Catarina Marcelino: “A falta de mulheres na tecnologia é grave”

A secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade tem uma carreira feita a lidar com as questões da igualdade. Diz que nunca foi vítima de discriminação, mas reconhece que ainda há muito por fazer e está pronta a dar o seu contributo. Catarina Marcelino vai encerrar a Conferência Liderança Feminina, no dia 24 de novembro, na Universidade Católica Portuguesa.

Catarina Marcelino, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade.

Catarina Marcelino, 45 anos, é secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade depois de uma carreira política e profissional ligada às questões da igualdade. Licenciou-se em Antropologia pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Em 1998 começou a trabalhar na Câmara Municipal do Montijo ligada às questões sociais e das mulheres. Esta experiência profissional levou-a a fazer uma pós-graduação em Género Poder e Violência pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). Mais tarde, entre 2005 a 2009, foi adjunta do secretário de Estado da Segurança Social, e durante alguns meses, de fevereiro a outubro de 2009, foi presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE). De 2010 a 2013 foi Presidente do Departamento Nacional de Mulheres Socialistas. Foi deputada à Assembleia da República (2009-2011, 2013-2015).

Fez uma Pós-Graduação em Género Poder e Violência pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). O que a despertou para este tema, esta área de estudo?
Em 1998 comecei a trabalhar na área social da Câmara Municipal do Montijo. Mais tarde fiquei responsável pela casa abrigo. Em 2000 a Câmara do Montijo criou um espaço ainda o crime de violência doméstica não era público. Na altura senti necessidade, e também tinha interesse académico, por fazer formação específica nessa área. O ISPA tinha um curso de formação nesta área e depois quando abriu a pós-graduação fui fazer. Teve a ver com a minha experiência profissional e com a necessidade de saber mais.

Da sua ligação à violência doméstica que comparação faz entre esses tempos e os tempos actuais? Houve uma grande evolução…
…Há uma grande diferença. O fenómeno não tinha a visibilidade que tem hoje e por isso o escrutínio talvez não fosse exigente, embora às vezes pareça que nada foi feito. Mas dou um exemplo. Quando uma mulher fazia queixa na GNR, nós tínhamos de a acompanhar porque se fosse sozinha não aceitavam a queixa. Hoje as forças de segurança têm serviços especializados, pessoas com formação específica, espaços de atendimento próprios, há uma ficha padrão de avaliação de risco. Neste momento existe uma resposta que, não direi razoável, mas há uma resposta em todo o país e não apenas em Lisboa e Porto, como na época em que só existiam duas ou três casas abrigo a nível nacional.

Basta olhar para a necessidade de se ter quotas de género para se ter mais mulheres a participar na política.

O que é que pode ainda fazer nesta área?
As coisas mudaram mas ainda há muito para fazer. Neste momento temos casas abrigo suficientes. São 37 mas ainda este ano vão abrir mais duas. A rede de casas abrigo está bem dimensionada para as necessidades do país. Mas precisamos de criar outras estratégias, ou seja, que a primeira resposta a um caso de violência doméstica não seja uma casa abrigo porque é uma institucionalização, mas sim o afastamento do agressor e uma resposta célere que permita às mulheres, ou a quem sofre a violência doméstica, ter tempo e espaço para definirem um projecto para sair da situação de violência sem passar por uma casa abrigo. Estamos a trabalhar em núcleos e gabinetes de apoio à vítima pelo país, até porque há zonas do interior com um nível baixo de resposta, que queremos aumentar. Essa resposta deve integrar um conjunto de entidades em rede que permita apoiá-las sem que elas tenham que sair da sua realidade, do seu contexto, e que possam ter um projecto de vida que não as obrigue a ir para uma casa abrigo.

Quando chegou era jovem e era mulher. Alguma vez se sentiu discriminada?
Pessoalmente acho que não fui vítima de discriminação na minha carreira política. Nunca senti mas não quer dizer que não exista. Há discriminação das mulheres na política e basta olhar para a necessidade de se ter quotas de género para se ter mais mulheres a participar na política. Mas no distrito de Setúbal não se faz sentir da mesma maneira do que no resto do país. Teve a primeira governadora civil entre 1985-1990, Irene Aleixo, que era do PSD. Houve sempre muitas câmaras municipais a serem lideradas por mulheres e durante muitos anos, embora actualmente só haja uma. As próprias listas partidárias também tiveram algumas mulheres que se destacaram. Portanto, sou de um distrito em que a participação das mulheres na política não tem as mesmas dificuldades que existem na maior parte do país.

As quotas de género permitem dar espaço político às mulheres, que neste caso é o sexo sub-representado.

