Luísa Garcia passou anos a aplicar o rigor da matemática ao mundo real, quando definia os horários para toda a rede ferroviária nacional, primeiro na CP, mais tarde na REFER. Depois, foram-lhe dando desafios cada vez maiores: chefiar uma equipa de 160 homens, depois uma direção de segurança ferroviária, a que se juntaram mais tarde as rodovias. Com uma licenciatura e mestrado na área de Estatística e Investigação Operacional, o seu mundo teórico não emana exatamente da engenharia e sim da “matemática no seu estado mais puro”, como nos explica, mas trabalha em simbiose e contacto direto com áreas onde a engenharia domina. Todas as normas de segurança seguidas nas linhas férreas e estradas portuguesas passam por ela na Direção de Segurança Ferroviária e Rodoviária das Infraestruturas de Portugal, tal como a proteção e defesa de ameaças externas.
Tem 50 anos é mãe de uma rapariga de 16, e quando não está ocupada com questões de segurança gosta de participar em provas eco-aventura ou competições de orientação no terreno.
O que a levou a escolher a matemática?
Teve a ver com a minha apetência natural. Todo o percurso escolar foi-me levando mais naturalmente para as disciplinas da área das Ciências do que para as disciplinas ligadas à vertente social ou linguística. Mesmo na fase em que tive piores professores, a áreas de matemática, física ou geometria descritiva despertavam em mim um interesse diferente pela resolução dos exercícios e representavam um desafio maior. Entrei para a faculdade em 1985, altura em que se começava a ter acesso a computadores, ainda que numa fase muito inicial. Isso fez-me escolher o curso de Matemática Aplicada da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que tinha três ramos, sendo um deles a computação. Passados os dois anos iniciais de troço comum a todas as especializações, percebi que a minha aptidão não estava aí e sim na área de Estatística e Investigação Operacional — que passou a ser uma licenciatura própria, com a reorganização dos cursos que decorreu entretanto, e na qual acabei por me formar. A natureza dos problemas nas atividades do dia a dia, a modelação matemática desses problemas de forma a encontrar uma solução, fez com que gostasse muito dessa área. Mais tarde fiz mestrado nessa mesma área. Nunca me arrependi; foi uma boa decisão, que teve influência no meu percurso profissional.
Logo a seguir à faculdade, começou por pensar em fazer consultoria mas “o desconhecimento do mundo real era gigantesco”. Pôs a ideia de parte e enveredou pelo mundo corporativo, pensando que mais tarde voltaria à consultoria. Mas afinal, não.
O que sonhava fazer quando acabou o curso?
Houve um momento em que, com mais dois colegas de faculdade, pensámos que queríamos resolver alguns problemas das empresas e considerámos que seriamos capazes de fazer consultoria. O nosso desconhecimento do mundo real era gigantesco. Ainda formos fazer uma entrevista para perceber como montaríamos uma empresa desse tipo. Éramos tão inexperientes! Perguntavam-nos ‘então qual é a vossa carteira de clientes?’ e não tínhamos muita perceção de quem podiam ser, para além dos poucos que conhecíamos. Mas foi uma experiência gira, completamente frustrada, naturalmente, mas que nos fez pensar que tínhamos que aprender um pouco mais e conhecer melhor o mundo; depois, voltaríamos lá, já capazes de fazer aquilo. Mas a partir daí cada um de nós mudou a sua vida e esse contexto nunca mais se colocou. Os meus colegas ficaram os dois a dar aulas no Instituto Superior Técnico e na Faculdade de Ciências, eu enveredei pela atividade profissional numa empresa (a CP). E qualquer um de nós é feliz naquilo que foi fazendo e está a fazer hoje.
Como foi o seu percurso profissional depois de sair da faculdade?
Dei aulas na Faculdade de Ciências durante dois anos. Uma colega que tinha entrado na CP disse-me que havia uma vaga na equipa dos horários. Concorri e entrei em 1993 para fazer horários de comboios. O horário do comboio é algo muito rigoroso, contrariamente aos dos autocarros. Em ferrovia, as coisas são programadas ao rigor dos 30 segundos porque é um sistema que não tem graus de liberdade — quando um comboio para, os outros param todos também ou têm progressos muito reservados. Aquela atividade permitiu-me aplicar tudo o aprendi na Faculdade relativamente à modelação dos problemas reais numa estrutura matemática. O resultado final é um conjunto enorme de tempos de trajeto de comboio para uma rede inteira, que têm de bater certo e onde todos têm que se interligar.
Em 1994, paralelamente, comecei a dar aulas de matemática na Universidade Lusíada, no período noturno. Estive lá durante 10 anos. Houve um momento em que tive que decidir entre as duas atividades e escolhi o que faço hoje: do meu ponto de vista, é muito mais estimulante.
