Este título encerra o último capítulo de um manual de formação para recrutamento de uma força de vendas elaborado pela British Motor Corporation (BMC). Descobri-o no arquivo do meu falecido pai, que desempenhou, quando ainda ativo, funções de diretor no marketing do representante das várias marcas da BMC em Portugal. Se este manual fosse um documento escrito hoje, teríamos uma horda de exorcistas civilizacionais contemporâneos a cair em cima dos autores. Mas é de início dos anos 60 do século passado.
Atualmente há muito a tendência de querer reescrever a História, os usos e costumes aceitáveis (ou pelo menos habituais) no passado longínquo, com base naquilo que é hoje politicamente correto em termos civilizacionais. Caiu-se no ridículo imenso de achar que temos que nos penitenciar e pedir desculpa por aquilo que os nossos antepassados fizeram há 400 ou 500 anos, e que era perfeitamente “normal”, civilizacionalmente falando, na época em que viveram. Provavelmente dentro de 300 ou 400 anos teremos os habitantes do planeta Terra (se ainda existir) a condenar práticas políticas, sociais e civilizacionais que hoje se defendem.
Vejamos o (hoje) controverso texto com que o “Sales Promotion Manual” (manual de formação em vendas) da BMC, pelo que se depreende destinado a dar formação a proprietários e gestores de concessões de venda de automóveis, encerra o programa de formação :
“ Há muitas e muito boas vendedoras. Elas são de tal maneira proficientes e sistemáticas no exercício da sua profissão, que um gestor ou empresário deveria considerar seriamente se uma mulher não poderia ser usada eficientemente para a venda a retalho de automóveis. A principal objeção à sua contratação como vendedoras de automóveis — opinião partilhada pelos vendedores masculinos — é que as mulheres são impopulares junto do comprador. Será isto mesmo verdade ? Será que o cliente que entra no stand para comprar um carro terá alguma objeção em que seja uma mulher madura e inteligente a apresentar e discutir com ele as características do carro de uma forma atractiva? Determinou-se que viúvas e mulheres solteiras, preferentemente não demasiado jovens ou glamorosas, são as vendedoras mais confiáveis (não estamos no entanto a querer insinuar que uma teenager não fosse eficaz). Há um fator psicológico que é interessante. Será que um cliente irá discutir com uma vendedora o valor de retoma do seu carro ? Será que o seu desejo de mostrar o seu machismo conseguirá sobrepor-se ao seu instinto no sentido de obter mais dinheiro ? É um ponto a ter presente. As mulheres reagem e vendem emocionalmente, e por esta mesma razão representam uma dor de cabeça para o dono ou gestor da concessão (mais um risco profissional). No entanto, as mulheres que escolhem uma carreira de vendedora fazem-no essencialmente pela recompensa monetária, pelo que há grandes probabilidades de que tenham êxito. E, para terminar, que homem é capaz de resistir ao sorriso de uma mulher? “
Este é pois o texto com que encerra um fantástico manual de formação profissional para o recrutamento da força de vendas específica para o retalho de automóveis, que a poderosa British Motor Corporation disponibilizou à sua rede de concessionárias no início dos anos 60, e que hoje nos choca à luz dos valores civilizacionais com que fomos educados, e que predominam na sociedade que temos 60 anos depois!
O ponto a destacar aqui é o seguinte. Do ponto de vista técnico o manual de formação é ainda hoje impecável, atual, e poderia ser utilizado (sem este final…), sem qualquer problema. Aliás devo dizer que a parte de avaliação técnica de candidatos seria hoje ainda uma best practice no tocante aos aspetos de skills, competências e outros que a BMC sugere que os concessionários analisem ao selecionar e recrutar os candidatos.
Nesses aspetos, e por muito que os consultores de RH se torçam todos, aquilo que há 60 anos era verdade, continua verdade hoje, e continuará provavelmente verdade, ajustado aos tempos, em termos de competências (atualmente, por exemplo, uso de ferramentas digitais que antes nem sequer pensadas estavam) dentro de 60 anos, tantos quantos aqueles em que se precisar de seres humanos para desempenhar tarefas de vendas numa empresa.
Eu apostaria, qual Professor Bamba, que dentro de 60 anos estaremos numa sociedade em que os postos cimeiros das principais corporações estarão ocupados por mulheres porque, glamour à parte, aquilo que se vê nas mulheres de hoje é uma ambição e uma determinação por aprender, formar-se e qualificar-se, que dificilmente se encontra nos homens.
Do ponto de vista civilizacional, o manual está redigido certamente para não ferir as susceptibilidades próprias da época em que foi concebido, e em que foi efetivamente usado, não antevendo ou antecipando obviamente a forma como a sociedade iria evoluir 60 anos depois.
Da mesma maneira em que não se pode antever a forma em que a sociedade irá evoluir (apesar de existirem cada vez mais “futurologistas”, como os Professores Bamba mais sofisticados são chamados hoje), não tratemos de condenar a História. Muito menos reescrevendo-a à luz daquilo que são hoje os valores civilizacionais contemporâneos. Respeitemos a História entendendo-a (ou pelo menos tratando) no contexto em que ocorreu.
Não nos esqueçamos que na invejada e civilizada Suíça as mulheres só em 16 de Março de 1971 puderam começar a votar (nessa altura em Portugal nem mulheres nem homens)! Eu apostaria, qual Professor Bamba, que dentro de 60 anos estaremos numa sociedade em que os postos cimeiros das principais corporações estarão ocupados por mulheres porque, glamour à parte, aquilo que se vê nas mulheres de hoje é uma ambição e uma determinação por aprender, formar-se e qualificar-se, que dificilmente se encontra nos homens. Exceções confirmam a regra.