O Parlamento tem um terço de mulheres, o BE e o CDS são liderados por mulheres, a Bolsa de Lisboa tem uma mulher… Como trazer mais mulheres para a política e será que ainda se justifica o combate pela igualdade?
As mulheres no Parlamento tem como resultado da legislação dos 34% de mulheres e as líderes dos partidos referidos entraram no Parlamento em 2009, o ano em que as quotas foram aplicadas pela primeira vez. Coincidência ou não, entraram as duas em 2009. A verdade é que o CDS antes dessa data só tinha a Teresa Caeiro como deputada. As quotas de género são importantes para que estes passos se dêem, porque as quotas de género permitem exactamente isso, permitem dar espaço político às mulheres, que neste caso é o sexo sub-representado. A lei não diz que é para homens ou para mulheres, é para o sexo que esteja sub-representado.

Quanto à Bolsa e as autoridades de regulação há legislação que diz claramente que tem de ser em alternância. A um homem na presidência sucede uma mulher e vice-versa. A verdade é que sem estes mecanismos de representatividade dificilmente as mulheres encontram este espaço e ainda há muito para fazer. Nos municípios, por exemplo, a questão ainda não se coloca com esse sucesso. Temos 7% de mulheres presidente de câmara, 26% de mulheres vereadoras e em nenhum dos casos atingimos os 33%.

Os homens são produtores e as mulheres reprodutoras e cuidadoras.

Mas a participação das mulheres na política não passa apenas pela legislação mas pelas alterações das práticas políticas como as horas das reuniões, etc. Está a mudar a vida dos partidos?
Não é só na política que a questão da conciliação da vida familiar com a vida profissional e pessoal é sempre um aspeto complicado. Nas empresas coloca-se na mesma forma e estamos a preparar legislação sobre quotas de género nas empresas do sector empresarial do Estado e das empresas cotadas em Bolsa porque o problema coloca-se exactamente como se colocava na política quando não havia quotas. Os argumentos contra são os mesmos, é tudo muito semelhante.

De facto as mulheres têm uma responsabilidade familiar e uma responsabilidade reprodutiva maior do que a dos homens. Estes têm uma responsabilidade muito ligada ao que é o trabalho e a produtividade. Os homens são produtores e as mulheres reprodutoras e cuidadoras.

Não precisamos de mudar os hábitos para que as mulheres tenham mais condições para fazer política. Precisamos de mudar as condições para que homens e mulheres possam ter a sua vida profissional e a sua vida familiar porque os homens também têm direito a uma vida familiar e a ser cuidadores. Temos hábitos de trabalho pouco conciliadores com a vida familiar, é uma realidade que tem de ser mudada tanto para homens como para mulheres.

O facto de haver mais mulheres em cargos de poder muda o exercício do poder?
O exercício do poder não muda muito com mais ou menos mulheres. Creio que é um pouco um mito de que as mulheres exercem o poder de uma forma diferente. As mulheres têm práticas que são adquiridas com o nosso treino de vida diferentes das práticas dos homens. As mulheres têm capacidades para fazer mais coisas ao mesmo tempo é uma realidade. Os homens são mais focados é outra realidade. O que tem a ver com o treino que sofremos desde crianças até a hábitos ancestrais que vão passando de geração em geração.

As mulheres trazem para dentro das organizações e para a vida política uma visão da sociedade diferente em que reconhecem necessidades de alterar a sociedade de determinada forma porque trazemos para a política as nossas experiências de vida e as nossas necessidades. Se fosse ao contrário, se só houvesse mulheres na política o efeito seria o mesmo. A sociedade é composta por homens e mulheres e a política deve ser representativa dessa composição.

Precisamos que na liderança das empresas estejam também mulheres porque será positivo para as próprias empresas numa lógica de diversidade.

Quando é que o governo avança com a imposição de quotas de género nos conselhos de administração das empresas do Estado e das empresas cotadas? No caso das cotadas será por legislação ou …
… será uma imposição legislativa mas queremos debater na concertação social e com os parceiros sociais durante o mês de Maio. Mas também queremos que o debate seja feito na comunidade empresarial. Há uma directiva comunitária que está em discussão desde 2012 e que não tem conseguido o apoio do número de países suficiente para a fazer passar que impõe exactamente esta quota de 33%. Mas há países na Europa que já têm legislação neste sentido como a Noruega, a Espanha, a França. Só queremos este caminho porque o mundo económico é fundamental para a igualdade e, portanto, precisamos que na liderança das empresas estejam também mulheres porque será positivo para as próprias empresas numa lógica de diversidade.