“Liderar o Centro de Comando Operacional de Lisboa foi a experiência mais desafiante que tive. Fui chefiar uma equipa de 160 homens. Foi difícil… para mim e para eles. Tive de passar a ouvir programas desportivos para poder comunicar com eles sobre futebol e aprender os 160 nomes de pessoas que não via todos os dias.”
Como passou da CP para as Infraestruturas de Portugal?
Em 1997, a CP teve uma cisão e a parte ligada à infraestrutura foi transferida para uma nova empresa, a REFER. Nessa fase de separação, transitei para a REFER, onde constituí a equipa de planeamento dos horários. O contexto era novo: responder a todos os operadores que circulam na rede ferroviária. Apesar de termos uma rede pequena e haver poucos operadores, é preciso resolver os conflitos que surgem quando ambos pretendem passar nas mesmas estações no mesmo período, por exemplo. Em 2015, a REFER fundiu-se com as Estradas de Portugal, criando as Infraestruturas de Portugal (IP), onde assumi a direção de segurança ferroviária e rodoviária. Mas já tinha a cargo a direção de segurança ferroviária da REFER, desde 2013.
Qual foi o momento mais desafiante da sua carreira?
Em 2009 fui trabalhar para o Centro de Comando Operacional de Lisboa (na altura, ainda da REFER). Ali gere-se toda a circulação que passa nas estações, a informação ao passageiro que vai saindo nas estações, a energia da catenária [sistema de distribuição e alimentação elétrica dos comboios] ou seja, é ali que está centralizado o comando e o poder para a ferrovia funcionar. Foi a experiência mais diferenciadora que tive até hoje, pelo facto de a metodologia de trabalho ser diferente de todas as outras. Aquela equipa trabalha numa sala fechada, por turnos, para assegurar o serviço 24 horas por dia, todos os dias do ano. E isso foi a melhor aprendizagem humana que tive até hoje. Exige uma disponibilidade diferente para as pessoas. Além disso, era uma área onde não existiam mulheres: fui chefiar uma equipa de 160 homens, com toda a tipologia de problemas associados a uma equipa que trabalha em regime de turnos. Foi difícil… para mim e para eles. Vinha de outra área e, tradicionalmente, quem assumia a responsabilidade naquele centro era alguém que já estava inserido nele— ou seja, na prática veio alguém de fora tomar conta. E a juntar a isto, era uma mulher.
Sentiu que o facto de ser mulher era um entrave ali?
Entrave não foi, mas senti alguma desconfiança. Aceder aquele mundo não foi fácil. Tive que passar a ouvir programas desportivos para poder comunicar com eles sobre futebol, apesar de não achar muita piada a esse desporto. Pelo menos, devia saber o resultado de alguns jogos para poder integrar-me nas conversas. Foi uma das formas que encontrei para ir entrando devagar no mundo deles. A outra era falar sobre comboios, horários e planeamento, que era aquilo de que eu já percebia e eles também. Do ponto de vista da integração e de ter a recetividade deles a medidas que eu quisesse implementar, não foi nada fácil. Foi um ano inteiro assim. Foi difícil até memorizar 160 nomes de pessoas que não via todos os dias. Porque é importante dizer o nome da pessoa quando falamos diretamente com ela e não ir por trás, tocar-lhe nas costas e dizer ‘olha, é assim…’ Arranjei estratégias como andar com umas folhinhas com as fotografias e nomes deles. Uma vez conquistados, o resultado final é uma enorme saudade daqueles tempos, penso que para ambas as partes. Tive a perceção, no fim, que tinha conquistado a confiança deles e eles sentiam que eu confiava no que faziam e me diziam. Foi a experiência mais desafiante que tive até hoje.
“A vertente safety tem muito mais história e raízes no seu tratamento do que a security, que não sendo uma área nova, tem uma forma relativamente nova de abordagem. A questão do terrorismo fez-nos olhar para a nossa infraestrutura e atividade de forma diferente.”
Quais os maiores desafios que sentiu ao assumir a direção de segurança?
A mudança foi muito significativa porque passei de uma atividade muito dedicada à parte operacional, em equipas que planeiam ou executam, com muita atividade técnica, para uma atividade de direção em que se colocam questões de outra natureza como as de orçamento — que aqui já não é uma questão menor e obriga um nível de planeamento a uma distância maior. A direção de segurança hoje inclui a componente rodoviária e ferroviária, com as vertentes security e safety. A vertente safety tem muito mais história e raízes no seu tratamento do que a security, que não sendo uma área nova, tem uma forma relativamente nova de abordagem por parte das empresas. A questão do terrorismo e das ameaças fizeram-nos olhar para a nossa infraestrutura e atividade de forma diferente, apesar de ser uma área em que a nossa capacidade de resposta é muito limitada. As ameaças são identificadas com a parceria das entidades competentes, mas nós temos o potencial e temos que as tratar de alguma forma. A proteção à rodovia é muito diferenciada da proteção à ferrovia, porque é um espaço aberto a todos, sem qualquer limitação. No entanto, um comboio em circulação é um alvo que deve ser protegido. Nestas matérias estamos para lá de uma abordagem meramente técnica, é uma questão de sensibilidade que é trabalhada com as entidades de segurança. É uma abordagem diferente, que as empresas fazem hoje com mais rigor, mas que têm sido empurradas a fazer desde 2001 e um caminho que levará anos a fazer.
