José António de Sousa é gestor aposentado depois de quatro décadas na liderança de multinacionais.
Esta maldita pandemia acelerou inegavelmente a partida da minha venerada mãe, aos 97 anos e meio. Viveu em plena independência e total auto-suficiência na sua própria casa até aos 94 anos, e estava desde então numa residência assistida que a disciplinou rapidamente. Alimentação regrada, medicamentos tomados na dose certa e à hora certa, higiene perfeita, exercício físico e mental (a mãe aprendeu já com 95 anos jogos de computador, e a vantagem das videoconferências para manter contacto familiar digital em tempos de pandemia …), sempre arranjada e coquette, e preocupada com a sua aparência até ao último minuto. A estadia regular na residência era complementada com frequentes saídas familiares para „dar a voltinha“, dar largas aos pequenos pecados alimentares que todos cometemos, e que na residência não eram possíveis, e receber os merecidos carinhos da família.
Foi uma vida plena, feliz, longa e produtiva. Raras vezes a vi irritada, para ela estava sempre tudo bem, mas, quando se dava o caso, nunca sobrava o mais pequeno resquício de ressentimento. Dizia o que tinha que dizer no momento, e por aí ficava.
Nascida numa família republicana e liberal de Espinho, os Martins Branco, a minha mãe assistiu muito nova à morte brutal do único irmão (eram 8 raparigas e o tio João) pela polícia de choque da época, ocorrida durante uma revolta estudantil no Porto, que a marcou indelevelmente até ao fim da vida. A memória do meu tio João Martins Branco está hoje assinalada numa rua com o seu nome, no Porto.
A D. Fernanda era o epítome, o exemplo perfeito da razão pela qual as mulheres são o pilar estrutural de sustentação de uma sociedade. Corporizava todas as características que são essenciais para o funcionamento equilibrado e harmonioso de uma sociedade de humanos. A paciência, o infinito sentido comum e de justiça que nos desarmavam pela simplicidade dos raciocínios com que suavemente acabava qualquer contenda, quando a testosterona dos filhos e do marido disparavam, o trabalho árduo no escritório e, depois do expediente, em casa. Muito pequenina fisicamente, sempre a correr, sempre a pensar na família, sempre a pensar como manter unido o espírito, o equilíbrio, a paz e a estabilidade familiar, uma gigante em termos de dimensão humana !
Os americanos têm uma expressão curiosa, que por questões anatómicas evidentes só se aplicam mesmo aos homens, para descrever as discussões espúrias e insensatas em que eles se envolvem ao longo da História : “pissing contest”, o que interpretado à luz do politicamente correto significa “ver quem urina mais longe”.
Deixem-me dar um par de exemplos muito recentes, porque são ilustrativos da razão pela qual as nossas sociedades desde tempos imemoriais estão permanentemente em desequilíbrio, crispação, ou mesmo guerra.
O primeiro exemplo é a discussão em horário prime nas televisões entre Marcelo Rebelo de Sousa e Antonio Costa. MRS, estando no estrangeiro (onde nunca se lava roupa suja), e ainda para mais nas circunstâncias em que está, nunca, mas nunca mesmo, deveria ter reagido às infelizes declarações do Primeiro-Ministro António Costa, claramente indiciadoras de que estaria a contestar a autoridade do Presidente. Um exemplo paradigmático de um dos habituais “pissing contest” entre decisores (masculinos) portugueses.
O outro exemplo é o de Netanyahu, o corrupto (alegadamente, irá agora ser julgado) Primeiro-Ministro israelita, em cuja cabeça não entra que foi derrotado por uma “geringonça” ainda mais espúria e irracional do que a nossa, e que só se lembra de clamar por vingança, e de ameaçar que em breve estará de regresso. Em vez de fazer um honroso discurso de saída apelando à concórdia, e dizendo que irá fazer uma oposição construtiva em benefício do povo israelita, sai destilando fel e desejos de vingança. Isto nunca aconteceria se os atores em palco fossem mulheres.
A minha mãe, que em merecida paz descanse, não foi figura pública, não tem nome de rua, mas deixa uma marca indelével no coração e no espírito de todos aqueles que com ela conviveram, como deixa aliás a esmagadora maioria das mulheres com as quais tive o privilégio de conviver ao longo da minha vida. São elas que fazem com que ainda consigamos viver num mundo minimamente equilibrado e civilizado.
Entregue à destemperança, à adrenalina e à testosterona dos fomentadores de “pissing contests”, o mundo, tal como o conhecemos, já teria sucumbido a um terrível desastre apocalíptico, não fossem as “formiguinhas” como essa formidável D. Fernanda, cuja memória será honrada por todos aqueles que a conheceram até ao fim dos nossos dias. São muitas placas de rua, em muitos corações.
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