Porque não já a paridade?
O ideal, o limiar de paridade mais equilibrado é de 60-40 para ter margem para os números ímpares. Se agora não temos nada devemos partir para os patamares possíveis. As próprias quotas na política são 33% e talvez dentro de pouco tempo possamos aumentar para 40%. Mas quando partimos foi do zero por isso tudo isto se faz por etapas. Nesta altura parece-nos razoável os 33% até porque é um dos valores que a directiva refere quando falamos de cargos de administração. Fala de 40% quando se refere aos cargos não executivos onde é mais fácil o preenchimento das quotas. Optamos pelos 33% para tudo, executivos e não executivos.

E para as PME?
A questão das empresas cotadas segue a linha da directiva comunitária e neste sentido estamos a seguir um raciocínio europeu e internacional e que também é simbólico. Depois temos consciência do nosso tecido empresarial. Quando falamos de PME estamos a falar de muitas empresas com menos de 10 pessoas. Portanto estar a impor uma quota de género a empresas que terão dificuldades em cumpri-las seja para colocar homens ou mulheres. Acho que era impor uma regra que era muito difícil de implementar. O que nós queremos também é que as PME sejam obrigadas a um conjunto de comportamentos na sua organização que melhorem a igualdade de género dentro das PME. Mas isto é um percurso e por isso estamos a começar por aquilo que é mais simbólico.

O número de mulheres que seguem profissões ligadas às tecnologias é muito baixo e no futuro a maior parte do emprego será tecnológico.

Disse numa entrevista, a propósito de haver poucas mulheres a lançarem start-ups que era “incrível vermos crianças com três anos, que ainda mal começaram a falar, a dizer já que as meninas gostam de rosa e os meninos de azul. Ou que os senhores fazem as estradas e as senhoras fazem a comida”. Mas é isto que leva a que haja menos engenheiras e informáticas (e é um pouco generalizado…)? Aliás é engraçado porque há poucas chefs…
Tudo isso tem uma explicação… Tudo o que tem a ver com máquinas e tecnologias as mulheres têm menos apetência e isso tem a ver com a educação…, tão grave que há pouco tempo estive na Microsoft num projecto que se chama Do IT, Girls! E que está ligado à OIT. Tem como objetivo motivar jovens universitárias para a área das tecnologias porque o número de mulheres que seguem profissões ligadas às tecnologias é muito baixo. Cria problemas quer do ponto de vista da empregabilidade no futuro porque no futuro a maior parte do emprego será tecnológico. Por outro lado, gera problemas às próprias empresas porque precisam de diversidade, como a visão feminina, para a concepção e criação de produtos para os seus públicos e consumidores estratégicos.

Mas os homens têm áreas a que também não aderem. Temos, por exemplo, poucos educadores de infância e mesmo professores. São profissões marcadamente femininas e têm impacto muito grande no ensino e na forma como o ensino é moldado nas escolas. O facto de o sucesso escolar ser maior nas mulheres do que nos homens também se deve a um ambiente feminizado. Toda esta questão da segregação horizontam e das profissões tem de ser estudada e olhada de uma forma séria porque tem impactos na sociedade.

Tem alguma estratégia?
A nossa estratégia tem muito a ver com a educação. Estamos também a desenhar um projecto, com o Ministério da Educação, para a educação da cidadania nas escolas e vamos ver se conseguimos de uma vez por todas que as escolas assumam esta área como uma área importante de intervenção e consolidada. A ideia é trabalhar estas questões desde o pré-escolar por forma a consciencializar as crianças e os jovens para estas questões que estão nos papéis sociais e que não há profissões de homens ou de mulheres.

No programa de governo, falam em compromissos com os parceiros sociais para promover a igualdade através da contratação colectiva. Refere-se ao efetivo e eficaz às desigualdades salariais entre mulheres e homens no trabalho que se agravaram nos últimos anos. Está a fazer-se?
A desigualdade salarial é um problema estrutural e que ao longo dos anos pouco se tem alterado e é uma questão muito preocupante porque uma coisa é a desigualdade salarial objectiva, ou seja, duas pessoas na mesma profissão e a fazer o mesmo trabalho mas o homem a ganhar mais do que a mulher. Era o slogan salário igual para trabalho igual. Ainda vai havendo esta desigualdade até porque se mudam designações como subterfúgios.

Depois existe a desigualdade menos ostensiva e que tem a ver com os prémios porque as mulheres estão menos tempo porque vão para casa cuidar dos filhos e depois atingem menos objectivos ou não conseguem responder aquilo que as empresas colocam para atribuir os prémios. A segregação horizontal com as pessoas com profissões mais valorizadas socialmente e portanto ganham mais do que as outras.