Qual a parte mais aliciante do seu trabalho?
Continuam a ser as pessoas, porque precisamos que elas se reposicionem com novos comportamentos de segurança. Por regra, esta é uma área que acrescenta algumas imposições à atividade normal das pessoas e que, na sua natureza, não são facilitadoras. A parte mais desafiante é conseguir fazer com que os nossos trabalhadores e os utilizadores nas nossas infraestruturas percebam que as regras visam a sua proteção e que, por isso, têm que as incorporar com algum sentido de obrigação. Mas no final fazemo-lo naturalmente e pedimos a quem está ao nosso lado que o faça também. A parte mais gratificante e que dá mais motivação para continuarmos é percebermos que conseguimos implementar ou melhorar as regras, que são reconhecidas como uma melhoria para o sistema.
Que características considera importantes para ser boa nesta área?
Uma delas é interiorizar os conceitos de segurança: não é só importante saber implementar medidas tecnicamente corretas; eu própria tenho que ser o espelho da segurança e incorporá-las. Naturalmente, tem que haver também capacidade de avaliação de um contexto de segurança — e a segurança não é uma matéria que se aprende na escola e se fica automaticamente formada; é a junção de várias matérias. Também exige responsabilidade e muita persistência, porque a maioria das regras de segurança demora anos até conseguirmos dizer que está a funcionar.
“Antes de fazer carreira na segurança é importante passar por alguma área mais operacional. A segurança não se faz sem a aprendizagem da execução: precisamos de saber como é fazer, gerir a circulação, monitorizar a gestão de tráfego.”
As últimas semanas em Portugal têm sido particularmente difíceis por causa dos fogos. Isso também afetou o trabalho nas Infraestruturas de Portugal?
Claro que sim. Houve sobretudo estradas cortadas no grande incêndio de Pedrógão, mas com muita frequência este ano já tivemos interrupção da via férrea e de algumas estradas devido a incêndios. Esta é a parte mais visível, mas existe ainda outra parte invisível, que é a proteção à nossa infraestrutura. No caso de Pedrógão Grande, tivemos equipas a ajudar os bombeiros e os nossos equipamentos estiveram também na ajuda ao combate ao incêndio. Todas as ocorrências na envolvência das nossas estradas e linhas de caminhos de ferro têm uma interação direta com o sistema e forçam a sua paragem. Quando a paragem ocorre, começamos por ter umas centenas de pessoas paradas que muito rapidamente se transformam em milhares. E começamos a ter potenciais locais de insegurança que têm que ser controlados e dissipados. As alternativas são fundamentais nestas circunstâncias, ou seja, levar as pessoas a fazer outros percursos para que não haja concentração. Do ponto de vista security, a concentração não é favorável porque gera impaciência e pode gerar novos eventos.
Que conselhos daria a uma jovem que queira fazer carreira na sua área?
Antes de fazer carreira na segurança é importante passar por alguma área mais operacional. A segurança não se faz sem a aprendizagem da execução: precisamos de saber como é fazer, gerir a circulação, monitorizar a gestão de tráfego. Caso contrário corremos o risco de vermos o nosso sistema exclusivamente do ponto de vista do procedimento e não pela forma como é executado. Só depois se pode subir a um nível de supervisão e monitorização.
Quando não está a trabalhar, a que outras paixões ou hobbies gosta de se dedicar?
Gosto bastante de atividades de orientação no terreno. Durante um dia ou dois participamos em eco-aventuras ou competições de orientação em que temos um mapa ou carta militar, temos que saber lê-lo, saber traçar azimutes, conhecer pontos cardeais, orientar-nos pelo sol porque temos um alvo a atingir e um tempo estabelecido. Envolve alguma atividade física, como correr ou andar de bicicleta. É libertador do ponto de vista físico, mas também é mais interessante por ser feito em equipa e temos que fazer a gestão das decisões a tomar. Faço isto com um grupo de amigos já há bastantes anos e é tão interessante que todos os nossos filhos começam já a estar integrados nas nossas equipas. É uma forma de os termos mais tempo connosco e uma partilha conjunta sob outro ponto de vista que não o do dia a dia — escola, trabalhos feitos, obrigações, as refeições, etc… Independentemente de ganharmos ou não, é muito saudável e gratificante.