José António de Sousa: Retomar a visão do cliente nos seguros

José António de Sousa alerta para os riscos que a inflação pode ter sobre o setor dos seguros em Portugal.

José António de Sousa fez a maior parte da sua carreira na liderança de multinacionais no estrangeiro.

José António de Sousa é gestor aposentado depois de quatro décadas na liderança de multinacionais de seguros.

 

São poucos aqueles CEOs e gestores de topo do setor segurador (e em qualquer outro também…) que, no frenesim das suas atividades profissionais quotidianas, e com as preocupações acrescidas que foram despoletadas pela pandemia (disrupção dos serviços, obrigação de digitalização das suas operações a marchas forçadas, para não entrar em colapso, e poder continuar a servir os clientes, estando os colaboradores todos em teletrabalho, etc.), ou as que estão a ser despoletadas pela guerra insana da Rússia imperialista de Putin contra a Ucrânia (a principal sendo a disrupção das cadeias logísticas, cujos efeitos já se estão a fazer sentir em termos de escassez de matérias primas, e a inflação que se avizinha, e que muitos dos atuais gestores de topo nunca na vida sentiram na pele), ainda têm tempo de qualidade para se sentar a ler, a pesquisar arquivos, a aprofundar temas, a pensar nos desafios de mercado, a desenhar uma visão de mediano a longo prazo, ou ainda a trabalhar num Road Map Estratégico para as organizações que gerem.

E no entanto, “par Toutatis”, como diria o Asterix a invocar o Deus celta na luta contra os Romanos, nunca foi tão importante invocar os Deuses (o bom senso…) para ajudar os seguradores a capear a tormenta, e enfrentar a luta contra os Cavaleiros do Apocalipse que ameaçam o mercado.

O setor tem reportado resultados (lucros) apreciáveis, graças à pandemia, que acelerou o processo de potenciar as eficiências no back office, por um lado, e por outro na diminuição da sinistralidade, sobretudo nos ramos de “maior consumo” (exposição ao risco, frequência e severidade), como o ramo Automóvel e o de Acidentes de Trabalho. E até o Ramo Vida deu uma “ajudona”. Tudo isso está neste momento em risco acrescido de se alterar dramaticamente, e as autoridades de supervisão prudencial, prudentemente, têm alertado para o que por aí pode vir, e alertado também que muitos operadores de mercado não “estão a ver bem o filme”, e portanto não estão (ainda?) devidamente preparados.

A prestigiada agência de rating especializada no setor segurador, a A.M. Best, colocou de uma penada todo o setor segurador francês — e todo o espanhol — sob revisão, com “outlook” negativo, porque é de opinião que as seguradoras nesses mercados estão particularmente vulneráveis aos efeitos perniciosos de uma inflação a crescer vigorosamente, como neste momento.

Já me chamaram o Medina Carreira dos Seguros, por acharem que emulo — em relação ao setor segurador — as posições críticas que manifestava em relação à gestão da causa pública feita pelos sucessivos Governos (PS…), ao longo das décadas que antecederam o seu falecimento. Já me chamaram também o Passos Coelho dos Seguros, por tratar de esconjurar e exorcisar a vinda do Diabo, que ninguém vê como passível de descer à Terra dos seguros.

Pois tomara eu ter metade da capacidade intelectual, poder de antecipação e visão desses nobres personagens da nossa História política, económica e social recente. A História futura far-lhes-á obrigatoriamente a devida justiça. Mas basta ter dois dedos de bom senso na testa para nos darmos conta de que há muito caminho a percorrer para que o setor segurador comece a operar de forma mais eficiente, mais amigável para os clientes e, sobretudo, mais protegido em relação aos perigos latentes que o ameaçam.

Quando olho para o modus operandi atual do setor segurador, aquilo que me chama mais à atenção é a forma mecânica e despreocupada como os clientes estão a ser tratados. Ouvindo-se os operadores, ou as suas associações, parece que estamos num Nirvana em que tudo está bem, todos estão contentes com a atenção e a eficiência com que são tratados, e a celeridade com que os seus problemas estão a ser resolvidos.

Vamos depois ouvir as redes de distribuição (agentes, sociedades de mediação, corretores), em cujas mãos a grande maioria das seguradoras, ao fechar as suas delegações territoriais e diminuir drasticamente os seus gestores comerciais, delegou quer a comercialização, quer a gestão primária da relação com o consumidor, o que é normal e razoável, mas sem lhes dar o apoio comercial de proximidade (com poder de decisão para resolver mais de 90% dos problemas que surgiam), o que já é anormal e disfuncional, e o que realmente está a acontecer é o que nos contam sempre que alguém tem um “momento da verdade” (sinistro), e quer fazer valer os seus direitos garantidos na apólice de seguro.

Se é um cliente de uma seguradora direta, o call center maravilhosamente eficiente que lhe vendeu a apólice, desapareceu, e o calvário  começa. Não tenho espaço para descrever as câmaras de horrores que me descrevem quando me perguntam se ainda conheço alguém com poder de decisão na seguradora xyz que possa desbloquear o assunto que leva semanas sem ser resolvido. Em média dois pedidos destes por semana, que eu infelizmente declino, pois este é já um setor segurador que desconheço na sua especificidade.

