Luisa Lacerda: a arte de bem fazer gelados

Os lisboetas conhecem bem os gelados da Artisani, o que muitos não sabem é que é uma marca portuguesa, e não italiana, e que a sua fundadora teve de hipotecar a casa para a conseguir lançar. Quinze anos depois, Luisa Lacerda não se arrepende de ter deixado uma carreira na área financeira para meter as mãos na massa.

Luisa Lacerda é a criadora dos gelados artesanais Artisani.

Luisa Lacerda fundou a empresa com base num negócio da família, a Fritz Gelados e Guloseimas, porque gostava de fazer gelados e viu que tinha jeito para isso. Gestora de formação, criou o seu negócio numa altura de crise, que lhe fechou a porta do crédito bancário, e foi com o dinheiro conseguido da hipoteca da sua casa e o financiamento de um amigo do pai, que gostou da ideia e do projecto, que criou a Artisani. Gosta de lembrar que é “uma empresa de gelados portuguesa”, porque há quem pense ser a representação de uma marca italiana. Mas é distinta e já bem conhecida dos lisboetas, e foi criada num brainstorming entre Luisa Lacerda, um irmão, e um freelancer de comunicação e design.

 

A aprendizagem contribui para gerar as bases do futuro. A sua ajudou a desenvolver as capacidades necessárias à sua vida profissional? 

Tirei o curso de Gestão na Universidade Católica em Lisboa, antes de entrar em auditoria na Ernst & Young, onde trabalhei três anos. Essa experiência na área financeira foi muito importante, porque aprendi como é que se leem e constroem as demonstrações financeiras e analisam os dados dos negócios. Daí veio a base que me permitiu lançar, depois, a minha empresa.

Depois trabalhei dois anos na área comercial da Compal, até entrar para a área financeira no grupo da minha família, que estava a passar por dificuldades. Durante esse período, em que também fui mãe dos meus três filhos, comecei a ter contacto com os gelados, porque por baixo do meu gabinete existia o pequeno laboratório da Fritz Gelados e Guloseimas, negócio que da minha família, que tinha sido criado porque a minha mãe trouxe a ideia após uma ida a Itália em 1985.

Comecei, a fazer gelados como escape, mais  fui percebendo que tinha uma facilidade quase inata para conjugar sabores e chegar a novas fórmulas, e os gelados começaram a alimentar muito aquilo que seria o meu futuro. De tal forma, que decidi investir no negócio alguns anos mais tarde, em 2009.

 

Como é que lançou o negócio?

Fiz um plano de negócios para produzir e comercializar gelados, também através de lojas próprias, tal como acontece hoje. Mas quando fui pedir financiamento aos bancos o mundo entrou em crise e não me concederam crédito. O projecto ficou parado, apesar de ter continuado a fazer contactos e reuniões, patrocinados pela associação dos Business Angels. Numa delas, lembrei-me do Diogo Saraiva e Sousa, que era amigo do meu pai e tinha estado envolvido num projecto de compra do Santini, que falhou porque a empresa foi adquirida por outros. Depois de o ter contactado, decidiu entrar no projecto comigo.

Como não consegui crédito bancário, hipotequei a minha casa para poder entrar no negócio. Abrimos a primeira loja da Artisani na Doca de Santo, em Lisboa.

Começámos a fazer gelados com quatro máquinas, porque não havia capacidade de investimento para mais, sobretudo para restaurantes e, mais tarde, também para hotéis. Hoje temos 180 clientes nessa área em todo o país. Ou seja, trabalhámos durante algum tempo sem marca, com produção própria artesanal.

A Doca de Santo era do grupo de Bernardo Alves, um dos donos do Grupo da Capricciosa, que morreu muito cedo, há quatro anos. Foi uma pessoa que nos ajudou imenso, porque gostava muito da nossa qualidade, em particular do sabor de iogurte. Convidou-nos a fazer gelatarias nas suas Capricciosas, que estavam muito bem situadas, uma em Cascais, outra em Carcavelos e o Doca de Santo, em Lisboa. Isso foi uma alavanca que nos ajudou a ter alguma bagagem para fazermos investimentos e crescer.

 

A grande dificuldade foi conseguir um investidor. No início fazíamos tudo à mão. Havia pouco dinheiro para investir e todo o que fomos juntando resultou das vendas para os clientes da restauração, que nos começaram a comprar devido à nossa qualidade.

 

Quais foram as principais dificuldades do início do negócio?

A grande dificuldade foi conseguir um investidor. No início éramos cinco pessoas, duas delas na produção, e fazíamos tudo à mão. Havia pouco dinheiro para investir e todo o que fomos juntando resultou das vendas para os clientes da restauração, que nos começaram a comprar devido à nossa qualidade.

