano, dependente, não tem liberdade; mais— ele sabia que fazer assentar a sobrevivência económica de alguém em algo tão frágil como uma relação amorosa acarreta um risco elevadíssimo, muitas vezes com consequências irremediáveis para a mulher.

Este homem, corajoso e desassombrado, que não poucas vezes arriscou muito para dizer a verdade que poucos ousavam, aos sessenta anos perdeu quase tudo – a sua terra, os seus bens, tudo o que tinha construído. Mas não perdeu a sua dignidade, a capacidade de inspirar os outros e, sobretudo, essa visão de que o futuro, para as mulheres, tinha de ser construído de forma diferente da que subjugara a sua mãe e, até, quem sabe, a mulher que amou até ao fim dos seus dias.

A este homem, a quem presto hoje homenagem, no Dia da Mulher, devo aquilo que sou, e muito do que a vida me permitiu ser. O seu conselho transformou a minha vida, a sua insistência moldou-me, a sua ambição continuou viva em mim. Ele, que tanto se orgulhava das carreiras da filha e da neta, fez por elas tudo, mas nunca tanto como quando lhes dizia aquela frase, dia após dia, ano após ano. E depois, quando percebeu que já não era preciso dizer mais, descansou.

Este homem único viveu uma vida longa e, acredito, feliz. Este homem, a quem como mulher e como ser humano devo tanto, era o meu Avô.

 

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