Não podemos querer aumentar a natalidade à custa das mulheres.

Há um conjunto de factores complexo. O que estamos a tentar fazer, e é para toda a área laboral, é trabalhar com os parceiros sociais. Estas matérias só fazem sentido se houver uma espécie de pacto social para as resolver. Temos um pacote de matérias para levar ao Conselho de Concertação Social. Há mecanismos ligados à forma como os relatórios únicos das empresas, os antigos balanços sociais, são feitos que podem ser mais clarificadores dessas diferenças e ter, por exemplo, alertas que nos permitam verificar qual é o problema na empresa e tentar corrigi-lo. Temos a possibilidade de ter na própria contratação colectiva ter mais mulheres negociadoras por parte dos sindicatos, que é uma coisa que hoje existe pouco.

Já falou nas questões da responsabilidade parental. Acha que isso pode ter impacto na natalidade?
As responsabilidades parentais têm a ver com natalidade mas não podemos falar de responsabilidades parentais sem falar de igualdade. Nós não podemos querer aumentar a natalidade à custa das mulheres. A natalidade numa sociedade desenvolvida e europeia no século XXI tem de olhar para as questões da natalidade como dizendo respeito aos homens e às mulheres e é nesse pacto de responsabilidade que temos de fazer o caminho.

Ter os homens mais tempo a partilhar com as mulheres é importante mas não se resume a isso. Temos de ter bons equipamentos e boas respostas sociais, como boas escolas públicas, os livros escolares gratuitos, que suportem as famílias e fundamentalmente ter emprego e ter rendimento. As estatísticas dizem que quando há uma maior partilha de responsabilidade parental há uma maior predisposição para ter mais filhos.

Outro tema é da diversidade na sociedade portuguesa. Um dos cantores de maior sucesso é Anselmo Ralph, um dos grandes jogadores portugueses é William de Carvalho ou Quaresma, há uma novela de grande sucesso, mas não há deputados, apresentadores de televisão, gestores que não pertençam à maioria branca…
Parecemos todos brancos… Somos uma sociedade muito tolerante e isso vê-se no actual contexto europeu na forma como acolhemos os refugiados, os imigrantes pois somos o segundo país com os melhores resultados no acolhimento dos imigrantes, o que nos deve orgulhar. Contudo temos pouca participação política dos imigrantes ou dos portugueses, como os ciganos, os africanos, que são etnicamente diferentes da maioria. É um problema identificado e o Observatório das Migrações tem estudos sobre a matéria e há necessidade de termos intervenção junto dessas comunidades para s motivar e para criar condições para que possam ter mais intervenção política.

Temos de ter uma linguagem inclusiva em que todas as pessoas se sintam representadas e que seja mais próxima na nossa realidade.

Em relação a discriminação em função da orientação sexual têm algumas medidas em preparação?
É das áreas que em Portugal em que mais avanços se fizeram em muito pouco tempo. Não nos podemos esquecer que tivemos a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo é de 2010, conseguiu-se a lei de identidade de género na mesma altura e em cuja revisão estamos a trabalhar com o Ministério da Justiça. Votamos no Parlamento favoravelmente a adopção por pessoas do mesmo sexo. É uma área que em termos de matéria legislativa, de direitos, liberdades e garantias tem tido um avanço muito significativo. Mas, do ponto de vista da sociedade, ainda precisa de muito trabalho e onde ainda há muito para fazer pois ainda há muitos tabus e muita discriminação. Precisa de muita pedagogia e muita informação para ser melhor enquadrada do ponto de vista social. Mas questão coloca-se da mesma forma do que com as pessoas de etnia diferente. Somos uma sociedade tolerante e não temos grandes expressões públicas de homofobia ou xenofobia mas não quer dizer que esses comportamentos não existam.

A língua e a linguagem podem ser discriminatórias para além desta questão do cartão do cidadão que foi muito folclorizada…
A linguagem traduz conceitos e os conceitos traduzem realidades. Temos de ter uma linguagem inclusiva em que todas as pessoas se sintam representadas e que seja mais próxima na nossa realidade. A nossa linguagem é masculina e temos que ir mudando isso na nossa sociedade. Neste momento os nossos diplomas legislativos são escritos em linguagem inclusiva. Num diploma já se diz os cidadãos e as cidadãs, cidadão/cidadã. Já há formas de podermos ter linguagem inclusiva e já é muito comum ouvir os políticos e as figuras públicas a dizer “Bom dia a todos e a todas…”

(Esta entrevista foi concedida à Executiva em maio de 2016 e publicada na edição em papel em junho)

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