Nessa altura nem tínhamos dinheiro para investir em design e comunicação. A marca Artisani foi criada por nós. A maioria das pessoas pensa que é um franchising italiano, mas é uma marca portuguesa, que surgiu de um processo de brainstorming entre mim, o meu irmão e um freelancer de comunicação e design, que lançou vários nomes para cima da mesa.

 

Mas a empresa e a marca têm também lojas de porta aberta. Como é que isso aconteceu?

As lojas estavam previstas no plano de negócios inicial, porque, para mim, o estabelecimento da marca no mercado teria de passar pela sua abertura, pois são o nosso principal vendedor. Nós temos área comercial e vamos aos clientes. Mas como estes reconhecem a Artisani sobretudo pelo impacto que têm as lojas, era importante abri-las para estabelecer a marca.

No início não tínhamos muita concorrência, porque o mercado estava muito parado em termos de oferta de gelados artesanais. Existia o Santini, na altura apenas em Cascais, e aqui, em Lisboa, havia lojas mais tradicionais como a Surf, a Conchanata ou o Pindô, que estavam muito paradas no tempo e não apostavam na fruta fresca e nos sabores mais gourmet. Ou seja, foi a altura certa para começar um negócio nesta área. Mas também sabíamos que a concorrência viria aí e que uma marca tem de ser criada também com a capacidade de sobreviver em cenários de grande concorrência.

Começámos num espaço muito pequeno, por baixo da loja da Avenida Álvares Cabral, com quatro máquinas, e em 2015/16, passámos para o espaço que tinha sido ocupado por uma garagem da Volkswagen, na Rua de S. Bernardo, om cerca de 1000 metros quadrados, onde fizemos um investimento de mais de um milhão de euros. Nessa altura, com a empresa a crescer e a precisar de mais pessoas, o Diogo lembrou-se de desafiar o José Gaspar — tinham sido colegas na Seagram, que chegou a ser a maior empresa de destilados do mundo, mas que entretanto foi extinta. A Mariana Gaspar, sua filha, já trabalhava connosco desde o início, e é o meu braço direito. O José Gaspar introduziu na empresa a disciplina financeira necessária para equilibramos as nossas contas de uma forma mais eficaz, pois eu e o Diogo somos os criativos, aqueles que fazem as coisas, bem e depressa, mas muitas vezes de forma cara. Fomos três sócios durante uns anos, até que o Diogo Saraiva e Sousa se reformou a vendeu a parte dele à Mariana Gaspar.

 

Mas como é que tudo se passou até agora, para conseguirem um sucesso sustentado?

Tudo tem acontecido devagarinho. A Artisani é, hoje, uma empresa familiar que tem uma gestão muito próxima da produção, porque as receitas são feitas por mim, uma sócia da empresa, no dia a dia. Eu normalmente só entro na fábrica para isso. A responsável é a minha cunhada, Joana van Zeller Lacerda, que faz a gestão da equipa de produção, que é constituída por mais de uma dezena de mulheres. Na distribuição são mais três pessoas, mas temos muito mais pessoal durante o verão do que no Inverno.

 

A nossa ideia é continuar com a Artisani por muitas mais tempo, oferecendo gelados menos açucarados,  que possam ser consumidos por todos, incluindo os que têm intolerâncias alimentares, alergia ao glúten, à lactose, e os diabéticos.

 

O que é hoje a Artisani?

É uma empresa com gestão familiar e próxima das lojas, que são acompanhadas de perto porque queremos manter os nossos padrões de qualidade nos produtos, nos serviços e de proximidade aos clientes.

As nossas lojas não são abertas apenas em zonas turísticas. Procuramos entrar em bairros residenciais com poder de compra médio a médio alto, para fazermos parte da vida dos portugueses de várias gerações, porque a nossa ideia é continuar com a Artisani por muitas mais tempo, oferecendo gelados menos açucarados,  que possam ser consumidos por todos, incluindo os que têm intolerâncias alimentares, alergia ao glúten, à lactose, e os diabéticos. Temos uma preocupação grande em criar receitas adequadas a muita gente, porque a nossa empresa quer ser uma gelataria geracional, próxima das pessoas e dos seus parceiros.

 

Para criar novos gelados não basta apenas idealizá-los. É preciso ter, na memória, sabores e aromas, conhecer os produtos da concorrência, e estar atenta à evolução da moda e à criação de inovações. Como é que faz isso?

