Um almoço no Belcanto

Foi num final da manhã um dia qualquer destes que me vi a caminhar pela rua que vai dar ao Teatro S. Carlos, em Lisboa, em direcção ao restaurante Belcanto, de José Avillez. Nesse momento, pouco antes de hora de almoço, recordei, nem sei bem porquê, os repastos de língua de vaca panada, que apreciava, em particular, neste espaço, antes de ter sido transformado, aos poucos, naquilo que é hoje: um restaurante de alta cozinha, de culinária complexa, inovadora e sempre surpreendente, mesmo quando repetimos alguns pratos, como foi o caso.

O Belcanto é um restaurante com duas estrelas Michelin, pouco acessível ao bolso do português médio, já que dificilmente se sai de lá sem pagar pelo menos 100 euros por cabeça, a julgar pelos preços à carta. O menu mais barato custa 125 euros sem vinho e, o mais caro, 165 euros. Quem, como eu, já viu a cozinha, agora mais vasta após as mais recentes obras feitas nesta casa, verifica que lá trabalham bem mais de uma dezena de cozinheiros, os necessários para que os pratos sofisticados que surgem na mesa se apresentem sempre em todo o seu esplendor. Se lhes juntarmos as equipas de sala e de preparação dos alimentos, a equipa do Belcanto deverá ter mais de 30 pessoas a servir uma sala que só tem espaço para 35 comensais. Isso fez-me pensar que, mais do que os preços altos, são essencialmente necessários princípios de boa gestão para que o negócio deste restaurante se tenha mantido e mantenha sustentável no futuro. Mas isso será conversa para outro dia.

Uma pequena jóia

O pretexto para lá ir, como convidado, foi o lançamento das últimas garrafas de Bastardinho de Azeitão, este com um rótulo de 40 anos.O produto é uma pequena jóia que só as casas familiares de vinho se podem dar ao luxo de fazer, principalmente, penso eu, porque têm vontade para isso. Produzido com base em uvas de vinhas que já não existem, da casta bastardo, a designação regional para a variedade Trousseau, de origem francesa, tem, no lote, vinhos de colheitas feitas de há 40 a 80 anos, na margem esquerda do Tejo. As últimas uvas foram entregues na José Maria da Fonseca (JMF), empresa produtora deste vinho, em 1983, antes de o espaço que ocupavam ter sido devorado pela fúria do betão que caracterizou a década de oitenta em Portugal. Por isso, foi natural a emoção que Domingos Soares Franco, enólogo da empresa, sentiu ao lançar esta edição do Bastardinho de Azeitão, quatro mil garrafas de 500 ml, que foram agora colocadas no mercado a 250 euros por unidade. Apesar de a empresa ter plantado meio hectare desta casta em 2005, será necessária mais uma geração da família para apresentar, ao mercado, algo com qualidade e distinção semelhante.

Os primeiros passos do repasto

A refeição começou com esferificações de azeitona, tremoço, alho e cenoura, de sabores e aromas bem definidos, que explodiam na boca de forma surpreendente e agradável.

Depois, não foi difícil de encontrar, entre os calhaus rolados que chegaram à mesa aconchegados numa pequena travessa, por estarem assinalados com pequenas ovas de truta, os que se podiam quebrar com os dentes para outra explosão de sabor, que nos disseram ser de fígado de bacalhau, apesar de me lembrar atum. Estas e as outras entradas foram acompanhadas pelo Alambre Ice, vinho espumante cuja frescura e doçura se equilibraram bem com o que foi chegando à mesa.

Pedras crocantes de peixe distinguiam-se das outras pelo toque laranja das ovas de truta.

Para não estar a enumerar tudo o que foi servido, saliento apenas os clássicos de José Avilez, “A Horta da Galinha dos Ovos de Ouro”, com ovo, pão crocante e cogumelos, que fez boa companhia ao Moscatel Roxo Rosé 2016 e “Mergulho do Mar”, com robalo, algas e bivalves, cuja textura do peixe era a mais correcta possível.

O mergulho que sabia a mar e a peixe fresco.

No final, chegou à mesa a estrela da festa, o Bastardinho de Azeitão, servido na companhia de uma sobremesa tentadora e bela, em que o que era aparentemente citrino era ovo e o que era aparentemente ovo era citrino. A conjugação não era má, mas preferi saborear, mais longamente, o vinho por si só, pois é assim que se tem de fazer com as coisas raras e únicas que nos dão prazer. 

O Bastardinho de Azeitão na companhia das mignardises finais.

Vinhos em destaque

Bastardinho de Azeitão 40 anos

José Maria da Fonseca

Castas: Bastardo

PVP: 250 euros

(18/20)

Trata-se de um vinho de aroma intenso e complexo, com notas de frutos caramelizadas e de frutos secos, iodo, turfa, algum vinagrinho, como seria de esperar neste tipo de vinhos. Longo e agradável na boca é, para mim, bom parceiro de final de refeição com sobremesas de chocolate e frutos secos, servido entre 15 e 16oC.

Alambre Ice

José Maria da Fonseca

Castas: Moscatel Roxo

PVP: 35 euros

(18/20)

Vinho espumante com características semelhantes aos sparkling ice wines do Canadá, apresenta um aroma intenso, com notas citrinas e de fruto de caroço e seco. Na boca é fresco, envolvente e sedoso, com final a mostrar os aromas citrinos do nariz. Tem apenas 8,5% de álcool e a sua viscosidade é tão elevada que não há necessidade da habitual rolha de espumante para o vedar, pois a bolha só se sente na boca e é quase invisível à vista.

Legenda

18 a 20

Um grande vinho, profundo, com uma personalidade e complexidade que o distingue de todos os outros e proporciona, a quem o degusta, uma experiência única.

16 a 17

Um vinho complexo, distinto, de boa qualidade e potencial de evolução, que vale sempre a pena apreciar.

14 a 15

Um vinho bem feito, consistente, que proporciona satisfação a quem o bebe.

12 a 13

Um vinho simples e honesto, do dia-a-dia, sem defeitos nem aspirações.

Todos os vinhos com classificação inferior são desinteressantes, desequilibrados ou apresentam defeitos. Nunca serão mencionados nestes artigos.

Publicado a 16 Maio 2017

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