Se é um cliente que tem a sorte de ter um agente (corretor) de seguros, e esse agente tem algum poder de influência junto da seguradora, por ter uma carteira de clientes representativa, o cliente safa-se. De contrário também está “frito”. Há ramos, como o Automóvel, em que as estruturas montadas pelas seguradoras no passado pre-pandémico continuam “oleadas” e, como houve uma diminuição na frequência dos sinistros, a conflitualidade mantém-se em níveis aceitáveis (mas crescente). Nos sinistros ocorridos no Lar e nos Condomínios, a conflitualidade hoje é latente e crescente. Esta é a situação nos principais ditos seguros para particulares.

Quando vamos para o mercado dos seguros para empresas, se não fossem os serviços profissionais de corretores, que têm acesso a mercados internacionais com capacidade para satisfazer as necessidades de cobertura das nossas empresas, a situação seria muito séria, porque faltaria capacidade (e sobretudo vontade) para assumir riscos localmente, mesmo repassando parte deles para resseguradores internacionais.

Há uns bons 30 anos, numa das seguradoras multinacionais em que eu trabalhava, fez-se uma pesquisa por segmento de atividade junto de grandes clientes industriais. Muito extensa, receberam-se largas dezenas de respostas, uma amostra com validez estatística inquestionável, e portanto resultados preciosos para desenhar uma estratégia de Marketing Estratégico para atacar os vários segmentos que eram do interesse da seguradora em questão.

Aquilo que a voz do cliente (Voice of the Customer) indicou, e que hoje muito poucos estão na disposição de correr a “milha extra” para ouvir, resume-se a um “simples” decálogo:

  1. Cobertura disponível nas áreas de risco que se pretende cobrir.
  2. Estabilidade financeira da seguradora a longo termo (cada vez mais crucial, em particular em tempos inflacionários).
  3. Boa prestação de serviço na regularização de sinistros, para ajudar a empresa a defender o seu nome e reputação, além de proteger os seus ativos.
  4. Prémio de seguro ajustado à exposição real ao risco, um valor justo portanto.
  5. Abertura ao auto-seguro, nas áreas de risco em que a empresa se sente confortável.
  6. Apoio efectivo no controle de prejuízos, ajudando a empresa pro-ativamente a minimizar riscos.
  7. Bom relacionamento com os responsáveis da seguradora, independentemente de haver, como é habitual e desejável, um corretor a gerir a conta. Fundamental para cimentar a confiança, a comunicação, a compreensão e a celeridade na resposta sempre que necessário.
  8. Um corretor na relação com um espectro de atividade transversal a todo o mercado, o que é fundamental para criar laços produtivos com a seguradora, e resolver os problemas.
  9. Seguradora com uma rede internacional ampla (ponto fundamental para empresas multinacionais).
  10. Sistema de informação e gestão de riscos que forneça à empresa informação precisa e atempada.

Estes resultados, como frisei anteriormente, têm 30 anos. Tirando os aspetos que são importantes essencialmente para as empresas multinacionais (e em Portugal temos algumas), há algum cliente-empresa que discorde daquilo que é ainda hoje um decálogo crítico em relação ao que deve esperar (exigir?) da sua seguradora ?

Pois quem quer estar ativamente no mercado das empresas, e não apenas no das “casinhas & carrinhos” (como um amigo me gostava de dizer…) tem aqui uma boa base para trabalhar um Road Map Estratégico para vencer nesse mercado, e ganhar clientes.

Resumindo e concluindo, se no mercado dos seguros para particulares (o tal das casinhas & carrinhos), o serviço ao cliente (e o preço…) continua a ser fundamental, e as seguradoras que desestruturaram as suas áreas de apoio comercial devem fazer um esforço suplementar para resolver as questões de serviço com celeridade e bom senso (às vezes por 20 euros gastam-se umas centenas e muitos dissabores a marcar um ponto de vista…), no mercado das empresas a partitura é outra, bem mais complexa, tão ou mais quanto mais complexa é a operação do cliente. Nas empresas não se pode tocar a orquestra com um diretor de banda da GNR, precisa-se de um Álvaro Cassuto (o nosso Herbert von Karajan) para ler a partitura.

Em ambos os mercados, particulares e empresas, estude-se bem a lição, porque a inflação é mesmo aquele Diabo que não queremos (nunca) ver descer à Terra.

Há muitos anos atrás (anos 80 e 90 do século XX) várias multinacionais centro-europeias (alemãs, suíças, francesas, inglesas) de vários setores da economia, incluindo obviamente os seguros, só permitiam que chegasse a posições de topo na gestão mundial quem tivesse tido uma exposição de vários anos a mercados na América Latina, quando estes passaram por graves crises financeiras, com inflações estratosfericas.

Se a inflação vier para ficar, e apresentar valores consistentemente acima dos 5 % (nem se fale se se aproximar aos dois dígitos, como em alguns países da Europa), é mesmo caso para importar especialistas em gestão na matéria…

No Brasil do Collor de Mello e da Zélia Cardoso de Mello (não, não eram familiares), no início dos anos 90 do século XX, vi muitas seguradoras (e muitos outros negócios) a sumirem por gerirem mal a inflação. Os valores eram certamente de outra dimensão, mas a dor de cabeça e a atenção requerida é a mesma que agora se necessita!

 

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