Nós fazemos todos os anos uma prova cega, que este ano teve um painel alargado a pessoas fora da empresa, em que escolhemos cinco sabores e vamos buscá-los a seis ou sete gelatarias. E pontuamos, com base numa grelha estabelecida para este tipo de provas, cada um deles em termos de textura e sabor, para tentarmos perceber em que ponto estamos. Esse trabalho tem-nos feito perceber que o facto de a Artisani ter estabelecido uma qualidade padrão acima da média, tem levado os novos concorrentes a entrar no mercado com produtos com a mesma qualidade, o que tem contribuído para que esta cresça em Lisboa. E isso é benéfico para o consumidor.

 

O que é, para sim, um grande gelado?

O gelado bem conseguido é feito com ingredientes naturais de qualidade, pouco açúcar e muito cremoso. O que nunca pode acontecer são os cristais de gelo dentro do gelado e este derreter depressa demais depois de entrar na boca. Os gelados têm de permanecer e oferecer aquele sabor arredondado na boca, para haver tempo para se sentir os seus aromas e sabores.

 

Considero que não tenho bem o perfil de gestora na empresa, porque quando entro na fábrica, sou apenas mais uma, igual a todas as pessoas que lá estão. Visto a bata e faço que é preciso fazer.

 

É uma gestora de mãos na massa? 

Desde sempre que tenho muita facilidade em falar com as pessoas, coordenar e organizar. É algo muito inato em mim. Mas considero que não tenho bem o perfil de gestora na empresa, porque quando entro na fábrica, sou apenas mais uma, igual a todas as pessoas que lá estão. Visto a bata e faço que é preciso fazer. E a Mariana Gaspar também é assim. Se a produção do dia não for completada, vamos ambas para a fábrica e para as máquinas para terminar o trabalho. Ou seja, somos gestoras do dia a dia, de proximidade e, ao mesmo tempo, fazemos a coordenação e pensamos a estratégia e tudo o mais que os gestores fazem.

 

Também faz o produto, para além de o idealizar?

Sim, mas quando idealizo faço em pequena escala. Depois, a Joana Lacerda estabelece o caminho necessário para a pequena amostra que criei se transformar numa produção de centenas de quilos de gelado, o que pode implicar a adaptação e construção de novas ferramentas e utensílios.

Nós temos o grande desafio de sermos artesanais e de continuarmos a manter artesanais apesar do crescimento que temos tido. Por isso, não fazemos o enchimento automático das nossas embalagens, porque o processo é feito por máquinas que introduzem muito ar nos gelados. Têm de ser batidos em equipamento mais pequenos, que são produzidos pela Carpigiani (empresa italiana especialista nesta área), tal como acontece noutras gelatarias.

 

Depois ainda é necessário levar os gelados da fábrica para as lojas?

E para todos os clientes, já que hoje em dia 60% do que produzimos se destina a negócios de restauração e hotelaria, como o Grupo Avilez, ou o Vila Vita, no Algarve. Nós já chegamos ao país inteiro e vamos uma vez por semana ao Algarve entregar gelados nas nossas carrinhas. Mas também usamos transportadoras, o que nos permite cobrir todo o país.

 

Não estão a pensar franshisar a marca?

Temos um modelo que foi criado de início. Funciona muito bem e foi, de alguma forma, inovador. É um franchising entre aspas, como lhe chamo, porque o parceiro cria a sua própria marca e nós damos a assinatura By Artisani.

Todo o projecto é feito pelos nossos arquitetos, de acordo com as nossas regras, e toda a oferta dos nossos produtos é fechada, ou seja, eles vendem os mesmos crepes, os mesmos gelados. Mas podem ter outros produtos que considerem importantes para ultrapassar a sazonalidade do inverno, que é outro dos grandes desafios do negócio dos gelados. Este modelo de franchising tem-nos permitido abrir em zonas onde não estaríamos diretamente, com parceiros que as conhecem e estão lá todos os dias a acompanhar o seu negócio. É um modelo que tem funcionado e está a contribuir para o nosso crescimento. Actualmente temos oito lojas próprias na Área Metropolitana de Lisboa e preparamo-nos para abrir uma nona. São as que conseguimos acompanhar de perto. Depois temos mais quatro em regime de franshise e estão mais algumas para abrir.

 

O que é essencial para a sustentabilidade das vendas da sua marca e da sua empresa?

Continuarmos a apostar na qualidade dos gelados. E estarmos muito atentos a tudo o que são as tendências alimentares, que são imensas, como gelados com proteínas, vitaminas, probióticos, sem açúcar e feitos apenas com açucares naturais, e à evolução dos padrões de consumo. Também queremos manter-nos com o foco certo, ou seja, nas pessoas e não no dinheiro, e nos nossos parceiros, para os ajudar a crescer, inovando as suas sobremesas, nunca falhando, acompanhando-os sempre. E continuar a fazer  investimentos controlados, reinvestindo na empresa aquilo que ela gera.

 

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